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Quando (e onde) a arte se mostra?

Alexandre Amorim

No começo do século XX, Marcel Duchamp resolveu enviar a uma exposição de arte um mictório deitado ao contrário e pintar bigode e cavanhaque sobre uma cópia barata da Mona Lisa, mudando o nome do famoso quadro de Da Vinci para “LHOOQ” (uma brincadeira com os sons dessas letras que, em francês, significa “ela tem fogo no rabo”). Por que esses dois atos se tornaram famosos e até hoje são discutidos em rodas intelectuais e aulas de belas-artes é justamente a razão pela qual se discute a função da obra de arte. De modo subversivo e ao mesmo tempo iconoclasta, isto é, com desejo de ver a obra de arte livre do ambiente fechado em interesses mercadológicos e conceituais, Duchamp reinventava a questão “o que é arte”, propondo que mesmo os objetos já prontos (os chamados ready made) podem ser vistos como artísticos. A partir de Duchamp, como classificar o que é um objeto de arte?

Ligar arte à subversão não é um privilégio, nem mesmo uma primazia de Duchamp. Hieronymus Bosch e Pieter Bruegel, nos séculos XV e XVI, já traduziam em suas pinturas a vontade de se rebelar contra normas estéticas e sociais, desenhando cenas caóticas em que personagens monstruosos encenavam passagens bíblicas ou relativas aos pecados determinados pela religião protestante. Ao trazer para o público um modo desfigurado de  representar o homem e a sociedade, esses artistas lembram que o estranhamento é também um modo de nos relacionarmos com a arte. Assim, seja como protesto social, seja como proposta estética, a provocação é um instrumento artístico, tanto quanto pincel, tinta e óleo de linhaça.

Hoje temos uma questão de valoração do objeto artístico que passa justamente pelo fato de que tudo pode ser arte. Em uma bienal de São Paulo, cadeiras de rodas amontoadas em um canto do prédio foram confundidas com obra de arte, quando eram apenas cadeiras de rodas esperando para serem usadas por quem não podia se locomover normalmente em um espaço tão grande. A velha anedota de apontar os extintores de incêndio de um museu como “esculturas modernistas” é um sinal dessa dúvida constante na cabeça do público: o que é obra de arte? E, principalmente, por que aquilo é uma obra de arte?

O fato é que não se consegue mais uma definição unânime do que é arte e, portanto, não há como definir uma razão para chamar um determinado objeto de obra de arte. Sabemos que os quadros de Van Gogh ou de Picasso são obras artísticas porque o tempo cuidou de conservar esse conceito. A obra de Nuno Ramos, exposta nesta Bienal de São Paulo, é classificada como arte porque sabemos que Nuno Ramos é um artista ou porque está numa bienal? São torres pretas sobre as quais três urubus (de verdade) sobrevoam. Há alguns anos, outro artista expôs duas carcaças de perus sendo comidos por vermes e pequenos insetos. A arte, vista antigamente como imitação da natureza, é nesse caso a própria natureza trazida para o museu.

Se existe uma mensagem por trás dessas obras, cabe ao observador determinar, uma vez que o artista não a expressa nem mesmo no título da obra. É como os quadros abstratos que não têm títulos: cabe ao espectador traduzir para si um significado ou uma sensação estética a partir do objeto artístico. Essa liberdade pode fazer aumentar a sensibilidade artística do público, mas também pode distanciar o artista de uma comunicação com o observador de sua obra, uma vez que aquele objeto não necessariamente traduz para o observador o que o artista queria expressar.

A distância entre o artista e o observador parece ter aumentado, em relação à obra propriamente dita, mas a oportunidade do observador de criar sua própria interpretação da obra causa, por outro lado, proximidade entre eles. São indivíduos com capacidade de criar interpretações através de uma sensibilidade estética. Essa democratização da arte não deixa de ser um resultado da iconoclastia e da subversão de artistas que, ao longo dos séculos, insistiram em libertar as obras de uma clausura em que apenas uma elite poderia apreciá-las e interpretá-las. A indefinição do que é arte é resultado dessa subversão e, se a resposta ainda não foi dada, talvez não deva mesmo ser.

Mas ainda existe uma resistência grande em aceitar que arte não é uma ciência (exata ou inexata). Muitos não aceitam grafites de rua como arte, por exemplo. Para fazer arte, é necessário técnica, mas não há técnica ou ciência que consigam conceituar essa arte. E se uma obra ainda precisa ser exposta em museus ou em mostras para que seja conceituada, a despeito da ironia de Duchamp e da indefinição do conceito propriamente dito do que é arte, isso significa que ainda existe uma tentativa de conceituação. Uma obra ainda deve estar em seu local apropriado – museus, mostras, galerias – e cercada pela segurança de que, se está ali, é porque é uma obra de arte. E a arte não pode estar atrelada a nenhum tipo de segurança. Arte é sinônimo de ousadia, de não se prender a onde, como ou quando. Não conceituar uma obra de arte talvez seja um grande passo para apreciar esse trabalho do modo que ele merece: sem se prender a predisposições alheias que acabam por limitar nossa visão e nossa sensibilidade.

Publicado em 19 de outubro de 2010

Publicado em 19 de outubro de 2010

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