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Kant e os fundamentos da pedagogia moderna
Marlon Baptista
Doutorando em Filosofia
Submissão do homem às “leis da humanidade”
Na modernidade, devido à mudança quanto ao modo de compreender o ser humano enquanto projeto, enquanto algo que não nasce pronto, mas que é resultado de um processo educativo, foi preciso redefinir os fundamentos e as metas da pedagogia por meio da definição daquilo que supostamente constituiria o nosso ser mais próprio, em direção ao qual deveríamos nos dirigir por meio de uma educação adequada. Neste texto dou atenção para a perspectiva iluminista acerca da formação humana presente no filósofo alemão Immanuel Kant (1724 - 1804).
No conjunto de aulas ministradas por Kant entre os anos de 1776 e 1787, que foi intitulado Sobre Pedagogia, aparece logo na primeira linha a frase: “O homem é a única criatura que deve ser educada” (Kant, 1964, p. 697). Com isso, Kant afirma a diferença essencial entre o ser humano e os outros animais a partir da compreensão de que as outras criaturas vêm ao mundo já prontas, estabelecidas numa forma determinada, em que o instinto faz as vezes de uma “estranha razão” que cuida para que o indivíduo da espécie encontre seu caminho e viva de acordo com sua natureza. O homem, por sua vez, precisa do desenvolvimento da razão por não poder contar com essa programação prévia do instinto, tendo a necessidade de criar o planejamento acerca de seu modo de proceder no mundo. Por conta desse estado de carência de uma forma previamente definida, ele precisa de cuidados exteriores desde o seu nascimento.
Nessas aulas Kant constrói uma espécie de esquema de educação (Erziehung), que se divide em várias partes responsáveis por distintas habilidades a serem desenvolvidas, de modo que o homem passe a ser de fato homem por meio do desenvolvimento de todos os âmbitos de suas disposições, pois “o homem só se torna homem por meio da educação” (idem, p. 699). Desse modo, como primeira preocupação, aparece, num sentido negativo, a disciplina, que deve evitar que o sujeito se afaste de sua determinação humana por conta da livre expressão de impulsos animais. Kant entende a selvageria (Wildheit) como a ausência de leis, e considera que a determinação por excelência do homem é a liberdade, que é propriamente a capacidade de estabelecer leis para si mesmo. Portanto, é preciso, desde o início – da mais tenra infância –, controlar o caráter voluntarioso do arbítrio que tende somente à obtenção de prazer, para que possa ser cultivada e aplicada uma legítima vontade livre, que só pode ser livre quando “submete o homem às leis da humanidade” (p. 698), as quais são determinadas pela razão com a finalidade de propiciar ao homem algumas habilidades específicas, as quais devem submeter o eu empírico ao poder deliberativo da moral, entendida como razão prática. Essas habilidades estariam contidas na cultura (Kultur), que mais à frente Kant define como o exercício das faculdades do ânimo (Gemütskräfte), que nos diferencia dos outros animais – e o “ânimo” sendo entendido como o conjunto das faculdades de pensar, querer e sentir.
Não temos a felicidade como destino
Enquanto Kant se refere à ideia de educação como o desenvolvimento “das disposições naturais do homem” (Kant, 1964, p. 701), no parágrafo 83 da Crítica da Faculdade do Juízo aparece um fator complicador para a realização desse projeto, pois as disposições naturais do homem são consideradas incoerentes, e essa incoerência precisa ser compreendida. Antes tínhamos dito que a princípio todo indivíduo tem um pendor para a satisfação meramente empírica; também dissemos que o homem precisa desenvolver a razão enquanto sua condutora, por ser desprovido do instinto presente nos outros animais. Por sua vez, a razão é, por origem, oposta ao bem-estar, não se relaciona imediatamente com ele, pois no interior do sistema das faculdades kantianas a razão ocupa o ponto mais alto da hierarquia entre as faculdades, o que faz com que ela não se relacione com os objetos – fontes da felicidade entendida como bem-estar empírico, pois ela funciona como um poder de organização que classifica os conceitos; e o que isso significa? Pela faculdade da intuição recebemos as impressões sensíveis (os cinco sentidos, as formas, as cores, texturas etc.); uma outra faculdade, a do entendimento, por meio de seus conceitos, organiza esses dados que recebemos pela intuição para a produção de conhecimento, como por exemplo: tenho a intuição do que seja um corpo e a do que seja a sensação de “dureza”, mas para fazer o link entre estas duas intuições, para que seja constituído um conhecimento (“o corpo é pesado”, por exemplo), são necessárias as categorias de nosso entendimento que organizam os dados caóticos e sem ligação da sensibilidade. Assim, quando dizemos que a razão não se relaciona com a sensibilidade, quisemos dizer que ela ocupa um lugar mais alto entre essas diferentes faculdades, ela se utiliza das categorias do entendimento elevando-as a um âmbito incondicionado. Uma categoria do entendimento é a de causalidade; significa que todo efeito tem uma causa; a razão, ao elevar essa categoria ao incondicionado, pensa numa causa que não é efeito de uma causa anterior a ela, ou seja, pensa a liberdade; esta se constitui somente enquanto ideia, e não como um conhecimento promovido pelo entendimento. Assim, a intuição, em companhia do entendimento, se relaciona diretamente com os objetos, o que faz com que a razão se encontre mais distanciada dos objetos do que o entendimento. A razão se relaciona com ideias, enquanto o que é empírico (condição necessária para que se dê um objeto) não é capaz de realizar ideias. O seu caráter sistematizador ou regulador tem como finalidade, no decorrer da progressão empírica, levar a investigação adiante, ordenando a realidade que provém dos conceitos do entendimento que subsumem a multiplicidade da sensibilidade a uma unidade, o que quer dizer que a razão não produz conhecimento, mas sim ideias, ou seja, o que diz respeito ao âmbito da representação e não da sensibilidade. Mas, além disso, a classificação que a razão realiza se dá por meio da exigência de que será possível classificar “a totalidade daquilo que ordena” (Vicente, 1994, p. 47). Assim, a imaginação representa o bem-estar em sua totalidade, com o auxílio da razão, que visa à unificação, à síntese de todas as satisfações que são possíveis.
