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Shakespeare em sala de aula

Mariana Cruz

Há algumas semanas percebi certa inquietação em meus alunos durante a aula. Num primeiro momento pensei que teriam prova na aula seguinte ou algum trabalho “valendo nota” para entregar. Sempre que isso acontece, a maioria deles entra em pânico e, à medida que a aula vai se aproximando, vão ficando mais tensos e passam a não prestar mais atenção nas aulas que antecedem; ficam com o livro nos joelhos, estudando disfarçadamente. Como se nós não percebêssemos.

Dessa vez, porém, notei que era uma inquietação diferente, vinha acompanhada de uma espécie de excitação, uma quase euforia – o que definitivamente não combinava com o estado mental que antecede uma prova. Resolvi averiguar o que se tratava: era um trabalho de artes sobre Shakespeare.

Talvez por estar lendo um livro de filosofia sobre a estética de Hegel, talvez por ter ficado surpresa com o interesse deles por Shakespeare, ficou claro para mim o caráter universal da arte quando realmente bela. Seja lá de que espécie for – um poema, uma pintura, uma escultura –, a obra ultrapassa os limites temporais e espaciais. A comprovação de tal afirmativa se faz empiricamente; pode ser percebida no sentimento de beleza que uma música de Bach suscita até hoje em ouvintes de diversas partes do mundo; no deslumbramento que um oriental sente ao ver uma pintura de Monet; na harmonia presente nas formas das estátuas dos deuses gregos. Parece que tais obras nada mais são do que a manifestação do espírito humano ao longo do tempo e que, embora tenham as características particulares da época e do local em que foram geradas, carregam em si um caráter universal que faz com homens que nunca pertenceram àquela cultura admirem-na. Assim são as peças de Shakespeare.

Isso pode explicar a empolgação que as peças desse dramaturgo nascido no século XVI, na Inglaterra elisabetana, causou nesses adolescentes do século XXI, estudantes de escola pública com suas correntes de pratas, cabelos com gel, apreciadores de funk e moradores das comunidades da Zona Norte.

Bom... Voltando ao trabalho sobre Shakespeare realizado pelo professor de artes, Marcos Antônio Vieira Xavier. Ele dividiu a turma em grupos e distribuiu entre eles trechos de diversas peças de Shakespeare: Otelo, Macbeth, Romeu e Julieta, Hamlet e Sonho de uma noite de verão. Deu duas funções para cada grupo: primeiro, eles tinham que ler o trecho que lhes coube para então montar o cenário, em miniatura, com a cena que escolheram. E, posteriormente, os integrantes cada grupo deveriam fazer a representação da cena.

Os alunos executaram as tarefas como se estivessem ensaiando para apresentar na Broadway. Durante duas aulas minhas, eles terminavam as atividades rapidamente e pediam um tempinho para dar os últimos retoques na montagem do teatro. E depois, no dia da apresentação, também pediram um tempinho para fazer as passagens das falas. Durante esses dois dias, percebi que nem para o sacro recreio eles foram.

Os teatrinhos ficaram realmente bonitos: eram caixas de papelão – dessas em que vêm os eletrodomésticos – pintadas por dentro e por fora com tinta guache preta. O resto ficava à mercê da criatividade de cada grupo: miniaturas de camas, mesas, cortinas, bonequinhos trajados de reis, princesas e soldados. Um grupo fez uma plateia no teatrinho, com anéis de latas de refrigerante; cada anel representava um espectador. Cada teatrinho tinha um toque original: cortininhas vermelhas, anjo voando, bonequinhos duelando, até um boneco sendo asfixiado com um minitravesseiro, na mais perfeita conjunção de fofura e tragédia.

Uma das meninas do grupo do Otelo estava frustrada pelo fato de o personagem-título da peça ser um boneco branco. Quando vi que tinha outra aluna pintando o capacete de um bonequinho com esmalte marrom sugeri a ela que pintasse o corpo do boneco com o esmalte para ficar mais parecido com o Mouro (achei a ideia do teatrinho tão boa que até me inspirou montar um desses para minha filha, ao invés comprar casinha de bonecas Polly ou castelo da Barbie, que custam caro e já vêm prontos, por que não fazer um desses?).

Finda essa etapa, chegou a vez das encenações. Não vi, pois, estava dando aula, mas acompanhei a preparação: coroas de papel, colares, vestidos. Uma das meninas estava nervosa por causa de um beijo que teria que dar: “eu não vou beijar na boca, não, vai ser no rosto”, e as outras botando pilha: “vai ter que ser na boca”. Apesar de não ter visto, ouvia, da minha sala, os aplausos ao fim de cada apresentação.

A empolgação com que foram tomados me fez ver como o estímulo criativo, além de dar prazer às pessoas, torna a aprendizagem mais eficaz. O professor poderia ter optado por um caminho mais tradicional: “Hoje vamos estudar quem foi Shakespeare. Leiam da página tal a tal e depois respondam às questões que estão no quadro”. Os alunos, então, dariam respostas burocráticas, tiradas do texto, e, finda a aula, nem se lembrariam mais de quem se tratava. E ali morreria Shakespeare.

O que o professor de artes fez foi, ao contrário, ressuscitá-lo: trouxe a obra do escritor para o mundo dos alunos, fazendo-os vivenciar de diversas formas o universo shakespeariano; a partir das leituras que fizeram, do que foi criado em cima delas e do trabalho feito pelos outros grupos. Tornaram-se íntimos do Bardo, pois, a despeito da distância geográfica e temporal, sua obra trata de algo próximo de todos nós: a natureza humana, com suas intrigas, peripécias, amor, morte, traição. E, afinal, não é isso que eles encontram nesses livros sobre vampiros que viraram fenômeno de vendas? A diferença, é claro, está na qualidade, na sofisticação. O que é belo universaliza-se, eterniza-se; o que não é belo, que é puro modismo, tende a cair no crepúsculo. Assim é que Shakespeare entra-século-sai-século sendo encenado, reinventado, reinterpretado, analisado por grandes diretores, atores, intelectuais do mundo.

A forma como o professor conduziu tal processo pode ter sido até mais trabalhosa do que a maneira tradicional, mas deve ter sido muito mais gratificante tanto para ele quanto para os alunos. E talvez seja isso que nós, professores, devamos procurar fazer: tentar tornar nossas aulas mais criativas, prazerosas e originais, tentar buscar sempre o novo, o que não foi pensado; afinal, como diz Hamlet, “há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia”.

Publicado em 21 de setembro de 2010

Publicado em 21 de setembro de 2010

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