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SEGREDO E DESTINO: MARIA TERESA HORTA DESDE OS ANOS 1960

Raquel Menezes

Maria Teresa Mascarenhas Horta nasceu em Lisboa em 20 de maio de 1937. Oriunda, pelo lado materno, de uma família da alta aristocracia portuguesa, conta entre os seus antepassados a célebre poetisa Marquesa de Alorna, cuja vida e obra será tema do seu próximo romance. Poeta de formação acadêmica, estudou na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Personagem ativa politicamente, dedicou-se ao cineclubismo como dirigente do ABC Cine-Clube, ao jornalismo e à questão do feminismo, tendo feito parte do Movimento Feminista de Portugal juntamente com Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, parceiras, nos anos 1970, na publicação do polêmico livro Novas Cartas Portuguesas.

Em 1961, fez parte da recolha de livros Poesia 61, da qual fizeram parte ainda Fiama Hasse Pais Brandão (Morfismos), Casimiro de Brito (Canto adolescente), Luiza Neto Jorge (Quarta dimensão) e Gastão Cruz (A morte percutiva). Os citados poetas não formavam um “grupo poético”, mas “uma coincidência literária”, como afirma Gastão Cruz, na altura do lançamento de Rua de Portugal (2002). Dos poetas 61, somente Gastão Cruz era ainda não publicado. Este, sobre a parceira editorial, afirma, já em 2009 – no JL (Jornal de Letras) cujo tema foi MTH –, tendo em vista seu primeiro livro, em um belíssimo texto intitulado merecida e afetivamente Uma poesia nova: “a publicação, em 1960, do livro Espelho inicial, de Maria Teresa Horta, foi um acontecimento de cujos significados e importância não haverá hoje grande noção, curta como é a memória e a informação de muitos dos que à poesia portuguesa algum interesse dedicam”.

Apesar da grande importância que deve ser atribuída ao livro de estreia de Maria Teresa Horta, invoco, para começar os trabalhos literários, o revolucionário poema “Outubro”, publicado na já mencionada plaquete Tatuagem, de Poesia 61:

Estas noites de mar
incrustadas
de luz

ou estes olhos
de polos
distanciados no nada

Este ódio de chuva

este dia montanha

Esta arma de boca
ou tempo encontrado
com relógios
na montra

Este ardor de palavras
no perfil
das bocas

este grito
que tenho
nas mãos misturadas

Ou mãos misturadas
que tenho
de outubro
no sabor picante
sentido nas casas

Nestes versos identificamos o que afirma Jorge Fernandes da Silveira, autor de Portugal maio de Poesia 61, livro que versa estrutural, poética e historicamente a coletânea que aparece no título da obra de Silveira: “possuidora de um domínio imagístico invulgar, Maria Teresa Horta constrói uma poesia de difícil leitura. À primeira vista, o leitor sente-se incapaz de coordenar o intenso ritmo de palavras, de imagens sobre imagens, como se fosse uma espécie de música para além dos limites da pauta. Todavia, a poesia não é pura arte do significante; a música pode-nos servir de termo de comparação, mas não nos afasta da tentativa de buscar nexos semânticos que promovam o sentido do texto. Tatuagem é um livro que se insubordina contra a ordem das relações sociais e as formas de opressão na linguagem”. A partir do que nos diz Silveira, observamos um “Outubro” desdobrado em imagens. E assim, ao invés de representar “Outubro” – remissivo ao da revolução de 1917 –, Maria Teresa Horta escolhe o signo “Outubro” e desdobra-o, o que dá origem às alternâncias que movem o poema, pois “Esta arma de boca/ ou tempo encontrado/ com relógios/ na montra/ (...)/ Ou mãos misturadas/ que tenho/ de outubro/ no sabor picante/ sentido nas casas” [grifo meu]. “Ou-tubro” vai e vem dos/nos versos marcados ainda pelo eco significante nas/das palavras: “estas”, “incrustadas”, “luz”, “olhos”, “polos”. E, na ultima estofe, em que se lê “Ou mãos misturadas”, a relação tempo e espaço dá-se, pois a mistura das mãos “que tenho/ de outubro” (tempo) também se misturam “no sabor picante/ sentido nas casas” (espaço).

