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O século que não começou

Pablo Capistrano

Escritor, professor de filosofia

Crônicas filosóficas

Ilustração

Não lembro qual foi o ano, mas sei que foi em algum momento na virada do milênio. Assisti absolutamente assombrado ao filme Nós que aqui estamos por vós esperamos, dirigido por Marcelo Massagão, em um canal de TV por assinatura. Aquela não foi uma experiência meramente historiográfica. Eram as imagens de um século que morria, mostradas em uma sequência que não continha apenas dados políticos, geográficos ou econômicos. Aquilo era um intenso, um desconcertante avanço sobre as dimensões mais comoventes da temporalidade.

Temporalidade é uma palavra forte. Não seria um abuso imaginar que o que nos faz humanos seja esse mergulho, essa abertura para a temporalidade. Um mergulho que permite que eu e você possamos delimitar aquilo que somos. Essa é uma experiência de definição, uma experiência do agora. É no presente que eu me lembro de quem fui e, de certa forma, me escolho. É no presente que eu me projeto, que eu imagino quem eu gostaria de ser e invento, no campo de possibilidades desconhecidas, o lugar onde eu quero estar, entre o medo e a esperança.

Essa temporalidade era o mote daquele filme. Suas imagens apresentadas sobre o pano de fundo de uma trilha sonora deslumbrante do Wim Mertens (se a Wikipedia não estiver me enrolando), me fizeram entender que a minha geração era definitivamente a última geração do milênio que morria – e não a primeira do milênio que nascia. O século XXI, por mais que eu tentasse, não seria meu. O século XX seria meu peso, meu cadáver particular, o defunto ilustre que eu deveria carregar.

Não preciso descrever todos os detalhes sórdidos do tipo de agonia que essa percepção me proporcionou. Posso até mesmo dizer, sem medo, que meus esforços em superar o século XX e abraçar o XXI marcaram meu pensamento, minha escritura e a grande maioria de minhas leituras na última década.

Aliás, vamos combinar... Essa década que começa a acabar foi absolutamente frustrante. Não digo isso pensando em nenhuma área específica, como literatura, música, cinema ou futebol. Alguém pode vir com uma lista de obras-primas que surgiram nessa década ou mesmo apelar para o hexacampeonato do Flamengo (o que por si só já seria um bom argumento para debandar minha sensação de frustração). Apesar disso, é na intimidade dos povos, naquele lugar onde habita o mais intenso e o mais profundo, que o chamado do milênio ainda não ecoou.

A humanidade ainda não ouviu a voz do tempo futuro, e os ecos das vanguardas do passado, hoje, soam muitas vezes como distorções de uma época que quis passar rápido. De um século breve, como imaginou Eric Hobsbawm em A Era dos Extremos.

Começamos muito mal o século XXI. Ressuscitamos velhos mitos ideológicos de combate entre oriente e ocidente e antigos mal-assombros teológicos que produziram a estranha sensação de retorno à Idade Média ou ao século XVII. Como se estivéssemos arquitetando uma segunda edição de massacres antigos e velhos morticínios. Terminamos a década frustrados pela incapacidade geopolítica das mais expressivas lideranças planetárias de se articular, pela incapacidade de uma virada em direção a um modelo sustentável de sociedade. Mantivemos nessa década os dois grandes sintomas de uma mesma síndrome que ameaça a humanidade: o desenvolvimentismo tecnicista e a intolerância cultural e religiosa. Era como se, na primeira década do século XXI, o novo milênio tivesse se recusado a entrar no palco bem na hora em que o público mais ansiava pela sua estreia e, em seu lugar, um velho ator, disfarçado, tivesse aparecido para ludibriar a plateia.

Fazendo referência a uma figura de Paul Klee intitulada Angelus Novus, Benjamim escreveu que “o que chamamos de progresso é esta tempestade”. Para além dos calendários e das datas convencionais, a temporalidade nos arrasta. Mas não estamos diante do futuro, porque não o reconhecemos. A caminhada do homem no tempo é feita de costas, porque o passado está diante de nós, como uma ameaça de permanência, como um refugio melancólico, como um estrondoso amontoado de ruínas. Mas o futuro, esse desconhecido, está às nossas costas. Passamos por ele como se levados pela tempestade, mesmo que, às vezes, ele relute um pouco em chegar.

Publicado em 26/01/2010

Publicado em 26 de janeiro de 2010

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