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Alfabetização: técnica, política e ética em discussão

Juliana Carvalho

Nos dias 4 e 5 de novembro de 2010 fui à UFF para participar do I Encontro Estadual de Alfabetização e Leitura Literária, organizado pelo Programa de Alfabetização e Leitura – Proale da mesma UFF.

O Proale é um projeto que vem estudando as questões da alfabetização no nosso estado. Para isso, seus integrantes partem do princípio de que é fundamental que sejam criadas condições sociais capazes de garantir o direito à leitura e à escrita para todos. Aprendendo a ler e escrever, o indivíduo consegue compreender e fazer aflorar diferentes sentidos, passando a ter vez e voz no espaço social. A participação da universidade é importante para a formação, atualização e aperfeiçoamento de professores de todos os níveis, visando a reduzir o fracasso escolar.

Um dos painéis do evento, “Alfabetização, história e políticas”, rendeu boas histórias sobre crianças e suas primeiras experiências de leitura. Foi um momento de reflexão sobre os atuais métodos de alfabetização. Estamos realmente ensinando essas crianças a ler ou apenas fazendo com que memorizem letras e aprendam a decodificá-las? O tema inspira seriedade, mas foi abordado com muito bom humor; afinal, as crianças são capazes de surpreender quando tentam encontrar sentido naquilo que parece não ter lógica. Os exemplos expostos são baseados na pesquisa da professora Cecília Goulart, da UFF, e, embora alguns sejam até divertidos, não devem nos afastar da questão central, que é refletir sobre o que estamos ensinando aos nossos alunos e como os subestimamos sem perceber.

O painel começou com a preocupação em relação às atuais políticas de alfabetização. Grande parte dos professores presentes considera que já existem métodos mais modernos e eficazes do que o método fônico, utilizado nas escolas do Rio e Niterói no momento. Nesse método, a alfabetização acontece por meio de associações entre símbolos e sons. Para que a criança seja capaz de decifrar palavras, ela primeiro aprende a reconhecer o som de cada letra. De outra forma, ela teria que memorizar visualmente todo o léxico, algo ineficiente do ponto de vista dos defensores do método fônico. Esse método parte da regra para a exceção.

No Rio e em Niterói é utilizado o método Alfa e Beto, uma junção do método fônico com alguns outros métodos. Uma das críticas a esse método diz respeito à maneira como o sentido é deixado de lado, visto que a ênfase está nos sons.

O primeiro exemplo abordado mostra uma criança sendo alfabetizada pelo método Paulo Freire, que é baseado no aprendizado das famílias silábicas. A professora escreveu no quadro:

TA
JA
LA

Ao pedir a um aluno que lesse, a criança pronunciou: TV JÁ LÊ. Essa situação mostra claramente que a o aluno tentou gerar algum sentido no que estava lendo. Uma das características do método Paulo Freire é trabalhar com palavras que integrem o cotidiano das pessoas, aliando, assim, método fônico e sentido – o que parece não ter sido feito nessa situação. Ao ver as três sílabas soltas, a criança tenta trazer à tona algo presente em sua memória, algo que já tenha visto e com o qual tenha alguma relação.

Outro exemplo:

A mamãe afia a faca.
Quando a professora solicitou à criança que lesse, ela então pronunciou:
- A mamãe, eu e a faca.

Ela compreendeu que o verbo “afia” significava “a filha”, e por isso se colocou na frase. A alfabetização pela repetição de estruturas sintáticas simples muitas vezes é capaz de bloquear o processo criativo da criança. Frases como “A casa é bonita”, “A menina é esperta”, “O gato tem rabo” e outras sequências sem relação entre si geram um tipo de aprendizado em que a criança é capaz de reconhecer essas estruturas sintáticas, mas torna-se incapaz de desenvolver uma produção textual com sentido.

O professor tenta ensiná-la a reproduzir, substituindo os termos horizontalmente e verticalmente. Ela não consegue perceber a relação entre os elementos da frase e por isso não consegue reproduzi-los. Além disso, não há nenhum incentivo à criação. O texto abaixo, produzido por um aluno da primeira série, é um bom exemplo:

Era uma vez umpionho querroia ocabelo.
Dai um eminopinhoeto depasou um menino lipo.
Enei pionho aí pasou daí omenino pegoupionho.
Dai todo mundosaio gritado todomudo pegoupionho.
Di até sofinho begoupionho.