No mesmo jornal em que Gastão escreve “Uma nova poesia”, Ana Luisa Amaral, no texto “Harmonia e insubordinação”, refere-se à forte componente erótica na poesia de Maria Teresa Horta: “a atenção dada à mulher e ao corpo feminino, ao desejo e à paixão”. Ainda nas palavras de Ana Luisa Amaral, “A própria autora (Maria Teresa Horta), em entrevistas e depoimentos, tem salientado essa dimensão do feminino, ligando-a à acção cívica em prol do feminino e dos direitos das mulheres. Porém, sendo isso verdade, e servindo-se a autora amiudamente de temáticas e de um léxico geralmente associados ao que se considera ser o universo das mulheres, não será demais salientar que a sua atenção se faz a partir de um olhar que, embora se firmando no ser mulher, dele extrapola, alargando-se ao mais amplamente humano”. No poema “Segredo”, publicado no livro Minha senhora de mim, de 1972, observamos a temática erótica feminina em um discurso de uma sexualidade aberta, refletora de um gesto político:

Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça

nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa

Deixa que feche o
anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço

Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar

nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar

O “Segredo” de Maria Teresa Horta é um encontro amoroso de um ponto de vista feminino. Ainda que com um lugar de aprendizagem na tradição amorosa portuguesa masculina, se dá no feminino como atuante, como fizera, por exemplo, Florbela Espanca, em “Eu quero amar amar perdidamente”. O “Segredo” da poeta é uma forma de contestação do moralismo que sufocava Portugal, que só dois anos depois, em abril de 1974, ver-se-ia livre do regime salazarista. Nesse espaço secreto, porque ainda silenciado por um regime fascista, Maria Teresa Horta corre “os cortinados” da tradicional casa portuguesa que já se encaminhava para a destruição, pois a mulher lusitana preparava-se para largar o “novelo” e a “roca de fiar” – sintagmas da ordem do feminino domesticado. E ainda: para esta mulher ativa o “anel” que vem ao caso (e não à casa) é o que se coloca ao “redor” do “pescoço” do amado, com as “longas pernas” da amante, não mais, portanto, o de um compromisso institucionalizado pelas leis da igreja, ou seja, a aliança matrimonial, símbolo da união marido e mulher, que não necessariamente são amadores, no sentido barthesiano do termo. Junto com as cortinas caem as “sombras”, deixando a esperada nova condição feminina às claras, “a fim de” “ouvir” gritos de prazer (e porque não de subordinação sexual?) do amante, ser amado.

Em 2006 foi lançada, aqui no Brasil, a antologia Cem poemas [Antologia pessoal]+ 22 inéditos, apresentada por Ida Aves, que afirma: “À voz inaugural de Maria Teresa Horta unem-se assim vozes de outras poetas portuguesas, citando apenas três nomes como Luiza Neto Jorge, sua contemporânea, com obra poética das mais instigantes a ser conhecida também entre nós, Ana Luisa Amaral e Adília Lopes, vozes mais recentes, inquietas e insubmissas, que constituem espaços outros de dizer o mundo a partir da perspectiva de um sujeito mulher que rompe, desvela, subverte ordens, desloca espaços e visões, para escrever uma outra forma de ser ‘senhora de mim’”.

Adília e Ana insubmissas, assim como as já referidas, logo no início deste ensaio, parceiras de Maria Teresa Horta nas Novas cartas portuguesas, cujo belíssimo trecho destaco: “Pensemos o amor no seu jogo através do contentamento: as palavras uma por uma no bordado empolgante dos sentimentos e dos gestos. A mão sobre o papel traça com precisão as ideias nas cartas que, mais do que para o outro, escrevemos para nosso próprio alimento: o doce alimento da ternura, da invenção do passado ou o envenenamento da acusação e da vingança; elas próprias principais elementos da paixão na reconstrução do nosso corpo sempre pronto a ceder à emoção inventada, mas não falsa”. Cito um trecho que, como Maria de Lourdes Pintasilgo defende, no prefácio da edição de 1974 das Novas cartas, que este livro é de autoria de uma voz una, posso dizer que, em alguma medida, foi escrito por Maria Teresa Horta. Afirmo o que afirmo não só pela dica de, mas também, e quase majoritariamente, pela tensão entre escrita e erotismo que encontramos na poeta de “Segredo” – poema no qual, diga-se de passagem, a tensão é-nos apresentada –, pois em “Português”, poema de Vozes e olhares do feminino, de 2001: “Se a língua ganha/ a dimensão da escrita”, “a escrita ganha a dimensão do mundo”. Desse modo, nas Novas Cartas, assim como nas que dão origem a estas, segundo mais uma vez Pintasilgo, a escrita é feita para si própria. Mariana Alcoforado, no século XVIII, escreveu cartas ao Marques de Chamily para seu próprio prazer, pois, como afirmaram as três Marias, reconstruindo o corpo da escrita eroticamente, “a mão sobre o papel traça com precisão as ideias nas cartas que, mais do que para o outro, escrevemos para nosso próprio alimento”, como num gesto de (re)“invenção do passado”.

