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Lispector: os bichos e as criaturas

Luis Estrela de Matos

Ensaísta, escritor e professor universitário

Os bichos me fantasticam. Eles são o tempo que não se conta. Pareço ter horror daquela criatura viva que não é humana e que tem meus próprios instintos, embora livres e indomáveis. Às vezes eletrizo-me ao ver o bicho. Estou agora ouvindo o grito ancestral dentro de mim: parece que não sei quem é mais criatura, se eu ou o bicho.

Clarice Lispector

Clarice Lispector é um mistério em forma de escrita. A linguagem em perpétuo fluir. Ler Clarice é fluir. As correntezas? São como as pedras, precisam dos caminhos. Um caminho sem pedras e um rio sem correnteza não merece o nome. Rios e pedras e caminhos somos nós: e Clarice escreveu sobre nós. Inclusive aqueles nós dos nós mais difíceis. Sempre escondidos, sempre metamorfoseados em lisuras, em sociabilidades de toda ordem.

E os bichos, o que fazer deles? Trancá-los em qual zoológico? Passamos a vida toda a tentar escondê-los de nós mesmos, como se eles fossem uma alteridade indesejável. Eles existem, eles respiram. E comem. Às vezes, comem pedaços de nós mesmos, não os nossos nós que não desamarramos. Comem pedaços da gente e ficamos capengando sem saber o porquê. Às vezes, adoecemos e morremos em vida porque não quisemos dar atenção aos bichos mais escondidos. Talvez uma característica realmente presente nos artistas seja justamente essa: um artista sabe que terá que enfrentar seus mais fundos bichos, terá que experimentar a criatura, terá que percorrer as cavernas mais profundas e olhar frente a frente com o desconhecido. Enjaular-se? Mais ainda? Mesmo que tenhamos e venhamos nos enjaulando a cada dia (basta olhar a cidade contemporânea, grande ou média), o bicho de cada um não carece de jaula. Ele não tem como ficar preso. É invisível demais para isso. O escritor – o artista de modo geral – enfrenta, ou pelo menos reconhece a existência, e um dia qualquer terá que olhar nos olhos negros do grande bicho que é a existência. Clarice experimentou a ancestralidade.

Medo? Mas o medo é humano. Não humano é fantasiar todo dia, é embonecar-se a cada saída e não olhar para dentro e viver a vida por inteiro como se ela fosse apenas esse pouco que nos deram… família, escola, faculdade, sociedade. O homem cada vez mais contenta-se com menos. Encolhemos tanto em alguns episódios de nossas vidas que quase ficamos menores que o próprio bicho que carregamos. Solução? Sei não. Só sei que existem pedras e correntezas e que cada um precisa viver o rio que lhe cabe.

E Clarice sempre enfrentou o rio e as pedras que eram Clarice. Tem água para todo mundo, não se preocupe. Aliás, preocupe-se mais com as águas de seu próprio rio e não queira saber do rio do vizinho. Esse é um bom começo. Pedras não irão faltar. Nem bichos. Mas não para atirá-las no outro. Cuidado com o vidro. Todo telhado tem seus vidros. Esqueça os telhados e viva a céu aberto. É mais fresco e arejado. O nordeste agradece... Blake sorri.

Publicado em 07/12/2010

Publicado em 07 de dezembro de 2010

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