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Narrar ou não narrar, eis a questão

Alexandre Amorim

Há aqueles que escrevem suas histórias. São novelistas, romancistas, jornalistas, cronistas, biógrafos, poetas, apaixonados, cientistas, crianças, adultos; são tantos e tão variados que a lista não vai acabar neste parágrafo nem no próximo. Digamos, então, que são seres humanos que decidiram colocar em um papel ou gravar em um computador as palavras escritas que formam uma história. E cada narrativa se apresenta de uma forma.

O escritor hondurenho Augusto Monterroso, por exemplo, é autor do que pode ser considerado o menor conto do mundo, chamado O dinossauro. O conto segue abaixo:

Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.

Isso mesmo, leitor. O conto cabe em uma linha e tem menos de quarenta letras. Em compensação, Homero escreveu a Odisséia e James Joyce, dois milênios depois, a recontou como Ulisses, ambos em calhamaços que desencorajam os mais ignorantes e preguiçosos. Por que tratamos dessas histórias, tão diferentes em tamanhos, estilos e objetivos, em um mesmo grande assunto, que é a literatura? Porque são narrativas que nos fazem viver uma história, textos que nos levam pela mão para um mundo que, antes de lê-lo, não fazia parte de nossas vidas. Porque seus autores nos contam algo que, para eles, valeu o esforço de imaginar, sentir, racionalizar e escrever para ser lido.

Embora o filósofo Walter Benjamin, em seu famoso artigo O narrador, nos apresente o narrador seu contemporâneo como desprovido da “faculdade de intercambiar experiências” e como uma figura de quem apenas as características básicas nos fazem crer que ele é um narrador, devemos ainda assim acreditar que ele conta uma história sua, visto que se segrega de sua comunidade e narra experiências incomunicáveis, mas que são suas experiências. A preocupação fundamental de Benjamin em relação à narrativa é a falta, nela, da valorização da experiência, ou ainda da comunicação dessa experiência. Entretanto, aquele que conta uma história não deixa de nos contar, senão sua experiência vivida, sua interpretação de uma experiência. Se esse vivenciamento através da interpretação deixa de ser cambiável na relação narrador-leitor, seja pela distância entre as experiências vividas pelos dois polos dessa relação, seja pelo isolamento desses dois indivíduos, a narrativa ainda não se perde –nem mesmo já se transforma em informação (conforme sugerido por Benjamin): o narrador mantém o papel de contar o vivenciado ou sua interpretação de uma vivência. E o leitor dessa narrativa, se impossibilitado de reconhecer essa experiência, passa a ter o papel de também interpretá-la. Além disso, ao poder interpretar e imaginar a experiência de outro, o leitor faz com que o episódio narrado atinja uma amplitude maior que não existe na simples informação. O intercâmbio da narrativa passa, agora, pela interpretação a que ambos, narrador e leitor, estão submetidos. O leitor não apenas lê, mas imagina, isto é, cria.

E os modos de narrar são tantos que o leitor contemporâneo se coloca na posição de poder interpretar sua leitura conforme bem quiser. Se essa posição é confortável ou não, não podemos definir: o leitor está à vontade para criar sua interpretação, mas está desconfortável justamente pelo trabalho árduo que essa liberdade lhe traz. E se essa narrativa vai ser compreendida conforme a vontade primeira do autor, já não é possível determinar. O autor se mantém à distância de quem o lê: a história é relatada para que o leitor possa interpretá-la a seu modo, para que possa, como afirma o próprio Benjamin, “transformá-la em coisa sua, devorá-la, de certo modo”. Os valores passam a ser individualizados e sempre submetidos a uma interpretação pessoal.

Em certos grupos literários recentes, existe uma preocupação de se voltar contra uma espécie de regra pós-moderna, que é dar fim às grandes narrativas, isto é, desacreditar as narrativas que pretendem ser universalizantes e manter um mesmo sentido para todos os seus leitores. Mais do que apenas tentar manter a importância das grandes narrativas, esses grupos tentam diminuir uma forma pós-moderna de expressão, que se traduz por um texto fragmentado, cheio de imprecisões e muitas vezes cronologicamente absurdo. Negam essa estrutura afirmando que é o fim da narrativa. Não é. O texto fragmentado, impreciso, mesmo inacabado, conta uma história. Ou, por outra, nos convida a imaginar com ele aquela história. Narra e nos faz imaginar.

Autores como João Gilberto Noll, Luiz Ruffato, Bernardo Carvalho e Chico Buarque narraram várias de suas histórias utilizando esse estilo. Não que eles se propusessem a acabar com a narrativa clássica ou formassem um exército pós-moderno – mesmo porque isso não existe. São autores que escolheram um caminho fragmentado e incerto, muito provavelmente influenciados pelo tempo em que vivem.

Os grupos literários que tentam diminuir esse tipo de narrativa acabam sendo alijados de mais uma maneira – interessante e rica – de narrar. Se o fim das verdades religiosas e científicas como suporte à construção da nossa identidade contribuiu para um questionamento dos valores até então aceitos e utilizados como moeda corrente da nossa ética, a resposta veio em forma de um questionamento maior: por que a procura de uma verdade como fundamentação? A perplexidade ainda parece ser a resposta mais apropriada à nossa condição. A narrativa dita pós-moderna é mais um reflexo dessa perplexidade.

Por isso, poetas, seresteiros, narradores – correi. É chegada a hora de escolher, entre as tantas e tão boas maneiras, seu verdadeiro modo de narrar. Mas nada que não se possa mudar com o tempo. O estilo narrativo, como nossa própria experiência, é algo que amadurece, muda, revive. Fiquem à vontade para escolher. E a nós, leitores, só resta o pedido primordial: me conta uma história.

Publicado em 7 de dezembro de 2010

Publicado em 07 de dezembro de 2010

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