A escola não costuma dar valor a esse tipo de texto, apesar do processo criativo do aluno. Repetir as estruturas sintáticas parece ter mais valor para a escola, ainda que o aluno não consiga compreender o que está lendo nem acrescentar nada de criativo, nada de próprio ao processo de reescritura. Apesar de ter sido capaz de contar uma história, esse aluno provavelmente teve seu texto rejeitado por não representar o padrão que o professor espera da criança.

Rosilene, uma aluna da rede municipal de Niterói, estava repetindo há quatro anos a primeira série do ensino fundamental quando produziu o seguinte texto:

A vovó é uma pena.
A menina é uma piano.
A boi e uma pena.
O tatu é um piano.
O gato e um tatu.

Ao ver a produção de Rosilene, é possível reconhecer imediatamente a estrutura de frases utilizada na alfabetização. Porém é entristecedor constatar que, nos quatro anos em que cursou a mesma série, não houve avanço na sua capacidade leitora. A escrita, nesse caso, é uma reprodução do que ela percebe ao ler as frases soltas. A criança é capaz de reproduzir a estrutura, mas incapaz de gerar sentido no que lê. Todas as sentenças têm a estrutura de uma frase, mas nenhum nexo. Isso me faz pensar que, durante quatro anos, provavelmente quatro diferentes professoras não tentaram nada novo, nada além do que estava já preestabelecido pelas cartilhas. É para isso que alfabetizamos?

Muito mais do que analfabetos absolutos, formamos pessoas que, mesmo depois de quatro anos na escola, não são capazes de ler um livro, um romance, ou mesmo um jornal. Essas pessoas eram mais felizes antes de frequentar a escola, pois não possuíam o sentimento do fracasso. O acesso à escola, em vez de propiciar-lhes o exercício pleno da cidadania, acaba por torná-las infelizes, com a autoestima baixa, enfraquecidas do ponto de vista político, social e pessoal.

Muitas vezes nós, professores, temos grande parcela de culpa no insucesso de nossos alunos. Nós nos incapacitamos. Acreditamos que apenas alunos das classes mais favorecidas são capazes de escrever bem. Precisamos compreender e aceitar que as crianças usam sistemas de representação diferentes, misturando palavras, números, imagens.

Nesse momento da palestra, foi mostrada a produção de uma menina da segunda série de uma escola municipal. Ela foi capaz de produzir uma pequena redação separando alguns temas com caixas de texto e numerando as caixas por ordem de importância afetiva. A caixa de texto que trazia uma frase referente à existência de Deus recebeu o número 1. A caixa que falava da mãe o número 2, assim por diante. Por esse texto foi possível perceber questões sociais, religiosas e o uso de estruturas que fazem parte da imaginação da criança. O mais gratificante foi perceber a correção gramatical apresentada, bastante adequada ao seu nível escolar, associada à sua expressão criativa.

Muitas vezes, quando um aluno precisa se ausentar por motivo de doença, recebemos deles atestados médicos totalmente ilegíveis, escritos por pessoas que passaram décadas na escola. A hierarquia social faz com que não contestemos a letra do médico, mas sejamos implacáveis com uma criança que está aprendendo a escrever. Não nos esforçamos para entender a letra e as frases dos nossos alunos. O professor tem sido sempre um aluno dentro de um vínculo de métodos e técnicas que se perpetua, negando o verdadeiro sentido de aprender.

O caminho é acreditar no aluno e demonstrar isso. Nós devemos tentar dar sentido ao processo de aprender, tentar em todos os níveis. Nossos alunos continuam dizendo: “Li, mas não entendi nada”. Para dar um rumo oposto a essa história, essas crianças precisam da mediação do professor e de outras leituras de mundo, um universo de significados que vamos construindo ao longo da vida. Nega-se ao professor a escolha do método, mas a força da interação professor-aluno pode transformar qualquer um.

A palestra foi encerrada com o lindo texto de Bartolomeu Campos de Queirós, do livro Para criar passarinho:

Para bem criar passarinho é necessário prender o universo – dos mares ao firmamento – em uma gaiola respirando azul e infinito por todos os lados. É seguro declarar que nenhum espaço é demais para os voos. Para bem criar passarinhos, é preciso experimentar as asas, sempre.

Publicado em 21 de dezembro de 2010

Publicado em 21 de dezembro de 2010

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