Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

O Sísifo pós-moderno - o jogo absurdo entre identidade e simulacro

Alexandre Amorim

Uma das mais significativas passagens para que possamos compreender o texto pós-moderno como uma reflexão a respeito da identidade está em Hotel Atlântico, romance de João Gilberto Noll, quando o protagonista recebe de alguém a sua carteira de identidade, que havia perdido: “nem me lembrava mais dela”, ele comenta, e passa para outro assunto. No entanto, apesar da brevidade da cena, não há sutileza em suas palavras, toda percepção de sua condição está expressa aí. A “identidade esquecida” é a pedra fundamental dessa reflexão, quando se leva em conta que não há mais como se registrar uma identificação e torná-la patente. Não há mais razão para carregarmos uma identidade única e definitiva, se tudo em torno se transforma e se multiplica com uma rapidez que nos obriga a rever nossas respostas ao que nos circunda. Como atesta o sociólogo Stuart Hall, à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente.

A identidade esquecida é uma identidade perdida, na ambiguidade inerente do termo: o que está sumido mas que pode ser recuperado. Essa recuperação pode se tornar necessária dentro do nosso sistema cultural múltiplo, mas a permuta de identidades perante a multiplicidade cultural e a subsequente variedade de situações que se deve enfrentar confere nulidade a cada uma das identidades assumidas, já que podem ser desprezadas a qualquer momento, de acordo com o confronto estabelecido. Essa fragmentação da personalidade pode ser associada a um estado esquizofrênico, mas ao mesmo tempo devemos lembrar que a construção da identidade é algo constante, segundo Freud. Ainda nas palavras de Hall, “ela permanece sempre incompleta, está sempre em processo, sempre sendo formada”. A fragmentação acontece porque, se a identidade está sempre incompleta, ela ainda assim deve responder ao outro, deve se confrontar com o mundo múltiplo que a cerca, questiona e colabora em sua formação.

Existe, no entanto, uma tenuidade entre a identidade como termo de reconhecimento perante o outro e como termo de autoconhecimento perante o outro. Ambas partem das características próprias do sujeito e comuns entre este sujeito e o outro, porque ambas necessitam reconhecer o que há de comum e o que difere entre a pessoa e o outro, mas no reconhecimento é necessário realçar as semelhanças, o que há de experiência comum entre ele e a situação a ser confrontada. Se vai haver sempre uma identidade em andamento, em formação, o reconhecimento perante o outro radicaliza a fragmentação dessa identidade através da adaptação em relação a esse outro. As significações e representações culturais múltiplas que Hall cita se relacionam com frações de uma pessoa que se adapta à mútua identificação: “uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou representado, a identificação não é automática, mas pode ser ganhada ou perdida”.

O que foi esquecido para dar lugar ao novo vai sempre retornar como parte formadora da nova visão deste sujeito. Como afirma Deleuze, “a troca ou a substituição dos particulares define nossa conduta em correspondência com a generalidade”, i.e., nossas características próprias estão sempre em formação e definindo a cada ponto a nossa relação com a alteridade, mas essa alteridade corresponde com a sua influência em nossas características próprias. Assim, não existe perda total da identidade, mas a recuperação da identidade esquecida também nunca é completa, porque as frações de identidade do sujeito estão sempre vis-à-vis: o sujeito está em constante cotejo de seus fragmentos, e deles com a alteridade; isso é o que determina o processo de formação da sua identidade.

Esse processo é representado em várias obras pós-modernas por indícios fortuitos e não-lineares: é um processo aleatório e não necessariamente apresenta um resultado em relação à personalidade do personagem: quando o protagonista de Hotel Atlântico afirma que nasceu e viveu até os seus 20 anos em Porto Alegre, isso nada vai adicionar às suas características. É um fato da sua composição, mas não parece contribuir para o seu caráter. Não importa em que hotel ele estaria ou que direção ele tomaria se sua origem fosse outra qualquer: suas frações de identidade continuariam débeis e suas ações, indeterminadas. Seu processo de formação é aleatório, depende de fatores incertos e está sujeito ao acaso. O protagonista não se vê mais “inscrito em uma ordem que lhe é superior, mas vítima de sua própria vontade”. Ele não obedece a ordens, segue sua própria ordem, que é caótica: suas vontades são a soma de um esboço de rumo a ser tomado e das circunstâncias em torno dele. A chegada a Florianópolis teria resultado diferente, não fosse a morte de sua companheira de viagem, em Hotel Atlântico? Não se sabe, não se pode saber e não importam as consequências desses fatos envolvidos em um futuro tão cheio de condições. A identidade do protagonista é por demais fraturada para que se levem em conta os fatores casuais que ajudaram em sua formação, porque a fração de identidade desse protagonista é mínima e tende a se anular. Mesmo o sexo masculino e a idade aproximada, frações de identidade definidas nos personagens das obras descritas aqui, não necessariamente colaboram para as características de reconhecimento do personagem.