Sozinha, Maria Teresa Horta sempre fizera isso, (re)inventar o passado, e continuaria a fazer, em seu “Destino”, poema de 1997, quando se vê em sessões de quimioterapia para vencer um câncer – como afirma no já referido jornal que a homenageia pela publicação da sua antologia Poesia toda, lançada pela Dom Quixote. Poema que repete a estrofe inicial “O lugar destes sítios/ chama-se destino”, como se fosse um refrão de um poema em que temas como errância “desgraçada”, muito afim à de Camões, ou seja, canônica e tradicional, é uma constante, criando uma “gramática da escrita/ que altera e desalinha/ que altera e desalinha/ a urdidura que fala sem saber o início” (ano e livro). Poema com o qual termino este texto:

O lugar destes sítios
chama-se destino

Com o seu enorme peso
de pedras e de visco

Raramente se escutam as asas
e o vinho
ganha no corpo a morbidez do linho

Mas quem empunha o sabre
do destino?
Quem escuta a sua dor
não desatada?

Quem pensa que a torpeza
de um sonho de adivinho
se iguala à túnica branca
de um anjo que voava?

Este é o silêncio sequer o mais veloz
que se enrosca febril
em sua capa

Um abismo obscuro
que dormia
quando a saudade não tinha a ver com nada

O lugar destes sítios
chama-se destino

Com os olhos tapados e uma espada
embainhada não no desatino
mas antes, sim, mergulhada em lágrimas

Quem diz que é bom
lembrar o que se andou
numa qualquer infância desgraçada?

Não sei se o destino se inventou
se simplesmente trepou
galgando a sua água

Deixa pois que invoque
o meu destino
que é apenas um esvoaçar de asa

Um sinal qualquer
um desatino
uma amargura incerta que desata

Um dragão poisado em cada ombro?
A mão que encaminhou o que é desfeito?

Uma dúvida cansada de quem chega
com uma chaga aberta no seu peito

Rio, 28 de outubro de 2009

REFERÊNCIAS

BARRENO, Maria Isabel; HORTA, Maria Teresa; COSTA, Maria Velho. Novas Cartas Portuguesas. Rio de Janeiro: Nórdica, 1974.

HORTA, Maria Teresa. Cem poemas [Antologia pessoal] + 22 inéditos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.

SILVEIRA, Jorge Fernandes da. Portugal maio de Poesia 61. Vila da Maia: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1986.

Tema Maria Teresa Horta: Palavra(s) de mulher. JL (Jornal de Letras, Artes e Ideias), nº 1004, 25 de março de 2009, p. 12-19.

OBRAS DA AUTORA

Poesia

  • Espelho inicial. Faro: edições da autora,1960.
  • Cidadelas submersas. Covilhã: Pedras Brancas, 1961.
  • Tatuagem, in Poesia 61. Faro: edição dos autores [Gastão Cruz, Fiama Hasse Paes Brandão, Luiza Neto Jorge, Maria Teresa Horta e Casimiro de Brito], 1961.
  • Verão Coincidente. Lisboa: Guimarães Editores, 1962.
  • Amor Habitado. Lisboa: Guimarães Editores, 1963
  • Candelabro. Lisboa: Guimarães Editores, 1964.
  • Jardim de Inverno. Lisboa: Guimarães Editores, 1966.
  • Cronista Não é Recado. Lisboa: Guimarães Editores, 1967.
  • Minha Senhora de Mim. Lisboa: Dom Quixote, 1971.
  • Educação Sentimental. Lisboa: A comuna, 1975.
  • Mulheres de Abril. Lisboa: Caminho, 1976.
  • Poesia Completa. Lisboa: Litexa, 1982 (2 vol.).
  • Os Anjos. Lisboa: Litexa, 1983.
  • Minha Mãe, Meu Amor. Lisboa: Rolim, 1984.
  • Rosa Sangrenta. Lisboa: Nova Nórdica, 1987.
  • Antologia Política. Lisboa: Círculo de Leitores, 1994.
  • Destino. Lisboa: Quetzal, 1998.
  • Só de amor. Lisboa: Quetzal, 1999.
  • Antologia Pessoal100 poemas. Lisboa: Gótica, 2003.
  • Feiticeira. Paris: Actes Sud, 2006. [edição bilíngue]
  • Cem poemas [Antologia pessoal] + 22 inéditos. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.
  • Poesia Reunida. Lisboa: Dom Quixote, 2009.

Ficção

  • Ambas as mãos sobre o corpo. Mem-Martim: Europa-América, 1970
  • Novas cartas portuguesas [com Maria Velho da Costa e Isabel Barreno]. Lisboa: Estúdio Cor, 1972.
  • Ana. Lisboa: Futura, 1974.
  • Ema. Lisboa: Rolim, 1984.
  • Cristina. Lisboa: Rolim, 1985.
  • A Paixão Segundo Constança H. Lisboa: Bertrand/Circulo de Leitores, 1994.

Publicado em 9 de fevereiro de 2010

Publicado em 09 de fevereiro de 2010

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