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Tanto mar...
Mariana Cruz
Entrevista com Adriana Schneider, diretora do atual espetáculo do Grupo Pedras, Reino do mar sem fim.
Era uma vez um homem chamado Severino da Cocada. Ele era barbeiro e morava na Zona da Mata pernambucana. Mas ele não era só barbeiro, era também mamulengueiro e cantador de romances daquele lugar. Um dia ele encontrou uma menina que tinha seus vinte e poucos anos, sardas na cara e, era sim, uma menina. Ele contou para ela uma história de um folheto de autoria de um poeta e violeiro da região, chamado Severino Borges da Silva. Essa história ficou na cabeça da menina. Só que antes mesmo de tal encontro, ela já estudava – e se encantava – com a arte do povo daquela região, principalmente no que dizia respeito ao Mamulengo e ao Cavalo Marinho. Quatorze anos se passaram desde que tudo começou. Nesse tempo ela fez mestrado e doutorado. E também formou um grupo de teatro, pois ela sempre fora atriz, desde pequena.
Mesmo com tanta coisa para estudar, tanto trabalho para fazer e uma filha para criar, a história não lhe saía da cabeça. Mas não era uma história de teses e dissertações, de bancas e conceitos; era história de romance: tinha princesa, bruxa, monstro e mar. Era também a história dos homens de lá da Zona da Mata, os contadores, cantadores, os mamulengueiros, todos aqueles poetas, tocadores de rabeca, de sanfona e viola. E tinha mais do que isso: tinha brincadeira. Isso que os livros da academia não conseguiam mostrar. Era a história de tanta gente e de tanta coisa. Era uma história do tamanho do mar. Aquela história continuava lá querendo um espaço maior, querendo ser mostrada e apresentada para todo mundo, querendo ser ouvida e cantada. Então a menina montou junto com seu grupo de teatro – que no próximo ano comemora dez anos de existência – uma bela peça sobre a história: O reino do mar sem fim.
O grupo chama-se Pedras, e a menina, Adriana Schneider, é diretora da peça e professora no curso de Direção Teatral da UFRJ. Ela conta a seguir um pouco dessa fascinante história.
O que despertou o interesse pelas expressões teatrais populares de Pernambuco?
Foi durante a faculdade que comecei a me interessar pelas questões da cultura popular brasileira. Fiz comunicação social (jornalismo) na PUC-Rio entre 1990 e 1994. Comecei a estudar sobre o bumba-meu-boi maranhense. Logo que me formei, fiz duas longas viagens aos Andes e depois morei um ano no Acre, quando trabalhei num projeto da Universidade Federal do Acre que prestava assessoria às escolas dentro dos seringais; fiz um pouco de teatro nos seringais com uma atriz acreana, a Karla Martins. Conheci e vivi de perto a realidade e a cultura amazônica. E continuava me perguntando sobre as questões da teatralidade brasileira, sobre o porquê da ausência de diversas expressões populares teatrais nos currículos das faculdades de Teatro e da História do Teatro no Brasil. Foi quando me apareceu a obra de Hermilo Borba Filho, um teatrólogo pernambucano que escreveu um livro fundamental sobre o mamulengo e outros sobre as expressões teatrais populares pernambucanas. Em 1997, decidi ir para a Zona da Mata pernambucana conhecer de perto essa arte e esses artistas. A Zona da Mata me impressionou exatamente por conjugar uma grande contradição: a realidade cruel da plantation açucareira, que carrega fortemente a herança açucareira dos tempos coloniais (o estabelecimento dos primeiros engenhos na região datam já do século XVI), com uma intensa atividade de brincadeiras, ritmos, expressões artísticas populares das mais diversas, feita por trabalhadores comuns, que vivem de perto a contradição da cana e seus processos complexos de produção.
Como foram os primeiros contatos com os artistas da Zona da Mata pernambucana?
Foram várias viagens a Pernambuco. A primeira foi em 1997, na companhia de minha filha, Flora, que na época tinha cinco meses de idade. A recepção dos mamulengueiros foi a mais franca e aberta possível. Na ocasião, conheci os mestres Zé Lopes, de Glória do Goitá; Zé de Vina, de Lagoa de Itaenga; e João Nazaro, que veio a falecer logo depois. Fiquei fascinada com a intensa atividade mamulengueira na região, com a complexidade do mamulengo e todos os seus personagens fixos. Fiquei encantada com o virtuosismo dos artistas, com a destreza na criação dos bonecos e com a estreita relação com o público local, que conhece todos os meandros e detalhes dessa arte, compartilhando um universo específico de conhecimento.
Depois, trouxe esses mestres algumas vezes ao Rio de Janeiro para apresentações e realização de exposições e oficinas, inclusive para as bancas de mestrado e doutorado. Em 2001 concluí a dissertação de mestrado em Teatro (na UNIRIO) sobre o assunto. Em 2007, concluí minha tese de doutorado em Antropologia (na UFRJ, com um ano e meio de estudos em Berlim, na Alemanha), ampliando e aprofundando ainda mais a questão, tratando também da relação do mamulengo com outras brincadeiras (expressões populares) da Zona da Mata, como o cavalo marinho pernambucano. Ou seja, foram diversos trabalhos de campo: em 1997, em 1999 e em 2004.
