Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

Autoajuda

Alexandre Amorim

Gabriel Lima Silva viveu a infância e a adolescência muitíssimo preocupado com o fato de ter um “a”, um “i” e um “l” em cada um de seus nomes. Três letras repetidas! E em três nomes! Aquilo havia de ter um significado. Gabriel (Lima Silva) era franzino, sofreu muito com acnes dos 14 aos 22 anos, tem uma calvície precoce que herdou do avô e não tinha os dentes muito bem dispostos em sua boca. Acavalados era o termo usado por dentistas menos profissionais. Não namorou muito, casou-se cedo e teve que largar a faculdade de Filosofia porque Gabriel Júnior nasceu quatro meses depois do casório. Passou a trabalhar na gráfica do sogro, aprendendo todas as funções. O sogro dizia que ele devia passar por cada estágio da empresa antes de poder assumir um cargo de chefia. Gabriel achava que era vingança do sogro, por ele ter engravidado a filha, mas nunca saberemos os verdadeiros motivos. Fato é que Gabriel começou varrendo o chão da gráfica e juntando cartazes mal impressos e livros com defeito de encadernação ou linotipia.

A vida era vulgar, comum, medíocre. Das sete às cinco na gráfica, às vezes horas extras. Sopa ou sanduíche às seis da tarde, leitura do jornal que trazia do sogro, um pouco de tratar do bebê, um pouco de televisão (“essas besteiras da tevê me dão um sono danado”) e o sono propriamente dito. De segunda a sábado. Aos domingos, passeio com a família, almoço com os pais, lanche com os sogros ou vice-versa. Os volumes filosóficos de Santo Agostinho, a República de Platão e a Poética de Aristóteles ficavam na estante da sala, mas traziam mais tristeza do que beleza ao ambiente doméstico. Gabriel era uma pessoa triste, sua única força era saber que as três letras repetidas em seu nome eram um sinal que poucos podiam se orgulhar de ter.

Quando o sogro veio à sua casa numa terça-feira à noite, a mulher abriu a porta e chorou uma lágrima furtiva. Sabia que era a notícia esperada há cinco ou seis anos. Gabriel estava promovido a chefe do setor de cores. Já fora varredor, técnico em manutenção, linotipista, fizera curso de gerência interna por correspondência e agora ganhava o que sempre achou ser merecedor: liderança. Era o “a”, o “i” e o “l”. Eram suas letras da sorte. “Liderança” continha as três letras.

Como chefe, Gabriel precisava fazer serões e começou a se acostumar a sair da gráfica depois de todos, inclusive do sogro. Quando só a luz de seu escritório ficava acesa, punha-se a brincar com as letras repetidas. Tentava formar palavras, mas só conseguia escrever “lia” e “ali”. Uma gráfica fabrica produtos para se ler, isso só podia ser um sinal. O advérbio de lugar, ele considerava outra indicação. Era ali que Gabriel se superaria. Seria o dono daquela gráfica, ele pensava.

Pensava pequeno. Seria mais. Não era homem de ter uma gráfica, ele crescia em pensamento. Não abandonara a vida de filósofo para ser microempresário. Começou a rabiscar suas ideias na mesma página em que tentava achar palavras com suas letras da sorte. Sorte, não! Destino. Um deus que escreve por linhas tortas em um papel cheio de garranchos. Gabriel escrevia, apagava, rabiscava, lembrava-se de teorias filosóficas dos três semestres que cursara. Escrevia, rasgava, jogava ao chão páginas que um varredor cataria. Ele agora era um chefe, um líder e seria mais do que isso.

Quando acordou com o barulho do sogro a bater na porta do escritório, Gabriel ficou satisfeito de ver que as trinta e três páginas escritas à mão ainda estavam ali. Havia criado uma teoria, mais do que isso: uma doutrina. As letras de um nome determinam a vida de um homem. Levantou-se com as páginas na mão, deu bom-dia ao sogro e saiu da sala para o setor de digitação. Passou o dia escrevendo as outras cem páginas de seu sistema filosófico. Eram nove capítulos e um anexo, só sobre as letras “a”, “i” e “l”. Tudo devidamente digitado, linotipado, encadernado. Ele mesmo foi aos jornais, às livrarias, pediu entrevista com políticos e artistas para divulgar sua teoria. Pediu espaço para palestras em faculdades. Gabriel não vivia mais sua rotina medíocre. Não via mais televisão, não jantava, não trabalhava nem dormia. Como todo bom autor de livros de autoajuda, acreditava piamente que sua teoria livraria os homens da vida mesquinha e o faria um exemplo a ser seguido por todos.

Após um mês, que o sogro considerou como suas férias, Gabriel voltou a trabalhar, agora como assistente do sogro. Não vendeu mais do que cinquenta cópias do seu livro. A quantidade de pessoas com três letras repetidas nos nomes não é tão grande assim. Em seu crachá, agora vinha escrito “Gabriel Lima”. O Silva ele abandonou, por achar um nome muito comum. Mas os dois “LL” próximos, no fim e no começo dos dois primeiros nomes, talvez fosse um sinal.

Publicado em 21/00/2010

Publicado em 21 de setembro de 2010

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.