De fato, o confronto com o sistema cultural que o cerca é alienante. Sua ideologia é inexistente e sua impassibilidade diante das decisões a serem tomadas denota apatia em relação a esse confronto. A aparente liberdade do personagem, no entanto, é um simulacro da liberdade desejada, mas limitada, sendo o próprio personagem limitado às demarcações de sua vida. A reação do personagem pós-moderno ao confronto com o outro é a simulação: essa é sua resposta a uma alteridade que não permite que ele se identifique. Chegamos, então, ao último estágio da identidade desse personagem, através da alienação: sua explosão em frações mínimas, nunca constantemente ligadas, porque a relação de suas características formadoras da identidade é volúvel.

A identidade é infinita, porque fragmentada. Essas frações não caminham ou apontam para uma reunião em uma essência da identidade, porque ela não existe, mas para ligações ocasionais entre elas. Essas frações da identidade podem comunicar-se entre si, mas não através de uma essência e sim de suas correspondências, de suas identificações recíprocas. Na obra de Noll, essa fragmentação leva a uma simulação de sua personalidade, quando o esquecimento (a perda) de sua identidade não abre espaço à criação de uma nova, mas explicita a consciência de sua nulidade: “eu era aquele homem no espelho, eu era quase um outro, alguém que eu não tivera ainda a chance de conhecer”.

O que poderia identificar o personagem – seu sexo, sua idade, sua origem – é de somenos importância. Essas frações de identidade citadas não equivalem a um valor formador de caráter do personagem e tornam-se facilmente substituíveis. Assim, através dessa permuta, o leitor se reconhece no simulacro do narrador-personagem. Se, de acordo com Deleuze, a representação platônica pressupunha uma conservação da identidade do objeto, a obra pós-moderna “conduz ao abandono da representação” porque “a cada perspectiva ou ponto de vista corresponde uma obra autônoma, dotada de um sentido suficiente”. O esquecimento da identidade, no caso aqui estudado, é o caminho que leva o protagonista a simular a si próprio e renunciar à sua representação, renunciar a uma cópia de si mesmo. Se não existe identidade, não há cópia: a representação agora vem através da semelhança com o que há nessas frações mínimas que não identificam mas trazem uma infinidade de possibilidades de correspondência do personagem com o seu simulacro. Também através do processo de correspondência cada leitor tem a sua obra autônoma a partir da obra do autor gaúcho, quando substitui o simulacro do narrador por sua própria experiência. Como afirma Baudrillard, “na pluralidade, na multiplicidade, o ser nada mais faz do que trocar-se por si mesmo ou por seus múltiplos avatares. Ele faz metástase, não se metamorfoseia”. Não há intenção de tornar-se outro nem de alcançar o outro, pois o contato com o outro se dá através da consequência de seus atos de simulação: ambos reconhecem-se através da experiência da fragmentação frente a um mundo desnorteante. A tangência se dá quando o outro compreende que também pode esquecer a sua identidade e tornar-se seu próprio simulacro.

O protagonista pós-moderno assume, via de regra, que não há mais uma imagem semelhante a si mesmo, apenas uma simulação do que ele poderia ser. Assume o seu devir, porque sua identidade – sua imagem a ser comunicada – torna-se esquecida. Não há mais como expressar sua identidade, esquecida no absurdo que é o destino de viver. Não há mais como prender-se a uma identidade, e ele prefere esquecê-la, mas ao mesmo tempo precisa expressar-se, por isso simula ser ele próprio.