Como foi seu encontro com o Severino da Cocada?
Havia um mestre mamulengueiro que tinha sido mestre de Zé Lopes e Zé de Vina, chamado Severino da Cocada. Fui em busca desse mestre numa cidade chamada Chã de Alegria. Lá encontrei um Severino da Cocada, mas não o que eu procurava, como vim a saber depois. Esse senhor era barbeiro, e em sua casa havia uma barbearia. Enquanto ele fazia a barba de um cliente, começou a me contar que tinha brincado mamulengo, mas apenas por quatro anos. Pedi para gravar uma entrevista e ele me falou livre e abertamente sobre a sua história de vida e sobre a sua relação com diversas expressões da Zona da Mata. Mas sempre me perguntava se podia cantar um romance. Até que pegou uma caderneta onde anotava as dívidas de seus fregueses na barbearia, abriu uma página em branco e começou a cantar durante 16 minutos, sem parar, lendo nas páginas vazias O romance do reino do mar sem fim, que depois soube ser um folheto de autoria de Severino Borges da Silva, importante cantador e escritor de folhetos de Timbaúba, também na Zona da Mata, falecido em 1991.
A voz de Severino da Cocada era evocativa, densa e muito forte. As imagens do romance ficavam claras, pairando no ar. Tive realmente um momento de êxtase, uma epifania, propriamente. Isso foi em agosto de 1999; desde então sabia que aquele material deveria ganhar a cena, por ter sido um evento único, dessas surpresas que aparecem durante o trabalho de campo e que são a expressão da própria vida pulsante. Nunca mais encontrei o Severino da Cocada, diferentemente dos outros mamulengueiros, que se tornaram meus parceiros ao longo de todos esses anos. Soube este ano (2010) que ele faleceu em 2005; que teve 47 filhos de diversas mulheres e que, apesar de ter se tornado evangélico, nunca deixou de cantar os romances que sabia, pois tinha sido vendedor de folhetos de cordel nas feiras do Nordeste.
Nesses quase 10 anos de existência do Grupo Pedras, diversas peças foram montadas. Por que só agora fizeram uma peça sobre esse tema?
Não era possível fazer um espetáculo caindo no lugar comum das peças "inspiradas em cultura popular", com muito pano de chita, fitas coloridas, personagens pitorescos etc. Era preciso abordar a temática como ela se apresenta em campo, com suas contradições, com a sua relação intensa com a contemporaneidade. Então era preciso processar e conhecer muito bem esse universo e todas as questões que o cercam. Também nós, artistas do Grupo Pedras, precisávamos encontrar formas mais apropriadas de produção; havia, além disso, outras prioridades artísticas que o grupo almejava realizar. Depois de tudo realizado, além de todo o meu percurso acadêmico traçado e percorrido, o que inclui a entrada para ser professora no curso de Direção Teatral da UFRJ, em agosto de 2009, eu e o grupo nos sentíamos maduros para processar artisticamente o conteúdo e a densidade humana desse conteúdo reunido ao longo desses 14 anos de pesquisa. Em 2011, o grupo completará 10 anos de trabalho continuado com os mesmos integrantes. O reino do mar sem fim é nosso quarto espetáculo.
O que significa a realização desse espetáculo, após todos esses anos de estudo?
Esse espetáculo é o resultado de um longo percurso de vida e de trabalho. São 14 anos de buscas, estudos, mudanças. Ele é um divisor de águas para mim, porque é o fechamento de um grande ciclo, que se abre de uma nova maneira, enquanto o realizamos. É a possibilidade de digerir poeticamente questões de que a ciência sozinha não dá conta. Ele reverencia esses homens e mulheres, trabalhadores comuns brasileiros que realizam maravilhas criativas, que dão sentido lúdico e potente à verdadeira razão de fazer arte de forma plena e demasiadamente humana. Também marca um novo momento para o grupo, que experimenta nesse trabalho todo o seu processo de aprendizado ao longo desses anos. E tem isso reconhecido pelos patrocinadores, através dos três editais conquistados (Eletrobrás, Fate/Sec. Municipal de Cultura e Secretaria de Estado de Cultura). É também a realização e a reverência a parcerias afetivas e de trabalho de muito tempo. Há muita coisa em jogo nesse espetáculo, e só o tempo dirá o que será colhido. Há muita coisa envolvida: muito suor, muita dedicação, cuidado e, principalmente, amor pela arte do teatro e celebração de parcerias.
