Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

O bem-estar na civilização

Mariana Cruz

Vida útil
Dicas para simplificar a vida

Tenho um amigo que, em 2001, foi passar um tempo na Inglaterra. No começo sofreu um pouco para se acostumar com o jeito very polite dos ingleses e o clima frio de lá. Aqui, ele era adepto do estilo “mais-carioca-impossível”: vivia na praia bronzeando-se, jogava capoeira, morava em Santa Teresa e era frequentador das rodas de partido alto que aconteciam na Lapa, no bar do seu Cláudio, no fim dos anos de 1990 (quando o bairro não tinha estourado por completo e ainda guardava um ar underground). Depois de dois ou três meses em solo britânico, porém, acabou por enturmar-se com uns músicos locais. Aprendeu a ser mais disciplinado e pontual nos ensaios e, em troca, ensinou a cadência e o molejo de uma boa batucada brasileira. Foi assim que promoveu, junto com seus novos amigos, um minidesfile de carnaval pelas ruas de Londres. Sentindo-se mais próximo do que nunca da Cidade Maravilhosa, lá pelo meio do trajeto, escolheu um cantinho para se aliviar do excesso de álcool. Um policial o viu e, antes que desse tempo de esvaziar sua bexiga, foi severamente repreendido pela autoridade, que por sorte não o multou nem o prendeu. Por sorte mesmo. De volta ao Brasil, entre as diversas aventuras na terra dos Beatles, contou-me essa façanha. Rimos diante da disparidade. E o tempo passou. Hoje, nove anos depois, vimos neste carnaval dezenas de foliões serem presos pelo que foi motivo de riso tempos atrás. Os infratores defenderam-se falando do número reduzido de banheiros químicos, o que eu, participante ativa dos blocos de rua do carnaval carioca, pude constatar e vivenciar na pele devido à longa espera provocada pelas mais de dez mulheres à minha frente diante de um banheiro químico. Apesar disso, não há como negar que este ano o odor pós-bloco nas ruas foi bem menos desagradável (não chega a ser agradável) do que o dos anos anteriores. Parece que a cidade do Rio de Janeiro, chamada, em uma música, de “cidade da beleza e do caos”, está tentando enfraquecer este segundo adjetivo que lhe cabe. Pela seriedade com que se cumpriu a lei, a tendência é de que nos carnavais vindouros torne-se cada vez mais incomum ver pessoas fazendo xixi pelas ruas.

Mas as mudanças de hábito não param por aí; muitas coisas modificaram-se ao longo das duas últimas décadas e hoje parecem tão normais, tão naturais que para os mais novos é difícil crer que nem sempre fora assim. É uma sensação parecida com a que se tem quando o cenário do bairro muda, como quando é construído um edifício no lugar de um casarão e, com o passar do tempo, quem passa diariamente por tal lugar tem a impressão de que a paisagem sempre fora aquela. Lembro-me de que, na época de faculdade, em meados da década de 1990, alunos e professores fumavam durante as aulas; no ônibus era comum ver motoristas, cobradores e passageiros dando suas tragadas. Em shoppings, aeroportos e até mesmo dentro dos aviões era permitido fumar. Hoje em dia, mesmo em locais privados como a casa ou o carro, onde o fumo é permitido, há o maior cuidado com quem não fuma. Um amigo contou-me que, quando era criança, seu pai fumava no carro com o vidro fechado, com ele e a irmã no banco de trás. Hoje tal cena seria estranha de se ver. As pessoas na rua provavelmente reprovariam o ato. Se antes ninguém reclamava de nada, hoje há uma verdadeira caça aos fumantes, a ponto de uma amiga fumante, apesar de respeitar todas as proibições, se dizer perseguida até em locais onde o fumo é permitido, pois diversas vezes, na rua, ela é repreendida por gente que nunca viu na vida. Não sou fumante, mas, cá entre nós, talvez haja um pouco de exagero por parte desses antitabagistas convictos que procuram impedir que se fume mesmo ao ar livre.

O fato é que há certas cenas tabagísticas com que nossos olhos se desacostumaram. Dias desses, revendo um dos episódios do seriado Sex and the City, filmado entre 1998 e 2004, devido à modernidade das roupas e do cenário descolado de Nova York, constatei que tudo leva a crer que se trata de uma série atual. Eis que em determinado momento, uma das personagens acende um cigarro no meio do restaurante; inevitável não notar o anacronismo da cena.

O mesmo se dá em relação à dupla non grata direção & álcool. Apesar de existir a proibição, até uns três anos atrás (se a memória não me falha) era algo a que ninguém ou quase ninguém obedecia. Os bares e points de diversão espalhados pela cidade do Rio de Janeiro – onde quase todo mundo consumia álcool – estavam sempre com as calçadas lotadas de carros. Eu mesma, devo confessar, como boa adepta de uma cervejinha, várias vezes já dirigi com uma latinha em punho. Até que a Lei Seca começou a funcionar a todo vapor e pegou um monte de gente e não apenas o “amigo-do-amigo-da-vizinha”; ao contrário, diversos conhecidos, amigos, vizinhos foram parados nas blitze. Apesar de gastar mais dinheiro com transportes, não se corre mais um risco desnecessário. Diante do rigor da lei, táxis, ônibus ou bares perto de casa passaram a ser a alternativa – o que particularmente achei uma ótima mudança.

Outras infrações conhecidas, sobretudo para aqueles que já passaram dos 30: transporte escolar feito pelas mães ou por alguém que se apresentasse na escola como motorista. Naquela época em que ainda não existiam vans, as crianças iam para o colégio amontoadas nas malas das Caravans, e o motorista obviamente não usava cinto de segurança. Moto sem capacete também era normal.

Sabe-se, porém, que tais leis em relação ao fumo, a bebida e direção, ao uso obrigatório do capacete, do cinto de segurança e, mais recentemente, a proibição de urinar na rua não começaram a ser cumpridas por mágica ou pela repentina conscientização dos cidadãos. Prisões, multas e outras repreensões foram aplicadas para que isso acontecesse. Por outro lado, coisas muito mais fáceis de serem cumpridas, como não jogar lixo nas ruas, não desperdiçar água ou respeitar a faixa do pedestre continuam apenas na teoria. Será que isso só deixará de ocorrer quando houver fiscalização e multas e/ou prisões? Será que só é possível educar na base da coerção? Apesar da postura exagerada em determinados casos, torcemos para que tais mudanças proporcionem melhor convivência entre os cidadãos e ­– com licença de Freud – maior bem-estar na civilização!

Publicado em 2 de março de 2010

Publicado em 02 de março de 2010

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.