Mas acontece que o conceito de felicidade (enquanto bem-estar empírico) é inseparável da animalidade, e o homem projeta essa ideia de várias formas diferentes, numa mistura de entendimento, imaginação e sentidos (Kant, 1995, p. 270), de modo que esse conceito é extremamente oscilante e impreciso. É impossível a representação desta ideia em sua totalidade conforme a demanda universalizante da razão, porque, para isso, seria necessária a consciência de todos os prazeres possíveis – o que exigiria a onisciência – e, além disso, sua representação é inviabilizada pelas contradições provenientes das próprias satisfações pensadas separadamente – como o prazer de ter para si o objeto de amor causa o medo terrível de perdê-lo ou o gozo da saúde que exige privações e restrições etc. A felicidade ou bem-estar é, por sua vez, um conceito imperfeito devido à impossibilidade de unificação e estabilização da totalidade de seu sentido e abrangência. Por sua vez, o que faz com que ocorra a incoerência entre as disposições naturais do homem é o fato de ele ser constituído tanto de razão como de sensibilidade.
A finalidade não natural da razão
Mas essa incoerência só é de fato incoerência se se pretender usar o poder da razão para satisfazer as demandas da sensibilidade. Devemos então determinar a finalidade não natural da razão para estabelecer a meta do homem em meio à natureza. O homem tem como caracterização peculiar a capacidade de estabelecer arbitrariamente fins a si mesmo por meio do entendimento (ibidem, p. 271); pode-se entender que o homem tem como finalidade submeter a natureza enquanto meio para os seus fins, tornando-se seu senhor. Mas essa consideração não pode se pautar somente na condição factual, ou seja, natural da posição do homem em meio à natureza, pois, se visto assim, por mais que ele seja sua finalidade última (letzter Zweck) enquanto determinador arbitrário de finalidades, ele pode servir de meio, por exemplo, no interior da cadeia alimentar, contribuindo para o equilíbrio populacional das espécies, o que o privaria da radicalização de se constituir realmente enquanto finalidade última justamente por assumir uma posição de meio para finalidades que estariam acima dele. Por isso, o estabelecimento do homem enquanto finalidade legitimamente última precisa ser independente da natureza para alcançar assim o estatuto insuperável de meta final (Endzweck), ou seja, que jamais pode ser meio.
Somos obrigados então a pensar no que a natureza fez para possibilitar que o homem seja provido de meios para se colocar de fato enquanto meta final. Para isso, é preciso excluir qualquer fim que se fundamente em condições naturais, como a felicidade, que não pode ser colocada como fim supremo do homem sem que com isso ele não seja privado do poder de estabelecer um fim último para si de modo a entrar em acordo consigo mesmo. Assim, o único fim que permanece em sua determinação enquanto meta final é a “condição formal, subjetiva, que é a aptidão de se colocar a si mesmo fins em geral e (...) usar a natureza como meio de acordo com as máximas dos seus fins livres em geral” (ibidem, p. 272). Essa aptidão é o que caracteriza essencialmente o sentido da cultura, e só ela pode ser o fim último da natureza expresso no gênero humano.
As disposições humanas
A partir dessa definição podemos retornar a um momento em que afirmamos que o homem precisa alcançar algumas habilidades específicas, pois estas se encontram no interior da cultura pensada em geral. Tínhamos já citado a disciplina (Zucht) enquanto forma primeira e negativa de fazer com que o indivíduo se afastasse do “despotismo dos desejos” (Ibidem), o qual inviabiliza a escolha livre devido ao atrelamento indevido ao mundo sensível. Portanto, é preciso estabelecer o controle da razão sobre a sensibilidade de modo a torná-la útil para os fins da razão. No interior da definição de cultura, além da disciplina, está o cultivo da habilidade (Geschicklichkeit), que consiste – a princípio, independentemente da moralidade – na capacidade de realização instrumental dos fins que o indivíduo coloca livremente para si, ou seja, um lado positivo da educação referente ao desenvolvimento da capacidade de concretização dos fins idealizados. Kant afirma também a importância, no interior da cultura, do cultivo da prudência (Klugheit), que possibilitaria ao indivíduo um bom relacionamento social, de modo a ser influente e querido, além de ser maleável conforme as opiniões do momento e até mesmo – por meio da submissão a certos costumes, etiquetas e boas maneiras – fazer uso dos outros em conformidade com seus próprios fins, o que, em suma, pode ser designado como capacidade de civilidade por meio da adaptação do homem à sociedade.
