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Deficiência como potência

Alexandre Amorim

A professora Joana Belarmino de Sousa, da Universidade Federal da Paraíba, é cega. Nasceu assim e entende sua deficiência visual como potência. Realiza palestras, escreve livros, ministra aulas e usa seu notebook para organizar seus escritos. Tem, enfim, uma vida acadêmica muito parecida com a de outros tantos professores. Talvez a diferença maior entre ela e seus colegas seja o hábito de trazer para sua profissão um aspecto pessoal de sua vida: Joana decidiu pensar a cegueira academicamente, isto é, utilizando a ciência, a arte e a crítica. Entre os muros universitários, acaba por transformar o trabalho em sua vida, mas Joana resolveu seguir o caminho inverso.

E não é só por isso que essa doutora em Comunicação Semiótica é referenciada (e reverenciada) neste texto. Ao pensar a cegueira, Joana nos traz uma ideia ainda mais subversiva do que é considerado pelo senso comum como apenas uma deficiência: ela afirma que a cegueira potencializa um outro tipo de visão. E cita questões do senso comum que demonstram preconceito: quais são as imagens formadas na mente de um cego de nascença? Como sonha um deficiente visual? As perguntas, feitas por quem tem a visão saudável mas ignora as diferenças, carecem de cuidado. Estamos acostumados a “ver demais”, como diz Joana. São luzes, cores, movimentos e distrações em todas as direções – e para todos os sentidos. Nossas sensações a partir de olfato, tato, gosto, visão e audição são amalgamadas em um pacote a ser processado pelo cérebro de formas tão variadas que provavelmente algumas informações serão “guardadas” sem passar pelo consciente ou sem serem racionalizadas. Ao deficiente visual, as sensações de cor e luz podem ser parciais ou mesmo nulas, mas a potência do que seria a visão se transforma em imaginação e criação.

Aqui, este texto deixa de se concentrar apenas na cegueira e passa a analisar um termo cunhado por Joana Belarmino para definir o quase-hiato na percepção entre duas pessoas que dialogam ou se comunicam. Joana chamou esse estado de “roçar”. Entre um sinal emitido e sua conscientização e percepção, existe um espaço que ainda não foi definido. O que é dito por uma pessoa não é recebido exatamente da mesma forma por uma outra. O emissor de uma mensagem usa um discurso carregado de sua história e de sua psique (se é que história e psique podem se encontrar divididos) e pronuncia seu discurso através de uma linguagem que, se é baseada em uma língua comum ao emissor e ao receptor, é também construída por uma sintaxe subjetiva ao primeiro. Por outro lado, o receptor tem sua audição ou leitura constituída de sua própria formação subjetiva e pode compreender a sintaxe do emissor de uma maneira nova e particular. Numa convivência, esses discursos podem se tornar complementares e justapostos, mas existe ainda assim um espaço indefinível em que se colocam a primeira intenção do emissor e a primeira vontade do receptor. Se a mãe de uma criança lhe diz que vai botá-lo de castigo, a criança entende a ameaça, mas imagina o castigo conforme seus medos e experiências. Mesmo a mãe emite o pronunciamento, mas não sabe ainda muito bem que tipo de castigo será e como ele será ministrado. Existe intenção, vontade, contravontade e comunicação, mas também existe ali um diálogo complementar formado apenas de potência. O ameaçante, a ameaça e o ameaçado se encontram em algum ponto indefinido, mãe e filho roçam suas experiências apenas para poder haver a comunicação.

Portanto, existe algo indefinível e que, ainda assim, deve ser considerado como parte da comunicação entre duas pessoas e da compreensão do outro. Usando a cegueira como exemplo, perguntar a um deficiente visual quais são as imagens formadas em sua mente significa querer chegar a esse ponto indefinido – e indefinível – da comunicação. Através dos outros sentidos, um cego pode construir uma imagem mental, mas essa imagem jamais será construída da mesma forma que um vidente o faria. Os códigos de interpretação entre um deficiente visual e um vidente diferem muito, a ponto de não haver possibilidade de uma compreensão dessa codificação. Não importa nada a uma pessoa cega que um objeto seja azul ou vermelho para que ele forme uma imagem mental desse objeto, mas também ao vidente fica esquecida muitas vezes a faceta olfativa ou mesmo tátil do objeto quando ele constrói sua imagem mental do mesmo. Para que haja correspondência comunicativa entre pessoas de experiências tão diferentes, é necessário que os desejos de ambos busquem o outro, a alteridade. Interpretar é, além de impor um valor subjetivo ao objeto a ser interpretado, também buscar a alteridade contida nesse objeto, mesmo que essa alteridade nunca seja completamente alcançada.

Fica, então a potência como resposta. O roçar entre duas experiências diferentes, que buscam se complementar. Um vaso de flores pode me trazer a lembrança de um quadro de Van Gogh, a felicidade de um aniversário e tristezas de um velório. Pode significar tantas e tão variadas coisas que, ao descrever esse vaso de flores, meu interlocutor provavelmente vai ter uma ideia diferente do objeto que vi. E, além disso, vai adicionar à imagem que tentei passar suas próprias experiências: um arranjo visto em um casamento, uma lembrança da mesa da família, um quadro de Renoir, quem sabe. Quem sabe no que aquele vaso de flores original irá se tornar?

O que se sabe, mesmo, é a certeza de que podemos conversar, tentar enxergar a alteridade e que podemos viver e conviver através dessa potência, dessa possibilidade constante de nos entendermos, mesmo que num átimo de instante, ou mesmo que nunca, mas numa constante busca. Se vamos definir essa busca nunca finalizada como deficiência ou como uma potência, um roçar no outro, cabe a nós escolher.

Publicado em 3 de novembro de 2010

Publicado em 03 de novembro de 2010

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