O simulacro e seus jogos

Existe o objeto em si e existem suas cópias orientadas por ele, mas o simulacro quebra as regras da cópia para criar um novo jogo e especula acerca das diferenças possíveis. Deleuze corrobora essa visão afirmando que “a representação tem a identidade como elemento e a semelhança como medida; a pura presença tal como aparece no simulacro tem o ‘díspar’ como unidade de medida”. Enquanto a cópia faz observar a semelhança através da identidade, i.e., da qualidade de idêntica com o original, o simulacro chama a atenção por si mesmo, apesar da identificação com o original, determinando o reconhecimento deste. O simulacro não mais representa o original, porque não se identifica com ele, mas é uma presença em si e traz a estranheza de sugerir aquele objeto primeiro.

À representação corresponde a cópia, modelo por excelência do original; a simulação só pode gerar presença, porque o simulacro não representa nenhum objeto, apesar de podermos ler nele os signos presentes no original e na cópia. Ele “é o seu próprio símbolo, isto é, o signo, na medida em que ele interioriza as condições de sua própria repetição. O simulacro apreendeu uma disparidade constituinte na coisa que ele destitui do lugar de modelo”. Se no simulacro apreendemos a diferença, ele passa a ter tanto valor quanto o modelo, e passa mesmo a ser modelo, porque traz nele o entendimento do que é diferente, do que pode ser separado do modelo e, portanto, do que pode ser uma nova singularidade. Se o “objetivo supremo da dialética é estabelecer a diferença”, o simulacro é parte fundamental dessa dialética, e não pode sofrer hierarquização em relação ao modelo ou sua cópia.

Apresenta-se, então, o jogo completo do simulacro; a simulação é o efeito do seu funcionamento. O funcionamento do simulacro é exibir a “potência do falso”, segundo Deleuze, no modelo e na representação. Ele faz desabar a tentativa de fundamentar uma essência e sua imagem, porque demonstra o que pode haver de falso em ambas. “O simulacro não é uma cópia degradada, ele encerra uma potência positiva que nega tanto o original como a cópia, tanto o modelo como a reprodução”. A partir daí, não há mais por que hierarquizar original e cópia: se havia uma ordem de subordinação em ambos porque a cópia submetia-se ao modelo, o simulacro insere-se nessa relação e mostra que ele também submete o modelo à comparação pelas suas disparidades. A cumplicidade e o jogo aqui tratados são conceitos-chave para que se compreenda a simulação do personagem, porque sua identidade foi simulada e o leitor pode ser cúmplice de sua narrativa através desse simulacro. O protagonista torna-se seu simulacro, anulando a sua própria identidade e possibilitando ao leitor o reconhecimento dessa experiência pela sua própria experiência de fragmentação da identidade.

Ao criar o jogo, o simulacro passa a ter uma relação subversiva com o que se denominava original. Ele corrompe o papel de modelo desse original, porque existe no simulacro “um devir subversivo das profundidades, hábil a esquivar o igual, o limite, o Mesmo ou o Semelhante”. Já vimos que o simulacro faz a relação entre modelo e cópia se transformar, mas aqui tratamos também da relação entre o modelo e o próprio simulacro. Essa relação torna desprezível a questão da origem, porque ambos existem para servir de comparação, e tanto o simulacro quanto o modelo englobam o potencial de serem interpretados e representados. O simulacro passa a ter vida própria e deixa de ser uma representação, já que a representação não se define em uma relação extrínseca ao objeto. Portanto, a simulação liquida os referenciais e revive os signos agora voltados para ela e não para o real que os originou. A simulação “produz sintomas” do que não tem, porque potencializa interpretações sem ser o modelo e assim se iguala ao real: “a incerteza do pensamento é que ele não se troca nem com a verdade nem com a realidade”. Se para o real não existe uma equivalência, apenas a interpretação e a consequente representação, o simulacro também se multiplica em pensamentos incertos e interpretações a seu respeito. A simulação está independente do que um dia foi seu modelo e, portanto, livre para produzir simulações sobre si mesma. A partir desse momento, o homem está livre para escolher o seu modelo: o real ou seu simulacro.

