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Ainda bem que temos Hermeto

Alexandre Amorim

As cortinas se abriram, os aplausos animados agora chegam aos ouvidos como música, mas eu ainda não estou lá. Só ela está no palco, fazendo percussão com as mãos nas pernas e nos braços, com esse riso lindo e aberto que só ela tem. Só ela. Eu ainda estou aqui na coxia, mas logo entro. É uma beleza, mesmo, ficar vendo Aline cantar e batucar no corpo. Nem sei se entro ou deixo que ela fique mais um pouco assim. Comecei a tocar o flautim daqui de dentro, mesmo. O povo aplaude, que bonito. Ouviram lá de fora. Eu entro, ela me olha sem parar de rir e de cantar. Que alegria, que bonito essa gente ter vindo para nos acompanhar. Que bonita que Aline é. Deixo o flautim na mesa, pego esse apito aqui. Só algumas sopradas, que agora a voz de Aline pede o pandeiro, a música se quebrou no ritmo que o pandeiro gosta de ser tocado.

Itiberê está sentadinho ali, na quarta fila. Vou mandar ele subir. Mas deixa Aline terminar. Eu ainda estou com o pandeiro na mão, ainda estou acompanhando. Vou pegar a viola, para a gente terminar juntos essa mistura de embolada com ritmo mineiro. Ela olha, agradecida. Deve estar cansada, coitadinha. Eu aqui com setenta e poucos anos e é ela quem está cansada? Mas veja só. Tadinha, tem razão, está aí cantando e dançando, eu fico só aqui, quieto, tocando. Quanto mais jovem a gente é, mais se mexe e mais se cansa. Pronto, que eu dou os acordes para ela terminar. Cantiga de boi feliz, no pasto. Acabou, ela levanta as mãos para tocar as minhas e nós agradecemos. Itiberê sabe como estou contente de estar aqui. Eu sei como Aline está feliz, também.

Chamei Itiberê e minha afilhada pra subir. Aqui neste palco nós vamos inventar o que fazer, porque o que está feito já se sabe, não tem graça. A plateia acha graça no que digo, mas eu falo a sério. Nada de ensaiar, porque a música está em toda parte, está fluindo. E o que tocamos repetido de outros shows é por vontade, não é por necessidade. Nem é repetição, porque cada vez sai de um jeito. Alguns chamam isso de jazz, eu chamo tudo de música. Agora mesmo Itiberê e a filha tocam juntos e eu só olho, Aline só olha. E já é hora de me juntar a eles, porque esse som pede que a gente se junte, que bata palmas no ritmo, que toque um piano ao fundo, que faça um vocal acompanhando a flauta tão bonita dessa minha afilhada tão doce. Cantamos juntos, tocamos juntos, os quatro. A plateia acompanha, que isso aqui não é apresentação, é comunhão que eu quero.

Quando eles descem do palco, já quero chamar os dois de novo. Daqui a pouco eu chamo. Saudade danada deles, agora que eu moro no Sul. Mas tá valendo a pena, com rumos novos, música nova, Aline me ensinando coisas de infância dela, eu ensinando da minha infância, da minha vida toda. Toda vida a gente fez foi música e agora apresenta essa produção por aí. Por isso, eu não posso dizer se meu show vai ter uma ou cinco horas de duração. Música não tem duração definida, ela vai até se cansar. Mas agora Aline me olha e eu sei que ela quer pegar o violão. Pois pegue. Eu vou ao microfone cantar sem letra e puxar do povo um acompanhamento de voz, até ela vestir o violão e recomeçar sua cantiga sobre os bem-te-vis, os sabiás, a passarinhada que a gente vê e ouve por aí. Tudo a gente ouve, até o movimento das estrelas. Faz “vuuuuuu... vuuuuuu”, devagarinho, como uns móveis muito grandes se arrastando pelo céu.

Já chamei Itiberê duas vezes, e ele sobe de novo, pega o cavaquinho para tocar um xote conosco. É curto, eu quero mais, ele também. A filha sobe, porque nós chamamos, e traz a flauta. Sou eu e ela soprando, Berê no cavaquinho e Aline no violão. A voz dela é que eleva a gente, indo atrás, como num passeio de trilha, sem saber aonde vai dar, mas se entendendo bem entre a gente e o caminho. Eu olho para eles, pra cada um deles. É a felicidade que a gente procura o tempo todo que se esconde nesses olhos e nesse som...

Eu imagino Hermeto Pascoal pensando tudo isso enquanto seu show continua, no palco do Sesc, no Centro do Rio de Janeiro. Imagino o que ele pensa e abro um sorriso durante todo o show. Rio e olho para Maria, a meu lado, que chora e ri, emocionada. E imagino Hermeto feliz de nos ver assim. E esse ciclo virtuoso de alegria continua, quando Maria chega mais perto de mim e me fala ao ouvido: “ainda bem que temos Hermeto”. E ela não precisa dizer mais nada, porque o que se sabe já está sabido. Ainda bem, Maria. Que temos Hermeto e que temos você traduzindo essa felicidade em palavras.

Publicado em 17/08/2010

Publicado em 17 de agosto de 2010

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