Sobre o Grupo Pedras
Criado em 2001, no Rio de Janeiro, o Grupo Pedras é formado pelos atores Adriana Schneider, Ana Paula Secco, Diogo Magalhães, Georgiana Góes, Helena Stewart, Luiz André Alvim, Marina Bezze e o cenógrafo/cenotécnico Marcos Feio, mas que também são diretores, escritores, iluminadores, figurinistas e pesquisadores, gente de teatro aprendido nas coxias, interessada em todos os meandros dessa arte. Desde a sua criação, o grupo investiga a arte do ator, a partir de desejos e treinamentos diversos: a utilização de máscaras; a experimentação de jogos teatrais; a vivência de expressões populares brasileiras. O Grupo Pedras é um inquieto carpinteiro de dramaturgias inéditas fundamentadas no ator-criador, em que se cultiva a relação ator-espectador através da utilização lúdica do espaço cênico. “Os espetáculos Restin (2002), O muro (2004), Mangiare (2007) e O reino do mar sem fim (2010) são as nossas descobertas, a possibilidade de aprender a trilhar um caminho de liberdade.”
O reino do mar sem fim, a história de Severino da Cocada e o presente que ele nos legou são eventos raros por sua densidade humana e poética. A relação entre a realidade e a ficção é uma questão que se coloca com força e naturalidade nesse espetáculo. No Grupo Pedras, a criação da cena e a da dramaturgia acontecem juntas na sala de trabalho, num intenso, conflitivo e criativo processo de colaboração de todos aqueles que embarcam no projeto da vez. São muitas idas e vindas, muitas negociações, achados e desapegos, em que a única certeza é a confiança no tempo, no próprio teatro.
A cena teatral é implacável. É ela quem dita. Para ela se voltam todas as escutas e reverências. O processo colaborativo coletivo, expressão quase redundante, ainda é mal compreendido pela gente de teatro, muitas vezes pensado como uma prática de experimentação ingênua, quando na verdade o que está em jogo é a confluência de todas as autorias submetidas à cena. Por isso não sabemos e não queremos fazer de outra maneira. Nos espetáculos do grupo, as funções de cada um estão sempre claras e cuidadosamente respeitadas, mas as decisões são dialogadas permanentemente numa trabalhosa, exaustiva e, às vezes, angustiada construção. “Aqui o sacrifício perde seu sentido doloroso e revive seu significado de ofício sagrado. No teatro em que acreditamos, a sala de trabalho é o espaço onde tudo é gestado e enfrentado.” Para estar ali, é preciso ser inteiro, é preciso desejar a obra, é preciso cultivar o amor da paciência; assim, as ideias não caem do céu, florescem, dão frutos.
Em O reino do mar sem fim, a criação compartilhada colocou lado a lado amigos, parceiros de longa data. A administração amorosa de Roberta Schneider, a sensibilidade musical de Kiko Horta, a delicada engenharia de bambus de João Bina, o foco preciso de Maria Mazzillo, a presença de Cristiane Cotrim, a avidez de Ronaldo Alves, o traço síntese de Pedro Pamplona, o olhar dançante de Rodrigo Savastano são mais que presentes para o grupo; são a rede criativa de afetos, de buscas comuns, do próprio amadurecimento coletivo.
“Os novos parceiros nessa embarcação foram como estrelas-guias nessa longa travessia. Miguel Vellinho trouxe a possibilidade de entrar no mundo lúdico das imagens animadas; sua presença na sala de trabalho, com suas visões, provocações e cuidado nos detalhes, nos deixou carentes de sua companhia. Carlos Alberto Nunes soube digerir minuciosamente as inconstâncias da criação, traduzindo-as em espaço cênico. Luiza Leite compartilhou o prazer de sua escrita poética, generosa e livre. Por fim, Camila de Aquino, uma operária das águas, a presença fundamental nesse processo, entregue de corpo e alma, diariamente, nesse grande mar. Muito obrigado a todos!
Entre a escrita de projetos, concepções de cena, treinamentos corporais, ideias dramatúrgicas e muita comida, vamos recriando e aprendendo o melhor modo de gestão, aquele possível a esse grupo que se fortalece e se estrutura a cada montagem. “Reconhecemos na pluralidade, no jogo, na brincadeira, o encontro com a linguagem que permeia nosso repertório, que nos define.”
Serviço:
O reino do mar sem fim, com o Grupo Pedras. Direção de Adriana Schneider.
Elenco: Marina Bezze, Helena Stewart, Diogo Magalhães e Adriana Schneider.
Temporada: dias 27 e 28 de novembro de 2010
Classificação: 14 anos
Ingresso: R$ 30,00
Duração: 1h10min
Local: Centro de Referência de Cultura da Infância / Teatro Municipal do Jockey – Rua Bartolomeu Mitre, 1110 – Gávea (entrada de pedestres), Rio de Janeiro-RJ.
Estacionamento gratuito pela Rua Mário Ribeiro, 410.
Telefone: (21) 3114-1286.
Capacidade – 80 lugares.
A bilheteria abre 90 minutos antes do espetáculo. Acesso para deficientes físicos.
Mais informações sobre a peça: http://www.jb.com.br/caderno-b/noticias/2010/10/16/mundo-vasto-mundo/
23/11/2010
Publicado em 05 de outubro de 2010
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