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A Capoeira Angola como resgate cultural de uma comunidade quilombola

Mariana Cruz

Descrever a img desde que não seja apenas ilustração

A bióloga e mestre em Ciência Ambiental Ananda Bermudes Coutinho passou sua adolescência e parte da juventude no Rio de Janeiro, onde aprendeu a Capoeira Angola com mestre do Grupo Capoeira Volta ao Mundo, Cláudio Chaminé. Aos 29 anos, passou em um concurso público e mudou-se para Vitória, no Espírito Santo. Lá chegando, constatou que não havia Capoeira Angola como a que praticava no Rio. Resolveu começar um movimento por conta própria. Mas não foi nada simples. Logo de início, alguns capoeiras locais torceram a cara: quem era aquela menina de classe média, branca, vinda de fora, que queria começar um movimento de capoeira? Mas ela não se intimidou: deu uma banda nesses preconceitos e começou a dar suas aulas para um ou dois alunos. Depois de dois anos, tinha seu grupo formado, composto em sua maioria por estudantes de classe média. Foi quando percebeu que sua missão não podia parar por aí.

Começou a dar aula para as crianças e adolescentes da Comunidade Quilombola de Retiro (Santa Leopoldina-ES) e, posteriormente, seus alunos adultos começaram outro trabalho em uma comunidade carente na periferia da cidade, Jesus de Nazaré. Aí aconteceu a grande reviravolta: percebeu as infindáveis possibilidades que a capoeira proporcionava. Além de capoeira, tornara-se educadora e uma referência para tais comunidades, pois apontava um caminho alternativo para aquelas crianças através da valorização da sua cultura. Após dois anos de aulas no quilombo, percebeu diversas mudanças na vida daquelas crianças, de seus familiares e de toda a comunidade. Ela trazia de volta para eles uma arte que sempre fora deles, de seus antepassados. Era um resgate cultural no sentido pleno. Dia após dia ela via aqueles pequenos aprendendo a cantar, a mexer o corpo, a tocar diversos instrumentos, a se relacionar-se cooperativamente, trabalhar em grupo e praticar a autogestão. O que trouxe autoestima para o grupo. Para saber um pouco mais sobre essa história, entrevistamos Ananda.

Revista Educação Pública: Ananda, conte como foi o início da sua empreitada da Capoeira Angola em Vitória.

Quando cheguei aqui, jamais pensava iniciar um movimento cultural com a Capoeira Angola. Fui procurar um grupo ao qual pudesse me juntar. No entanto, não encontrei, e os capoeiristas com quem tive contato na época me falaram que não existia Capoeira Angola em Vitória. Para mim, naquele momento só existiam três opções: parar de treinar Capoeira Angola, treinar sozinha ou começar a ensinar a Capoeira Angola e formar um grupo. Fui levada à terceira opção por amigos de adolescência que me pediram que eu lhes ensinasse, e tudo começou no quintal da casa de uma amiga.

Revista Educação Pública: Que tipo de dificuldades você enfrentou?

Foram duas dificuldades principais: trazer uma modalidade de capoeira diferente para Vitória e principalmente o fato de ser mulher. As duas coisas associadas me fizeram lutar muito para atingir o objetivo de formar um grupo de Capoeira Angola. Foram momentos muito difíceis, em que a minha família angoleira do Rio de Janeiro me ajudou muito, principalmente meu mestre Cláudio Chaminé, que jamais me deixou desistir ou acreditar que não seria possível. Além disso, contei sempre com o apoio incondicional da minha família, que estava residindo aqui também, e o fato do meu pai, o professor doutor José Maria Coutinho, ser um cientista social e estudioso de cultura afro-popular e sempre ter me incentivado muito, desde o meu início na Capoeira Angola, aos 17 anos.

Como você concilia o trabalho de bióloga com as aulas de capoeira? Como é o seu dia a dia?

