Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

Estado de Sítio

Alexandre Amorim

Elizabeth Forster tentou impor ao mundo sua visão antissemita através de uma publicação equivocada dos escritos de seu irmão, o filósofo Friedrich Nietzsche. Simpatizante notória da ideologia nazista, Forster organizou aforismos e textos inéditos do irmão em uma compilação chamada Vontade de poder, de modo a manipular conceitos, tornando-os indubitavelmente nazistas. Indubitavelmente para quem lê esses textos influenciado pela interpretação de Elizabeth. Os conceitos de além-homem e da vontade de poder que Nietzsche elaborou podem muito bem ser utilizados como fundamentação da ideologia nazista se forem exaltados e retirados do contexto. A superação do homem, as noções revistas de decadência e nobreza e a crítica feroz à moral fazem da obra de Nietzsche um alvo fácil para construir ideologias autoritárias e racistas.

A irmã de Nietzsche foi detentora de um poder quase abstrato. Como detentora legal das obras do filósofo, Elizabeth pôde determinar como elas seriam usadas, distribuindo a seu bel-prazer uma interpretação pessoal como verdadeira. Felizmente, o nazismo foi politicamente derrotado e os acadêmicos que viam na obra de Nietzsche uma apologia ao nazismo foram desacreditados.

Essa história com “final feliz” é um bom exemplo de como o poder nem sempre atua de modo transparente. E se esse poder é institucional, essa transparência se torna cada vez mais opaca. As veredas do poder estão muitas vezes escondidas em determinações que não passam por normas ou leis, sequer por relatórios escritos.

É sabido que, no Ministério de Educação, existe uma orientação velada de não aceitar livros infantis que tragam “animais falantes” para uso nas escolas públicas. Isto é, hoje em dia, no Brasil, Jean de La Fontaine estaria desempregado ou escrevendo novelas infanto-juvenis para a televisão.

Assim como La Fontaine, hoje em dia Monteiro Lobato também não está passando por uma boa fase. Os vigilantes de nossa cultura decidiram que o tomo Caçadas de Pedrinho, de sua obra Sítio do Pica-pau Amarelo, é um livro racista que não deve ser levado às salas de aula brasileiras. O caso foi levado ao MEC pelo Conselho Nacional de Educação com recomendação para que o ministério não adotasse o livro.

Está claro que os livros infantis de Monteiro Lobato são uma fonte de formação cultural e mesmo subjetiva para as crianças que os leem. As lendas nacionais, a história universal, a geografia, a matemática e mesmo a filosofia, entre tantos outros assuntos, são discutidas, em suas histórias, de forma provocadora, que transforma a leitura em desejo de conhecimento e de autoconhecimento. Mas não podemos negar que existe, sim, nos textos do Sítio, uma representação racista e preconceituosa. Tia Nastácia, a negra de pouca cultura e submissa aos caprichos de sua patroa, é comumente insultada pela boneca de pano Emília e poucas vezes tem direito à réplica. Entretanto, o carinho dedicado à cozinheira, principalmente por Pedrinho e Narizinho, demonstra a ambiguidade desse racismo que se prolongou desde a escravatura no Brasil. Em pleno desenvolvimento da modernidade, Lobato caçoava da cultura negra, considerada atrasada e retrocessiva, ao mesmo tempo que apontava a necessidade de manter o negro como parte formadora da sociedade, mesmo que em um papel subalterno e submisso.

No livro em questão, Caçadas de Pedrinho, o autor da denúncia de racismo demonstra passagens como “Tia Nastácia trepou na árvore que nem macaca de carvão” e, nas palavras da personagem Dona Benta, “Não vai escapar ninguém – nem Tia Nastácia, que tem carne preta”. Não há dúvida da visão etnocêntrica e ainda carregada de preconceito racial e social nas palavras de Lobato. Poderia o mesmo denunciante propor a cassação do livro Histórias de Tia Nastácia, por passagens como estas, nas palavras da boneca Emília: “só aturo estas histórias como estudos da ignorância e burrice do povo. (...) Parecem-me muito grosseiras e até bárbaras – coisa mesmo de negra beiçuda, como Tia Nastácia” e “Bem se vê que é preta e beiçuda! Não tem a menor filosofia, esta diaba”. Frases extirpadas de seu contexto, mas com força destrutiva tão grande quanto é a força produtiva da obra de Lobato. E é justamente esse paradoxo que deve ser considerado como interessante o suficiente para que não se proíbam seus livros.

A discussão sobre racismo é ponto nevrálgico de nossa formação pessoal, social e cultural. Todo brasileiro traz em si o estigma do preconceito e a marca da miscigenação. Como deixar de fora das salas de aula, então, um livro que justamente suscita essa discussão? Que tipo de paternalismo danoso é esse que se traveste de protetor, quando apenas empurra para debaixo de um grande tapete nacional o lixo do preconceito a ser tratado?

Graças a protestos de vários setores sociais, o MEC voltou atrás e o livro de Lobato continuará na lista para uso em escolas, agora trazendo explicações contextualizantes do seu conteúdo. Vemos, então, que a leitura de quem está no poder vai influenciar a interpretação da obra. Como serão essas explicações é dever de todos nós analisar. Platão perguntou: “Quem vigia os vigilantes?”. Resta a nós, cidadãos, nos apresentarmos.

Publicado em 16 de novmebro de 2010

Publicado em 16 de novembro de 2010

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.