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A longa noite do crack

Pablo Capistrano

Escritor, professor de Filosofia do IFRN

O deserto cresce, a terra devastada se expande.

Nietzsche

A primeira vez que eu ouvi falar sobre crack foi em 1985. Eu tinha onze anos e prestei atenção em uma conversa que meu pai estava tendo com Assis Furtado (irmão do meu padrinho). Assis é médico e atua há mais de 30 anos em Nova Jersey (EUA). Ele falava sobre uma nova e devastadora forma de consumir cocaína que havia sido identificada nas ruas de Nova York. Um ano depois, uma nota publicada na revista Lancet (especializada em assuntos médicos) chamava a atenção da comunidade cientifica mundial para o “consumo epidêmico de pasta base de cocaína nas Bahamas”.

A cocaína é um alcaloide branco produzido a partir do refino da Erythroxylum coca (mascada pelos nativos dos Andes ou consumida na forma de chá). A pasta base da cocaína contém 90% de sulfato de cocaína e, quando tratada quimicamente, produz o cloridrato de cocaína, que é consumido desde 1859, quando foi sintetizado por um químico alemão chamado Albert Nimann (da Universidade de Göttingen). Em 1885, a cocaína era vendida nas farmácias normalmente, em forma de cigarros ou em conteúdo líquido injetável, pela companhia norte-americana Parke Davis. Tinha o lema: “substituir a comida; tornar covardes corajosos, os silenciosos eloquentes e os sofredores insensíveis à dor”.

Um século depois, o consumo desse alcaloide através das pedras de crack já produzia seu estrago no Brasil. No começo da epidemia em São Paulo, a expectativa de vida de um usuário de crack não passava de um ano. No primeiro mês eles já perdiam oito quilos, apareciam nas ruas das grandes cidades como fantasmas esqueléticos com a boca e o nariz queimados pelo calor dos cachimbos artesanais. Como não utilizavam outras drogas (maconha ou álcool, por exemplo) para minorar os efeitos do consumo da pedra, a maioria dessas pessoas morria rapidamente por complicações orgânicas, pelas mãos dos traficantes ou mesmo dos companheiros de vício destroçados pela paranoia que acompanha a compulsão pela droga.

A epidemia de crack que hoje toma conta do país é produto de algumas décadas de ignorância e negligência no que diz respeito ao consumo de drogas no Brasil. Os governos dos últimos vinte anos, por incompetência ou descaso, não tiveram coragem de lidar de modo coerente com o avanço do consumo de cocaína e não cuidaram os sinais de que essa epidemia social iria eclodir nas nossas esquinas.

No final dos anos 1980, as primeiras vítimas da incúria governamental brasileira foram homens jovens, com pouca experiência no uso de drogas. Obrigados a comprar maconha em bocas de fumo (devido à proibição da venda da Canabis Sativa), esses jovens usuários caíam na estratégia dos traficantes, que os obrigavam a comprar cruzado (os traficantes só vendiam maconha se o sujeito comprasse crack). Outro tipo de usuário, mais velho, era aquele que já consumia a cocaína injetável e buscava o crack porque era considerado uma forma “limpa” de consumir cocaína (em um tempo em que o HIV era uma sentença de morte).

Eu tive muita sorte de ser filho de um psiquiatra que me instruiu desde cedo, sem moralismos ou fantasias ideológicas, na intrincada arte de diferenciar o AAS infantil do Gardenal. As conversas com meu pai sobre substâncias psicoativas, seus efeitos e sua cultura de consumo me ajudaram a entender um pouco o que estava acontecendo no meu entorno quando o mundo louco da adolescência abriu-se na minha frente. Andar na borda da loucura sem mergulhar no abismo é uma arte muito difícil. A grande maioria das pessoas não tem suporte intelectual e psicoafetivo para fazer esse tipo de brincadeira. Por isso, a negligência em relação à questão do crack foi tão grave em nosso país.

Vários tipos de droga produziram efeitos significativos nas culturas humanas. Religião, arte, literatura, muitas das mais inquietantes expressões da experiência humana na Terra vieram a reboque do convívio do homem com as drogas. O crack, no entanto, não conseguiu produzir nada, gerar nada, criar nada que contenha sentido. Infelizmente, essa forma de consumir coca é a cara de nosso tempo. Vazio, decomposto, paranoico. O Brasil entrou na longa noite do crack pela incúria pública e pela covardia social em tratar de modo inteligente o problema do uso de drogas. Agora vamos ter um longo trabalho para sair de suas sombras.

Publicado em 7 de dezembro de 2010

Publicado em 07 de dezembro de 2010

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