Pois bem, sou bióloga e trabalho 40 horas semanais no Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos do Espírito Santo – IEMA. Essa carga horária já é bastante, mas não paro por aí; duas vezes por semana, de noite, realizo as aulas de Capoeira Angola com os alunos adultos, e uma vez por mês fazemos a “roda” e a aula de música. Todo final de semana (sábado ou domingo de manhã) desenvolvo as atividades na comunidade quilombola. A comunidade de Jesus de Nazaré também tem suas atividades no final de semana, e lá vou algumas vezes por ano, pois o trabalho é desenvolvido pelos meus alunos adultos; acompanho a coordenação junto com eles, porém um pouco mais de longe, pois aí infelizmente já me faltam “pernas” para realizar a execução direta das atividades, embora também tenha esse desejo.

Revista Educação Pública: Como surgiu a ideia de trabalhar no quilombo?

Foi muito por acaso. Durante um encontro de estudantes de Geografia que ocorria na UFES, em abril de 2007, numa roda de Capoeira Angola que acontecia, conheci alguns estudantes que tinham feito uma vivência no dia anterior na Comunidade Quilombola de Retiro, e uma moça que tinha estado na vivência me disse que eles estavam interessados em iniciar um projeto de resgate cultural que envolvesse a capoeira. Eu me interessei na mesma hora; ela me deu o e-mail do líder comunitário, mas não tínhamos um papel para anotar; eu decorei e fiquei lembrando a noite toda. Quando cheguei em casa de madrugada escrevi para ele. Na mesma semana ele me respondeu, me convidando, pela Associação Quilombola dos Herdeiros do Benvindo Pereira dos Anjos, a iniciar os trabalhos. Umas duas semanas depois eu já estava lá, de forma voluntária. Contávamos apenas com o apoio da Prefeitura Municipal de Leopoldina para o fornecimento do transporte. As aulas de capoeira eram realizadas aos sábados pela manhã. Desde o início os integrantes adultos do Grupo de Capoeira Angola Volta ao Mundo, do núcleo de Vitória, estiveram presentes na construção desse trabalho.

Revista Educação Pública: Como você iniciou seu trabalho na comunidade Jesus de Nazaré?

Foi um amigo dos meus alunos que fez o convite, pois ele mora na comunidade. Como eu já não tinha mais como estar à frente de outro núcleo, meus alunos assumiram, e sempre tiveram meu apoio. Posteriormente, esse jovem que fez o convite se tornou meu aluno do grupo dos adultos, e hoje é ele que coordena o trabalho lá na comunidade de Jesus de Nazareth, e conta com o apoio dos outros membros.

Revista Educação Pública: Além da Capoeira Angola, o que mais as crianças aprendem? Que outros valores você trabalha com eles?

A gente trabalha cidadania, política, qualidade de vida, organização comunitária, cooperação, autogestão, saberes tradicionais, tudo de uma forma voltada à linguagem e à realidade deles, além de outras coisas como não falar palavrão, respeitar os mais velhos, respeito ao meio ambiente etc. Por sua origem de luta, a Capoeira Angola não vem desprovida de um projeto político de resistência cultural e tradicional. Com os adolescentes, já posso trabalhar conceitos como consumismo, por exemplo; com os menores, tratamos de cooperação, solidariedade, aprender a dividir e ajudar o colega. É fantástico observar um aluno mudando de atitude e ajudando um coleguinha menor a fazer determinado movimento corporal. Quando o de cinco anos começa a chorar por algum motivo, o de dez anos pega ele no colo e acalenta. As crianças no quilombo me presenteiam com um saco de acerola, e eu comento: que maravilha aquele presente, pois em Vitória esse produto não existe, não consigo comprar no mercado, e olha que coisa boa, eles têm várias acerolas ali para comer, fazer suco, como isso é valioso. Eles começam a perceber que sim, que eles moram num lugar especial, que tem seus encantos. E o que mais me encanta é a forma de autogestão deles, que vejo como um dos desdobramentos mais belos do trabalho cultural: a organização de um piquenique na beira do rio, por exemplo, torna-se um grande evento em que eles mesmos levantam as tarefas, dividem e cumprem com muito zelo, seja com 6, 10 ou 15 anos, absolutamente todos fazem questão de contribuir e ser ativo no processo de construção. Trabalhar a coletividade neste mundo individualista é um desafio. E ainda podemos pegar carona nessa mesma ocasião e trabalhar a auto-estima, quando eles se sentem muito orgulhosos de presentear o grupo com um delicioso quitute quilombola e falar “minha avó que fez, ela sabe fazer de tudo, vou pedir pra ela fazer mais”. Na comunidade de Jesus de Nazaré trabalhamos outras coisas; uma vez, um dos alunos com oito anos comentou que só quem poderia ser um mestre de capoeira era o nosso próprio mestre Cláudio Chaminé, porque ele é “alto e preto” e que ele não tinha “medo” de dizer isso. Percebi que a criança temia ser repreendida pela sua afirmação, pelo jeito não tão comum sobre a observação da raça, o significado ali da palavra “preto”, que para ele significava uma coisa boa, mas dependia da minha aprovação final para consolidar aquela certeza. Por instinto, percebi que não caberia dizer naquele momento que uma pessoa de estatura mediana e de cor branca também poderia ser mestre de capoeira (e quem sabe uma mulher). Deixei pra outra ocasião, mas entendi que a grande oportunidade que aquela criança me dera foi outra e falei: “não precisa ter medo de falar isso, o mestre Chaminé ficaria feliz de te ouvir, pois ele tem orgulho da sua cor”. A criança respirou aliviada e completou: “eu também tenho orgulho da minha cor (negra)”. Depois de ouvir isso, tive uma ótima semana de trabalho.

