Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

Muito além do campo de visão

Gabriel Cruz

No último dia 4 de novembro foram exibidas duas sessões especiais de curtas-metragens para deficientes visuais no auditório do Instituto Benjamin Constant, no Rio de Janeiro.

As sessões fizeram parte da mostra do Dia Internacional da Animação, que este ano foi comemorado em mais de 400 cidades brasileiras no dia 28 de outubro.

“Eles estão chegando”, me disse a professora, referindo-se aos alunos do Instituto. Marão, animador que coordenou o D. I. A. junto comigo, estava lá pelo segundo ano consecutivo. Ele havia trazido consigo alguns bonecos que havia feito em sua última animação, chamada Eu queria ser um monstro.

“Ano passado” me dizia Marão, “eu trouxe papel e aquelas colas coloridas. Como tinha feito uma animação tradicional no papel, eu desenhei as personagens com cola para que eles soubessem pelo tato como eram os desenhos do filme. Depois fiz algumas caricaturas das crianças. Lembro-me até de um jovem que era totalmente cego de nascença. Quando ele passou a mão pelo nariz do desenho que tinha feito dele, me respondeu que tinha achado o desenho feio (risos). Este ano, como tem uma animação de bonecos feita por mim, eu achei mais legal que eles tocassem nos bonecos”.

As crianças chegaram. Todas empolgadas em ver os filmes, perguntavam se íamos exibir Bob Esponja, Ben 10, Homem aranha e mais uma lista infinita de personagens conhecidos por todos. O primeiro tabu pra mim se rompia ali: aquelas crianças que tinham dificuldade de enxergar assistiam a desenhos animados. O segundo veio logo após, quando falei que eram desenhos brasileiros e que eles provavelmente não conheciam: ao citar um episódio da série Meu amigãozão, eles falaram que conheciam e que passava num canal de TV a cabo. Eles estavam provavelmente mais atualizados até que as crianças videntes.

A sessão começou e mais uma vez uma reação surpreendente. Eles reclamaram que as luzes ainda estavam acesas. Realmente davam importância para todos os detalhes de uma sessão de cinema.

Os filmes, adaptados com audiodescrição, passavam e a cada curta que terminava vinha uma série de aplausos de todos os presentes. Eu e Marão tentávamos “assistir” aos filmes de olhos fechados para tentar entender, mesmo que muito pouco, aquele mundo de que estávamos participando.

Foi então, quando passava o filme Josué e o Pé de Macaxeira, que achei que algo ia dar errado, pois o filme tinha como grande ponto o fato de possuir uma estética brilhante. Mas com a audiodescrição o filme se tornou mais interessante, pois tinha detalhes que nem nós, videntes animadores que assistíamos àquele filme pela vigésima vez, sabíamos. Quando o filme terminou, além dos aplausos, um jovem veio na minha direção (com a sala escura) e falou que o filme era muito bom e que ele tinha achado muito bem-feito.

Ao final da sessão, Marão entregou para as crianças os bonecos que ele utilizou em sua animação. Eles tocavam nos bonecos, manipulavam os objetos, identificavam as partes do corpo e agradeciam muito por terem tido a oportunidade de ver aquela sessão.

Quando vi aquelas crianças chegando, tomei todos os cuidados do mundo com os verbos “ver” e “assistir”. Depois de tantos tabus quebrados aprendi uma valiosa lição.

Para ver alguma coisa, não precisamos dos olhos, mas sim do nosso coração.

Veja também: Deficiência como potência.

Publicado em 09/11/2010

Publicado em 09 de novembro de 2010

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.