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Tremor e temor

Pablo Capistrano

Por volta das 9h30 da manhã do dia 1º de novembro de 1755, a terra tremeu em Lisboa. Não se sabe ao certo qual foi a magnitude do tremor, mas especula-se que tenha chegado a oito graus na escala Richter.

O fato é que uma imensa quantidade de gente, que estava assistindo à missa do dia de Todos os Santos nas igrejas, morreu esmagada. A cidade foi completamente destruída; boa parte da população, em pânico, refugiando-se nos bairros mais baixos, devido aos inúmeros incêndios que se seguiram aos diversos tremores secundários, morreu tragada por um devastador tsunami que arrasou a foz do Rio Tejo depois do terremoto.

O impacto do terremoto de Lisboa assolou a Europa. A repercussão da desgraça tornou-se objeto de inúmeros relatos sensacionalistas, que eram publicados em grandes tiragens e lidos vorazmente pelo público atônito e temeroso. Grande quantidade de poemas surgiu após o desastre, geralmente cantando a antiga Lisboa, pacífica e ordeira. Falavam dos prenúncios da tragédia, descreviam o primeiro terremoto com imagens emocionais, como a de crianças mortas agarradas aos braços das mães ou de pais caídos sobre os corpos dos filhos, e por fim concluíam os versos com uma mensagem moralista e religiosa apelando para as tradicionais imagens cristãs do juízo final.

Alguns afirmam inclusive que o terremoto de 1755 marcou o início dos esforços científicos para a construção da moderna Sismologia, com o desenvolvimento das mais diversas e estranhas teorias sobre os tremores de terra, como a de raios e vapores subterrâneos. Mas foi na Filosofia que o terremoto de Lisboa deixou as marcas mais profundas. A luta pela construção de uma teodiceia (um argumento que livrasse Deus da responsabilidade pelo mal e pelas desgraças naturais) havia tido grandes combatentes. O filósofo Leibniz, em 1710, criou a ideia, ridicularizada por Voltaire, de que esse é o melhor dos mundos possíveis. Em 1733, um cara chamado Alexander Pope propôs a noção – expressa no aforismo What ever is, is right – de que qualquer coisa que exista é boa.

Todo esse esforço não parecia fazer sentido diante da catástrofe de Lisboa. Voltaire foi um dos que afirmou que o terremoto de 1755 não havia destroçado apenas a capital lusitana, mas teria feito desmoronar toda uma visão de mundo que confiava cegamente na bondade de Deus. No seu Dicionário filosófico ele escreveu: “Um pai que mata seus próprios filhos é um monstro... Se se imagina Deus tão bondoso e justo quanto um pai ou rei deveriam ser, não há mesmo qualquer justificação possível para Ele”.

Voltaire jogou baixo contra o cristianismo porque sabia que a questão do mal no mundo, desde a época dos gnósticos, era um problema constrangedor para os cristãos. O Deus de justiça dos judeus, que tem uma mão para castigar e outra para perdoar, não é constrangido pelas catástrofes naturais, assim como o Deus insondável e absoluto dos mulçumanos, que não autoriza qualquer tipo de julgamento moral de suas ações por parte dos seus subordinados humanos. Mas o Deus cristão é um deus de absoluta bondade e de absoluto perdão, um deus onipotente, que ama incondicionalmente seus filhos e se torna imediatamente objeto de julgamento por parte das vítimas das catástrofes naturais.

Um comerciante alemão que morava em Lisboa no dia da catástrofe apontou para a terrível ansiedade que tomou conta da população ao deparar-se com seus empregados estendidos de cara no chão implorando pela misericórdia de Deus. Imagens muito parecidas com a dos haitianos a levantar as mãos para o céu diante da imagem do Cristo crucificado na frente do que sobrou da catedral de Porto Príncipe a perguntar: “Por que, Bom Deus!?! Por quê?”.

Quando as primeiras imagens do terremoto no Haiti chegaram à internet e às redes de TV, arcaicas reações humanas diante da morte e da dor começaram a pipocar mundo afora. Algumas imagens são realmente assustadoras. Outras, desconcertantes e comoventes. Mas poucas imagens foram tão significativas quanto a do garoto haitiano que, após passar dias soterrado, saiu de um buraco pelas mãos de bombeiros e abriu os braços em um misto poderoso de alegria e alívio.

Há um vitalismo profundo naquela imagem, como se a natureza desse um sinal de que, apesar de tudo, a vida se impõe. Se tragédias naturais, como a do Haiti em 2010 e a de Lisboa em 1755, põem em questão a bondade absoluta de Deus, elemento tão caro à teologia cristã, imagens como a do menino haitiano parecem redimir a natureza de sua face sombria.

Quando Lisboa caiu, em 1755, Voltaire aproveitou a oportunidade para atacar sem piedade a Teodiceia de Leibniz. Voltaire já havia ridicularizado Leibniz quando compôs seu personagem Doutor Pangloss no livro Cândido. Doutor Pangloss, um otimista incorrigível, achava que esse era o melhor dos mundos possíveis, a despeito de todas as evidências contrárias.

Certamente Voltaire teria chafurdado em cima da carne seca por muitos anos se outro filósofo de alta estirpe não tivesse entrado na discussão para mudar o foco do debate sobre as catástrofes naturais. Em 1756, Imannuel Kant publicou uma série de artigos em um jornal de sua cidade natal (Königsberg) e em uma publicação editada por Johann Heinrich Hartung. Nesses textos, Kant desvia o foco da discussão acerca dos terremotos. Não se tratava,naquela hora, de julgar Deus ou perguntar pelos motivos morais do desastre.

Ele escreveu: “meu único propósito é aduzir razões físicas como matéria de conjectura”. Kant não discutiu questões éticas, teológicas ou metafísicas. A natureza não merece esse tipo de especulação.

No fundo há certa concepção teológica subjacente na discussão de Kant. O que se insinua nesses textos é que não faz sentido imaginar que a onipotência de Deus não se subordine à necessidade natural. Ora, se Deus criou o mundo, não é coerente imaginar que Sua vontade deva se sobrepor às leis que Ele mesmo gerou. Seria uma desconcertante contradição, um vexatório indício de imperfeição se Deus resolvesse mudar as regras do seu próprio jogo na metade do segundo tempo.

Kant apontava para o fato de que não existe mal ou bem no que diz respeito aos fenômenos da natureza. Diante de um maremoto, um terremoto, um ciclone, é irrelevante levantar questionamentos morais ou mesmo tentar extrair de um acontecimento específico reflexões sobre a bondade de Deus. A natureza não é boa ou má; ela simplesmente é. Seus fenômenos não são ações, mas consequências de regras e de mecanismos específicos.

O povo do Haiti, em sua desgraça, ensina à comunidade global que, no mundo natural, vida e morte partilham de um mesmo e único movimento contínuo que nos constitui e nos devora em um isonômico giro de tempo que nunca acaba.

Não é uma questão de justiça, não é um problema moral. Não há culpa, castigo ou misericórdia. A natureza nos mata com a mesma mão que nos dá a vida, e Deus, se for mesmo seu criador, não está aqui para mudar o curso de suas próprias leis no meio do caminho. Depois de Kant, Deus libertou-se das acusações morais dos homens, e nós, por outro lado, permanecemos sós diante desses acasos da vida, a que o gênero humano não pode escapar. Solitários mas absolutamente desimpedidos e livres para chorar a morte com a mesma intensidade com que cantamos a vida.

Publicado em 2 de março de 2010

Publicado em 02 de março de 2010

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