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Caim: o que pode a ficção?

Luis Estrela de Matos

Escritor, professor universitário

Finalmente, Caim. Finalmente algumas linhas sobre essa última ficção de José Saramago. E o que não é ficção nesta nossa vida tão irreal do dia a dia? Sem entrar por demais nas polêmicas que envolveram a publicação de Caim, apenas comento que, se fosse a primeira vez que o octogenário José Saramago tivesse investido sua fúria literária nas temáticas bíblicas, tudo bem. Poderiam acusá-lo de sensacionalista midiático... Mas o Evangelho segundo Jesus Cristo já tem seus quase vinte anos. O ateísmo do autor é planetariamente conhecido, a sua briga com Portugal fato por demais comentado etc. etc. Então...

Mais uma vez Saramago nos propõe uma prosa vigorosa, com sabor, a sua sempre presente ironia e uma alegria da escrita que somente pode ser encontrada em grandes escritores. Kafka dava gargalhadas consigo próprio ao escrever A metamorfose. Não é novidade alguma afirmar aqui que o Antigo Testamento não é o lugar absoluto da bondade. Guerras, ódios, vinganças e muitas outras coisas que constituem a vida dos homens neste estranho planeta fazem parte da base da tradição judaico-cristã. Nietzsche que o diga. E Saramago que a ficcionalize – assim como o fez ao escrever o desafiante Caim. O livro causou polêmicas e, ao que sabemos, também chegou aos ouvidos do Vaticano. O que eu adianto ao leitor curioso é que Caim e Deus são personagens inesquecíveis. Um Caim redimido e um Deus impiedoso, ao mostrar os atos de maldade? Segue um pedacinho dessa narrativa:

Perguntou Isaac, Pai, que mal te fiz eu para teres querido matar-me, a mim que sou o teu único filho, Mal não me fizeste, Isaac, Então por que quiseste cortar-me a garganta como se eu fosse um borrego, perguntou o moço, se não tivesse aparecido aquele homem para segurar-te o braço, que o senhor o cubra de bênçãos, estarias agora a levar um cadáver para casa, A ideia foi do senhor, que queria tirar a prova, A prova de quê, Da minha fé, da minha obediência, E que senhor é esse que ordena a um pai que mate o seu próprio filho, É o senhor que temos, o senhor dos nossos antepassados, o senhor que já cá estava quando nascemos, E se esse senhor tivesse um filho, também o mandaria matar, perguntou Isaac, O futuro o dirá, Então o senhor é capaz de tudo, do bom do mau e do pior, Assim é…

No mínimo, é uma leitura que inquieta, que surpreende e que nos obriga a rever certos conceitos enraizados pela força da cultura. Mas também existe outra forma de ler Caim. É literatura das boas, é divertido ver as peripécias saramagueanas. O neobarroco presente em grande parte de seu estilo condensou-se em imagens e pensamentos muito presentes nesta obra. Menos palavras, se assim eu pudesse me exprimir. Saramago “falando menos”. Alguns críticos afirmaram ser literatura em estado puro. De qualquer maneira, é uma narrativa que nos faz retornar a um capítulo ou páginas anteriores e sempre nos surpreende com novos arranjos de sentidos que se formam diante de nossos olhos.

E, por último, por que não ler Caim como uma ficção? Por que dar-lhe um estatuto de verdade, com se fosse um tratado científico, uma descoberta da medicina ou uma nova galáxia? Não é literatura? Deixemos sê-la. Um filme é um filme, uma peça é uma peça. Um poema, apenas um poema. Afinal, o que pode uma mera ficção neste mundo tão deslumbrado com a hegemonia da tecnocracia?

Presenteie-se, leitor. Leia Caim.

Ficha técnica do livro:

  • Título: Caim
  • Autor: José Saramago
  • Gênero: Romance
  • Produção: Companhia das Letras

Publicado em 23/02/2010

Publicado em 23 de fevereiro de 2010

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