Sobre a questão platônica da indistinção, Gustavo Bernardo propõe uma interessante releitura do mito da caverna: a gruta transforma-se em sala de cinema e as sombras estão projetadas na tela. Dessa vez, no entanto, sentimo-nos confortáveis com as imagens: “estamos ‘programados’ para aceitar como verossímeis os deuses aparentes que transitam na tela grande”. Ao contrário da mítica caverna, sabemos que na tela estão sombras projetadas, que são imagens do real. Assistimos e interpretamos aquelas imagens aceitando serem cópias do real. Mas se nos “programamos” para aceitar a imagem, sabendo ser uma cópia, essa cópia gera em nós sentimentos ligados à nossa realidade, tais como medo, tristeza, alegria ou raiva. Nossa relação com essas imagens é simulada, visto que o acordo em suspender a desconfiança em relação à ficção é pura simulação, mas através desse relacionamento com a imagem a realidade se impõe: encarar a imagem simulando acreditar nela é fazer a realidade ser trazida de volta através dessa relação. Logo, a simulação também é uma interpretação. O simulacro não deixa de ser também mais um modo de se relacionar com o real, porque é um outro modo de interpretar, mesmo que seja interpretar uma cópia do real. Se o objeto do real pode ser pensado pelo sujeito através da sua interpretação ou através de sua simulação, termina aqui mais uma hierarquia: não existe uma ordem na dependência entre objeto e sujeito. A realidade não reside no primeiro ou na interpretação do segundo. “A realidade é o relacionamento”.

O jogo absurdo da identidade

A persistência do homem perante o absurdo da vida, proposta por Albert Camus, é uma prima-irmã do sentimento do sublime kantiano, na medida em que ambos se originam do desconforto de uma resposta não dada: “O absurdo nasce desse confronto entre o apelo humano e o silêncio despropositado do mundo”, i.e., nasce da sensação do homem de que seus questionamentos perante a vida não serão respondidos. Esse sentimento do absurdo nasce da relação do homem com o mundo, do confronto entre o querer do homem e o que o mundo lhe oferece. Segundo Camus, no entanto, o homem deve persistir, porque está vivo e deve ter coragem e consciência para desfrutar desse fato – coragem para viver sem apelações e consciência para saber os seus limites. Assim funciona o sentimento do sublime: a resposta do questionamento sobre o que foi apresentado não é satisfatória, porque o homem não consegue medi-la, mas esse homem vai continuar procurando satisfazer-se através da admiração.

Descobrir-se na situação do absurdo analisada por Camus é compreender que não há mais respostas além da própria vida a ser vivida e sua multiplicidade. A condição pós-moderna do homem, que se descobriu livre das amarras dogmáticas da metafísica e ao mesmo tempo desprovido das respostas que poderiam ser encontradas no futuro ou em outra possível dimensão da vida, trouxe-lhe a responsabilidade sobre o seu próprio destino. Se não existe o dogma, já que as respostas exatas oferecidas pela religião e pela ciência já sucumbiram aos seus próprios reexames, ainda existe a transcendência dos sentimentos humanos e, ao mesmo tempo, não há mais regras que aquietem esse homem em relação a eles. Se não existe um sentido unificado para a vida, nem mesmo um sentido eterno para cada homem que se pergunta a seu respeito, o confronto com o destino é constante. A liberdade do homem em determinar que nenhuma pergunta foi respondida é a mesma que “faz do destino um assunto do homem e que deve ser acertado entre os homens”. Está em nossas mãos o papel de vivermos nossas vidas, conscientes de seus irrefutáveis dilemas e lúcidos de nosso caminhar. Somos como o mítico Sísifo, que, após desobedecer aos deuses, é condenado a enfrentar cotidianamente sua rotina de rolar o rochedo até o cume de uma montanha, de onde irá rolar até o sopé e deverá novamente ser levado ao alto por ele. Para Camus, Sísifo é o herói absurdo,

tanto por suas paixões como por seu tormento. O desprezo pelos deuses, o ódio à Morte e a paixão pela vida lhe valeram esse suplício indescritível em que todo ser se ocupa em não completar nada. É o preço a pagar pelas paixões deste mundo.