Revista Educação Pública: Que mudanças você percebe nos seus alunos desses locais?

Então, percebo a mudança na autoestima, maior confiança em falar, se expressar, confiança corporalmente, maior facilidade de socialização, o orgulho de pertencer a um grupo cultural relacionado à tradição da cultura negra; eles conseguem expressar melhor seus sentimentos. Tem alunos adolescentes que demoraram um ano para me dar um abraço pelo simples fato de acharem que eles eram menos do que eu, e conseguimos quebrar isso, e hoje conversamos de igual para igual. Realmente não tem preço ser um ator ativo na mudança de vida dessas criaturinhas.

Revista Educação Pública: Fale uma pouco de seus projetos nessas comunidades

Na Comunidade Quilombola o trabalho foi expandido e hoje temos um projeto de desenvolvimento comunitário através do turismo sustentável, patrocinado pela EDP - Energias do Brasil, desenvolvido em parceria ente o Grupo de Capoeira Angola Volta ao Mundo e a Associação Ambiental Voz da Natureza. Tudo começou quando percebemos o êxodo rural dos jovens que saem da comunidade em busca de emprego na região metropolitana de Vitória. Aquilo era muito grave, pois, se os jovens não tinham condições de permanecer em seu local de origem, os laços culturais e históricos ficavam enfraquecidos e, consequentemente, comprometiam o grupo de Capoeira Angola, que se baseia nos princípios da ancestralidade, em que os ensinamentos são passados oralmente de mestre para discípulo, e não se manteria se a cada ano aqueles alunos, a quem dediquei esses ensinamentos, fossem embora e o grupo estivesse sempre recomeçando. O projeto está em fase de implantação e, de uma geração inteira na faixa de 19 a 21 anos que tinha saído da comunidade, conseguimos trazer de volta uma das jovens, que é tecnóloga em turismo e agora trabalha conosco no projeto, podendo colocar suas ideias e sua formação em prática. Em seu retorno, ela disse: “meu lugar é aqui, vou desenvolver minha comunidade”. Agora estamos de olho em segurar uma outra turma de 15 a 18 anos, e se Deus quiser conseguiremos gerar renda para eles na própria comunidade, com o turismo étnico-cultural e ambiental e a agricultura. Também estamos começando algumas ações nesse sentido, tudo envolvendo seus costumes e tradições.

Revista Educação Pública: Além da mudança nas crianças e nos jovens, você percebe alguma mudança nos pais e no resto da comunidade?