A partir do que foi dito até aqui, ainda está indeterminado o modo como a moralidade pode assumir a meta final do processo educativo que leve o homem à sua verdadeira destinação. Tratamos da compreensão de que, se originariamente o homem tem um pendor pelas inclinações naturais, é importante começar pelo cultivo delas, pois tanto a disciplina quanto a habilidade e a prudência estão ainda no âmbito do natural, na medida em que visam, de forma neutra (no sentido moral), ao bem-estar do indivíduo. Mas, por outro lado, o exercício da habilidade já se mostra como modo de extrapolar qualquer proposta de educação que se mantenha somente no âmbito teórico, pois a aquisição de conhecimentos só ganha sentido na medida em que o aluno se torna capaz de aplicá-los nas situações da vida e realizar seus intentos, o que significa a capacidade de agir livremente, de modo que suas capacidades intelectuais devem ser fortalecidas somente na medida em que intensifiquem sua capacidade de utilizá-las. Ou seja, trata-se de um modo de entender a formação distinto da maneira atual, que faz do saber uma finalidade em si mesma, restringindo o modo prático de nossa ação à aplicação de conhecimentos teóricos. Por sua vez, a cultura não visa à supressão da sensibilidade, mas somente impede que o eu empírico se torne o fator determinante na ação humana, que ele se torne o fim último, o que, consequentemente, no interior da reflexão kantiana, privaria o homem de sua humanidade.
A compreensão do homem como meta final – ou seja, como aquele com a aptidão de colocar fins a si mesmo – se faz necessariamente como lei moral, porque a partir do momento em que eu me concebo enquanto sujeito livre por me compreender como um indivíduo que é um fim em si mesmo, e jamais um meio, devo respeitar tal condição presente em outro ser humano, de modo que o que me torna possível a definição de humanidade é o que me faz respeitar qualquer outro ser humano naquilo que lhe é mais essencial: a sua liberdade; isso quer dizer que respeitá-lo significa que devo sempre tratá-lo enquanto fim em si mesmo, e nunca como meio.
Com isso, quando Kant prescreve a necessidade até da habilidade da dissimulação no interior da prudência, por exemplo – de usar os outros conforme nossos intentos –, não se trata meramente de usar o outro conforme os nossos interesses ao bel-prazer, mas sim de utilizá-los para alcançar nossa meta final. De modo que a reputação e a influência que um homem pode adquirir no interior da sociedade devido ao cultivo de sua prudência permitem-lhe, enquanto indivíduo que alcançou a consciência de si como meta final, interferir nessa sociedade, de modo a viabilizar um modo de constituição política que melhor permita a instauração da moralidade. É importante frisar isso porque há um momento, em Sobre a Pedagogia, em que Kant atenta para a importância do que ele chama de “cultura das faculdades do ânimo”; ainda que ele considere necessário o respeito pelas peculiaridades próprias da infância – e por isso a atenção a uma formação que leve seriamente em consideração a experiência e a sensibilidade inicialmente –, as faculdades inferiores (imaginação, memória, sensibilidade etc.) devem sempre ser cultivadas visando às faculdades superiores, quais sejam o entendimento, “o conhecimento do universal”, que produz os conceitos que se aplicarão às intuições; a faculdade de julgar, “aplicação do universal no particular”; e a razão, “a capacidade de compreender a combinação do universal com o particular”, instância em que ocorre a representação de ideias como moralidade, finalidade, regulação – a qual produz inclusive o objeto que é a representação da lei moral, o que significa que o desenvolvimento da razão seria a finalidade do desenvolvimento de todas as outras habilidades e que, por sua vez, só faz sentido todo esse trabalho em prol da razão se for visada a sua concretização na forma mais alta, qual seja na forma da razão prática que estabelece e cumpre leis morais, dando corpo ao caráter reflexivo da razão pura.
Referências bibliográficas
KANT, Immanuel. Über Pädagogik. In: Werke (Band IV). Frankfurt: Insel Verlag, 1964.
____. Sobre a pedagogia. Trad. Francisco Cock Fontanella. Piracicaba: Editora Unimep, 1996.
____. Crítica da faculdade do juízo. Tradução de Valério Rohden e António Marques. 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
VINCENTI, Luc. Educação e liberdade: Kant e Fichte. Trad. Élcio Fernandes. São Paulo: Editora Unesp, 1994.
Publicado em 9 de março de 2010
Publicado em 09 de março de 2010
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