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África e africanidades

Alexandre Amorim

Construções identitárias

Imagem da página inicial do site
http://www.africaeafricanidades.com

Durante o ano passado, o músico e escritor Chico Buarque declarou sua repulsa por uma parte da população brasileira que busca suas origens europeias e se esquece de suas origens africanas. De fato, a consulta feita pelo IBGE em 1999 traz 54% de brasileiros declarando-se brancos, enquanto 45% se dizem negros ou pardos. Ou seja, em um país colonizado por europeus que foram buscar a força de trabalho majoritariamente nos escravos africanos, a miscigenação dos dois grupos ainda é um tabu. O compositor de olhos cor de ardósia reclamava do preconceito que tenta esconder uma realidade que deveria ser, ao contrário, comemorada: a influência negra no Brasil é fator essencial para o desenvolvimento da nossa cultura, diversa e ao mesmo tempo abrangente.

A revista África e Africanidades, online desde maio de 2008, vem mostrando como lutar contra esse preconceito apresentando artigos, resenhas e entrevistas de qualidade. Centrada principalmente nas áreas cultural e pedagógica, a revista se dedica a temas africanos, afro-brasileiros e afro-latinos. A maioria dos artigos é escrita por acadêmicos de áreas como literatura, antropologia e pedagogia e traz assuntos que ainda podem ser considerados tabu ou inusitados, como: o funk carioca deve ser ligado à cultura ou ao crime? Exu pode ser visto como um símbolo pós-moderno? A origem do tango pode ser traçada desde a África?

O objetivo da revista é promover “a reflexão e o debate acadêmico e pedagógico sobre temas como a história da escravidão, relações raciais e os complexos processos de construção identitária”. A africanidade inerente ao brasileiro está em cada espaço, discutida em cada parágrafo dos textos.

O periódico, que não está preso a nenhuma instituição de ensino ou de qualquer iniciativa pública ou privada, é trimestral e gratuito, graças à iniciativa de professores, pesquisadores, estudantes, técnicos e especialistas. A composição central do site se divide em quatro partes: o Espaço Acadêmico – artigos, resenhas e relatórios de pesquisa; a seção África e Africanidades na Sala de Aula – dedicado a alunos e professores da Educação Básica; as Colunas, que pretendem informar e entreter sobre diversos temas, como direito, finanças, cinema, saúde e comportamento; e um catálogo de fontes de pesquisa: museus, centros culturais e bibliotecas.

Os temas abordados nas seções se espalham também por outros espaços da revista: além do menu da revista, existe um acesso por áreas temáticas, divididas em Culturas, Educação, Histórias, Literaturas e Sociedades. Essa divisão parece acontecer mais por uma questão prática do que ideológica ou filosófica, já que os temas podem se confundir entre as áreas propostas. A divisão, portanto, tem a intenção de ajudar, e segue a ideia de que um mesmo assunto pode ser procurado em áreas distintas. No tema Sociedade, por exemplo, achamos textos culturais como um ensaio sobre a multimídia em Heitor dos Prazeres ou filmes sobre os Panteras Negras e Malcolm X. Esse modo de busca se mostra funcional mesmo quando o assunto se torna específico, como a educação afro-indígena.

Um grande trunfo da revista é ter organizado sua capa (a tela principal) com os assuntos relativos àquela edição, mas trazer também, em suas opções de menu, todos os arquivos já publicados. Além disso, a boa distribuição da informação, o uso inteligente de ferramentas próprias para a publicação na internet (menus, hipertexto, blocos de texto a serem expandidos) e o ótimo equilíbrio entre cores, imagens e texto tornam a leitura da revista fácil, ao mesmo tempo que os artigos se aprofundam. As chamadas dos textos estão em manchetes e pequenos blocos introdutórios, como a maioria dos jornais digitais, mas a íntegra desses textos está sempre no formato pdf, que se abre no próprio browser, facilitando a leitura e mesmo a impressão.

Com enfoque na cultura e, principalmente, na literatura e na educação, vale a pena visitar a seção de resenhas literárias, que abarcam desde Stuart Hall e sua análise do pós-modernismo até um estudo folclorista de Cecília Meireles sobre batuque, samba e macumba. A seção Sala de Aula traz também artigos que deviam estar na pauta de qualquer pessoa interessada em educação no Brasil: jogos, arte e educação, cotidiano escolar, formação docente e outros assuntos são discutidos sob a luz da resistência contra o preconceito e o racismo. Se cultura e educação são assuntos marginalizados e deixados sempre em segundo plano em nossa sociedade, esses valores voltados à negritude sofrem duplo preconceito: o social e o racial. As questões, quase sempre voltadas à busca de identidade, são justificadas: o papel geralmente secundário e mesmo ridículo do negro na literatura infantil ou o racismo encontrado nas formas tradicionais de estudar as diferenças (mostrando apenas os trajes e pratos típicos de uma raça, sem se aprofundar em sua cultura). Se a revista se preocupa em educar e trazer cultura de modo transparente e sem ranços de preconceito, deve-se elogiar essa preocupação: a ignorância e a aprendizagem equivocada do que é a cultura negra nos leva a ignorar o que nós mesmos somos.

Os desdobramentos da cultura afro-brasileira são mostrados através de estudos e apontamentos de livros, entrevistas e artigos. As relações étnicas na educação, na sociedade e mesmo como questão de gênero e sexualidade servem como caminho para descobertas, como de que modo a visão do negro pode ser desvirtuada pela mídia e a veiculação de sua imagem. Já que a revista não se intimida em traçar relações interdisciplinares e, principalmente, multiculturais, a arte de descendência africana é demonstrada como diretamente aplicada aos direitos humanos, e a busca identitária passa também por religiosidade e tradições orais.

Mais do que tudo, a revista África e Africanidades reforça a necessidade de não só afrodescendentes, mas de toda a população nacional participar social e politicamente da preservação da cultura negra através principalmente da educação como força motriz para a mudança. O site chega a citar a necessidade de “luta e resistência em espaços urbanos e rurais”, o que pode parecer exagerado para quem nunca se preocupou em afirmar sua identidade através de um mar de preconceitos, mas deve estar na agenda de todo cidadão brasileiro que espera participar e se fazer representar, porque a ignorância é o que vem nos mantendo presos a um estado social medíocre.

Publicado em 02/02/2010

Publicado em 02 de fevereiro de 2010

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