Sim, os pais ficam encantados vendo seus filhos jogar capoeira, fazer as apresentações de dança afro e maculelê. E, como sabemos, não há nada mais importante para as crianças do que o reconhecimento dos pais, né? Seguem seu caminho mais seguras de si. Sobre a comunidade, citarei um exemplo bem interessante: tem uma senhora evangélica que afirma com todas as letras “não gostar” da capoeira, mas a neta dela é uma de minhas alunas. Depois que essa senhora compreendeu o trabalho educativo que fazíamos, ela continua afirmando que não gosta, mas ajuda a preparar o lanche do grupo da capoeira quando tem alguma comemoração, me chama sempre para tomar um café na casa dela (e eu vou tomar o café), está disposta a ajudar no que precisar no projeto (e realmente ajuda). Por fim, um dia a neta faltou à aula de capoeira e ela lhe chamou a atenção: “olha, você sabe que eu não gosto da capoeira, mas, se você tá fazendo, tem que ir na aula direitinho”. Sinceramente, se ela não atrapalhasse eu já ficaria feliz, mas se todos que não gostam da capoeira dessem a contribuição que ela dá ao nosso trabalho creio que o mundo estaria bem melhor, essa tolerância religiosa e esse respeito ao diferente também vejo como um resultado do nosso trabalho. Um episódio desse me garante mais uma semana ótima de trabalho...

Revista Educação Pública: Você tem mestrado em Ciência Ambiental, trabalha como servidora publica 40 horas semanais. Como concilia todas essas atividades com sua vida profissional?

Essa questão é o ponto nevrálgico de toda a história. Todos perguntam: “como você consegue?”. Bem, preciso admitir que abro mão de muitas coisas na minha vida para conduzir esses projetos, que também são meus projetos de vida; é comum minha vida pessoal ficar em segundo plano, o que também é um descuido de minha parte. Mas na realidade o que me alimenta é a chama de um sonho, que também é um sonho coletivo, e meus alunos adultos, meu companheiro, meu mestre, meu grupo do Rio de Janeiro e minha família me ajudam bastante e estão sempre comigo. Seria extremamente difícil realizar tudo isso sozinha, e “sonho que se sonha junto é realidade”.

Revista Educação Pública: Você disse que seus pequenos alunos te chamam de professora, mesmo quando não estão treinando. Como você enxerga a relação entre vocês?

Na verdade, os alunos de dez anos prá baixo me chamam de tia, e os maiores me chamam de professora, quase nunca pelo meu nome, e de uma forma muito carinhosa e respeitosa. É a forma deles de reconhecer o valor dos conhecimentos que estou passando para eles. Em relação à comunidade quilombola, essa questão foi gradual, aos poucos fui percebendo como eu era vista na comunidade, quando comecei a ser reconhecida e cumprimentada por todos. Alguns dos adultos e pais deles nem sabem meu nome e me chamam de professora; todos sabem quem é a “professora de capoeira” e o grupo de Vitória que desenvolve o trabalho junto comigo. Me vi naquele papel de professor de antigamente, que existia nas cidades do interior, aquela figura vista como uma autoridade local e respeitada por todos. Tem mãe que me pergunta como está o filho nas atividades, porque em casa a criança está com outro comportamento devido a algum motivo, como separação dos pais. Também me veem como conselheira. Compreender esse papel foi um momento de muita reflexão, de entender a confiança depositada pela comunidade em mim e a minha responsabilidade.

Revista Educação Pública: Quais são seus projetos?

Essa pergunta faz a minha cabeça ferver, porque as possibilidades são inúmeras. Gostaria de ter mais tempo para me dedicar a essa missão com a Capoeira Angola e seus desdobramentos. Mas, resumidamente, posso dizer que com o grupo dos adultos temos o sonho de gravar um CD com as músicas da Capoeira Angola. No quilombo, temos os planos de começar aos poucos uma “Escola Quilombola” para preservação das tradições, através do repasse do conhecimento dos mais antigos para os mais novos. Veja só: determinadas atividades só têm atualmente uma ou duas pessoas na comunidade inteira que dominam. Esse trabalho tem que ser feito urgente, e quero muito potencializar o grupo cultural que já realiza apresentação de dança afro, maculelê e Capoeira Angola, e tem realizado uma revolução na vida daquelas crianças. Na comunidade de Jesus de Nazaré, penso num projeto que envolva a capoeira e a música associada à escola e à família. Já temos iniciado ações nesse sentido, e o grupo tem se fortalecido e as crianças se envolvido mais a partir da presença dos pais.

Mas isso é só o começo, temos muita coisa ainda por fazer, apenas começamos...

10/08/2010

Publicado em 10 de agosto de 2010

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