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Os propósitos do mal

Pablo Capistrano

Em 1999 fui a São Paulo para um encontro de estudantes de graduação em Filosofia. Era um evento acadêmico na USP, e eu iria apresentar dois trabalhos: um sobre “intencionalidade”, outro sobre “juízos morais”. Lembro estar preso dentro de um ônibus, em um engarrafamento à caminho da Paulista, quando vi um mendigo, muito chapado de qualquer coisa, cair na rua. O sujeito teve o azar de arriar com as pernas bem na saída de um edifício-garagem. O tronco ficou de um lado e as pernas atrapalhando o tráfego. Quando o primeiro carro passou por cima das pernas do pobre homem eu pus as mãos na cabeça. Quando o segundo passou eu pensei em gritar, mas fui contaminado pela absoluta indiferença dos outros passageiros, dos pedestres e dos motoristas daquela avenida. Antes que o terceiro veículo passasse sobre o corpo alcoolizado daquele infeliz, um segurança de terno e gravata parou o fluxo de carros e correu em direção ao que havia sobrado do mendigo.

“Até que enfim alguém solidário nessa cidade!”, pensei, na minha solidão de estrangeiro. Que nada! O segurança segurou as pernas do sujeito e empurrou o corpo do cara para a outra calçada. Tratado como um entulho, o mendigo chapado foi jogado para a outra calçada e o segurança, com uma eficiência que só os paulistas sabem ter, desobstruiu o tráfego.

No outro dia, depois de uma apresentação de trabalhos, estava conversando com algumas pessoas em uma roda e contei esse caso. Enquanto meus interlocutores teciam seus comentários sobre a falta de solidariedade e a brutalidade dos grandes centros urbanos, um senhor, de cujo nome não consigo me lembrar, e cuja realidade às vezes parece questionada pela estranha névoa que insiste em borrar as minhas lembranças daquele tempo, aproximou-se e disse: “Meu filho, quem inventou este mundo foi o diabo”.

Entender o mal sempre foi problemático para a cristandade. Como é possível imaginar que um deus absolutamente bom, onipotente, onisciente e onipresente possa permitir que o mal exista? Agostinho tentou resolver esse problema negando a existência do mal. O que haveria seria o pecado do homem, que não é o mal, mas um erro de julgamento sobre a hierarquia dos bens. Por exemplo: o segurança engravatado que jogou o mendigo para o outro lado da calçada estava pecando não porque era “mau”, mas porque estava pondo um bem inferior (o tráfego de carros) acima de um bem superior (a dignidade humana). A solução de Agostinho valeu até que, no século XVIII, após o sinistro terremoto de Lisboa, Voltaire levantou o problema do mal natural.

Beleza, o pecado pode explicar as escolhas infelizes e miseráveis do ser humano e o tal do “livre arbítrio” parecia resolver aquele problema; mas e um terremoto, que mata milhares de crianças? E um tsunami que arrasta justos e injustos em uma mesma onda de entulho e morte? Como é possível que uma imperfeição desse tipo, que uma desgraça dessa natureza se abata sobre inocentes da mesma maneira que destroça os ímpios?

Como o casal Hernandes, que justificou o desabamento do teto da Igreja Renascer, muitos cristãos pensam que deve haver um propósito no mal, um sentido, alguma razão que nos cure do pavor da absoluta amoralidade das leis físicas.

Quando eu li sobre a heresia cátara no sul da França e a cruzada que destruiu a cultura provençal, soube que se encontram ainda hoje, em algumas igrejas daquela região, estranhas figuras esculpidas de demônios que sustentam o mundo, indicando que nosso universo não pode ter sido criado por um deus absolutamente bom e que seja, ao mesmo tempo, onipotente.

Parece que os cátaros, como os antigos gnósticos cristãos dos primeiros séculos, concordavam com a estranha assertiva daquele senhor na USP. Este mundo é miserável demais para ter sido criado por um deus bom. Ou ele seria mau, ou seria incompetente o suficiente para fazer uma bela porcaria.

Curiosamente, essa estranha ideia parece fazer parte de uma das inúmeras heresias que se expandiram pela Idade Média, emersas dos múltiplos universos cristãos que compuseram os primeiros séculos da era comum. Os gnósticos acreditavam que Jesus havia sido aprisionado no inferno por um demiurgo maligno. Esse demiurgo havia condenado a humanidade a um sofrimento sem fim e construído um mundo para ser o cenário dessa catástrofe. O inferno é aqui, e assim todos aqueles que ajudaram Jesus a se libertar da prisão do próprio corpo, como Judas ou Pilatos, eram bem vistos pelos gnósticos, porque tudo parecia fazer parte de um grande plano cósmico de escape.

Jesus não seria o mesmo deus do Antigo Testamento (o demiurgo maligno que criou esse mundo meia-boca). O reino de Jesus não era deste mundo, mas de um outro. Assim, a subida de Jesus ao céu, tal qual a fuga do planeta Terra em uma espaçonave alienígena, mostrava a toda a humanidade a rota de escape deste inferno, criado por um deus sádico ou incompetente.

Acho que dá para entender por que a Igreja patrocinou a cruzada contra os cátaros no sul da França, não é?

Compreender por que a dor existe e por que muitas vezes os justos sofrem mais do que os canalhas é difícil, se você imagina (como os judeus) que o criador de tudo é justo ou (como os cristãos) que o criador de tudo é sumamente bom e sumamente potente.

É preciso encontrar um propósito para o mal para que o bem não perca, na alma dos homens, o parco apelo que ainda tem.

Publicado em 5 de outubro de 2010

Publicado em 05 de outubro de 2010

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