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Euler e a natureza dos corpos
Mariana Cruz
Leonhard Euler (1707–1783) é considerado um dos maiores matemáticos do século XVIII, tendo trazido valiosas contribuições à Mecânica, à Óptica e à Astronomia. Após trabalhar na Academia de São Petersburgo, na Rússia, e na Academia de Ciências da Prússia, sediada em Berlim, foi convidado para ser tutor da princesa Anhalt-Dessau, sobrinha de Frederico II, o Grande. Nessa tutoria escreveu mais de 200 cartas à princesa, que mais tarde foram compiladas em um volume intitulado Cartas de Euler sobre diferentes assuntos da Filosofia natural para uma princesa alemã.
Neste texto serão analisadas algumas cartas em que ele trata da natureza dos corpos. Tal recorte foi escolhido para que se tenha melhor compreensão acerca da posição metafísica de que os corpos são dotados de uma força interna que faz com que se atraiam mutuamente.
Na Carta 69, Euler discorda da definição cartesiana sobre a natureza dos corpos, na medida em que esta se baseia no fato de que o corpo é uma extensão de três dimensões: largura, comprimento e profundidade. De acordo com Euler, tal concepção é insuficiente, pois, se analisarmos a ideia que vulgarmente se faz de espírito, alma, veremos que se trata de algo que, apesar de extenso, não pode de modo algum ser considerado um corpo (mesmo que espíritos não existam, tal ideia serve para ilustrar que algo pode ser extenso e não apresentar corporeidade). O mesmo acontece com a ideia de espaço, que, apesar de ter três dimensões, não pode ser considerado um corpo, e sim um lugar que pode ser ocupado por corpos. E, quando isso não ocorre, tal espaço é considerado vazio. Vemos assim, nesses dois exemplos, que não basta ser extenso para algo ser considerado um corpo. Isso nos leva a crer que a definição dos cartesianos acerca da natureza dos corpos é incompleta. Segundo Euler, além da extensão, outra característica que um corpo deve apresentar é a capacidade de ser posto em movimento, mesmo que se encontre firmemente em repouso. Independente do quão rígido ele pareça estar, tal posição pode ser modificada de acordo com a força empregada sobre ele.
Vemos, assim, que o espaço não pode pertencer à classe dos corpos, pois não é possível mudá-lo de lugar. Isso, porém, não basta; há um terceiro elemento necessário para algo ser considerado um corpo: a materialidade, cuja consequência é a impenetrabilidade, isto é, a impossibilidade de ser penetrado por outro corpo, característica essa de que as noções de vazio e de espírito carecem.
A impenetrabilidade não deve ser confundida com o fato de que existem corpos que podem ser penetrados por nós, como a água, por exemplo. O que ocorre é que, ao colocar a mão na água, não estamos penetrando nela, pois na verdade suas partículas cedem lugar para que a mão entre. E ao entrar ela toma o lugar da água, afastando-a. Caso houvesse realmente penetração, a água entraria no interior de nossa pele, e não é o que ocorre. A impenetrabilidade ocorre quando um corpo toma o lugar de outro.
Após tal exposição, na Carta 70 Euler discute a impenetrabilidade dos corpos. De acordo com ele, podemos dizer que o corpo é uma extensão impenetrável, ou que tudo aquilo que é extenso e impenetrável é um corpo. O ar é também um corpo ou uma matéria, pois suas partículas se aproximam sem, contudo, se penetrarem mutuamente, pois é uma lei necessária da natureza que dois ou mais corpos não possam ocupar o mesmo lugar simultaneamente. Desse modo, se faz necessário que um ceda lugar ao outro. Ocorre então a necessidade de investigar a origem dos movimentos e das trocas que acontecem entre os corpos. Quando dois corpos se tocam, cada um vindo de uma direção, eles não se interpenetram e continuam sua trajetória como se nada tivesse acontecido: eles se chocam e o movimento de cada uma deles é modificado. Esta é, então, a causa real das mudanças.
Na carta seguinte, Euler afirma que o corpo pode estar em dois estados: em repouso ou em movimento. Tal afirmação, porém, não é tão evidente como pode parecer. Uma casa parece estar em repouso, mas quando nos remetemos ao fato de que a Terra se move em grande velocidade, vemos tratar-se de um repouso aparente, já que a casa move-se junto com a Terra (aliás, não só a casa, como tudo que está sobre a Terra). Euler propõe, então, que se faça uma distinção entre repouso aparente e repouso verdadeiro; este ocorre quando o corpo permanece sempre no mesmo lugar, não em relação à Terra (como ocorre no exemplo da casa), mas sim em relação ao universo (como o sol), e chama de repouso aparente quando o corpo se encontra na mesma posição em relação à Terra. Tais termos, porém, não parecem estar se referindo à realidade propriamente dita. Pode-se, inclusive inverter tais exemplos acima e dizer que a casa se encontra em repouso assim como toda a Terra e que as estrelas fixas estão em movimento, uma vez que ao mirá-las temos a sensação de que se movem rapidamente. Mas como não podemos estabelecer de fato o que é o repouso verdadeiro, isto é, o que está em repouso em relação ao Universo, consideremos o que é o repouso em relação à Terra.
Dando um grande pulo, chegamos à Carta 77. Aqui Euler discute a origem da natureza das forças. Ele coloca diversas questões, como: se cada corpo tem a capacidade natural de se manter no mesmo estado, sem que haja necessidade de movimentação, de troca com outros corpos, por que os corpos estão sempre modificando seu estado? Se isso se dá graças a uma força externa, de onde vêm tais forças?
De acordo com Euler, todas as mudanças de estado (exceto no caso dos homens e dos animais) são efeitos de causas corpóreas; cabe agora saber se tais forças são provenientes de um ser externo ou se existem dentro dos corpos. A origem de tais forças permanece um dos grandes mistérios do universo que Euler tenta desvendar. Ele considera que a faculdade de manter o corpo em repouso é a mesma que gera as forças para movimentar os estados dos outros corpos. Ele diz que um corpo, apesar de não ser capaz de modificar seu próprio estado, é capaz de modificar o estado de outros. Pensemos em duas bolas de bilhar: uma em repouso e outra em movimento. A que está em movimento bate na que está parada; devido à impenetrabilidade de ambas, a que está em repouso irá dar continuidade ao movimento da que estava em movimento e esta, por sua vez, irá aos poucos ficar em repouso. O que vemos aí é que ambos os corpos têm seu estado modificado em razão da sua impenetrabilidade. É ela que promove a mudança de estados através da colisão deles. Ou seja, a impenetrabilidade da matéria é a causa das forças.
Publicado em 17 de agosto de 2010.
Publicado em 17 de agosto de 2010
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