Aqui enxergamos o protagonista pós-moderno como ser absurdo, Sísifo pós-moderno, que torna infinita a sua vida demarcada pela falta de um sentido e torna múltipla a sua rotina. A cada chegada e cada partida, esse protagonista faz face ao seu destino e o enfrenta sozinho. Não renuncia à vida – antes, luta por ela, mesmo que seja fugindo de alguma ameaça. Nas suas estâncias, o personagem convive com as suas paixões e pode vislumbrar a sua relação com o mundo, mas seu destino é partir e seu significado é o devir. Sua identidade está perdida; ele só pode apresentar-se como um próprio simulacro: não há mais o que representar em relação à identidade real, não há como definir-se. Se houve uma vaga aparência de sua relação com a vida, é seu destino de simulacro buscar o seu significado constantemente. “O ser-verdadeiro não é outro senão o ser-que-se-verificou, podendo adiante e algures atualizar-se de um novo modo e sob novo código”. O rochedo que se solta das mãos do protagonista pós-moderno é seu próprio significado; seu destino é verificá-lo e perdê-lo para que possa reinterpretá-lo.

Se esse personagem-narrador apresenta-se simulado porque não há como identificar o seu modelo, devemos nos lembrar de sua relação com este modelo. A perda da identidade é a causa pela qual esse personagem busca sua reconstrução ou seu significado, mas agora consciente da impossibilidade de uma identidade ou de um sentido que não seja temporal e circunstancial. Eis o jogo absurdo da identidade: ser seu próprio simulacro através de sua fragmentação. Se não existe mais a possibilidade de uma identidade integral, representação de um modelo ideal que caiu por terra, o simulacro passa a descartar a importância dessa identidade e a buscar sua própria relação com o modelo, ciente de que não depende mais dele, mas nasceu de sua fratura.

O simulacro, livre das amarras do ideal de um sentido único, torna-se um fluxo permanente. Ele vive o que Gustavo Bernardo chamou de “verdade-andando”, ele é o “sendo-humano”. Sua relação com o mundo torna-se um eterno descobrir e seus questionamentos terão sempre novas respostas. Não existe mais a explicação, mas a descrição da experiência. “Para o homem absurdo, já não se trata de explicar e resolver, mas de experimentar e descrever. Tudo começa pela indiferença lúcida”.

Essa indiferença lúcida é a força motriz dos narradores pós-modernos, desprendidos que estão de qualquer moral que os ate a uma situação, mas conscientes de seu lugar nela, mesmo que o “seu lugar” seja um ponto indefinido entre o lugar devido e o lugar desejado.

Existe uma lucidez da indefinição entre o dever e o querer estar vivenciando determinada circunstância, mas basta a esses narradores experimentar e descrever aquela situação, não há necessidade de explicá-la. “Esse divórcio entre o homem e sua vida, entre o ator e seu cenário é que é propriamente o sentimento da absurdidade”; não importa buscar a solução para o confronto, mas saber que ele existe e provar desse confronto. Vislumbrar as relações com o mundo e descobrir suas paixões, mesmo que passageiras. No sentimento do absurdo, há lugar para a indiferença, porque nosso destino está marcado com o signo do irresoluto. Mas há também espaço para as paixões, porque a lucidez do homem absurdo o faz ver que, a partir de sua liberdade, é ele, e somente ele, quem vai experimentar as suas escolhas, como demonstra Camus de modo poético:

Esse universo doravante sem senhor não lhe parece nem estéril nem fútil. Cada um dos grãos dessa pedra, cada clarão mineral dessa montanha cheia de noite, só para ele forma um mundo. A própria luta em direção aos cimos é suficiente para preencher um coração humano. É preciso imaginar Sísifo feliz.

Quando o narrador-personagem torna-se simulacro de si mesmo, não poderia haver maior grito de independência. Seu caminhar é a descrição de sua condição, sua condição é o estar a caminho dos seus significados. Seu universo está livre de regras impostas a partir de modelos, porque ele mesmo livrou-se do seu modelo. E se não há mais a que se referir, sua própria busca torna-se sua referência. Enquanto o personagem verifica constantemente o seu destino e observa os sentidos múltiplos de sua vida, ele se torna solitário em sua busca, mas ao mesmo tempo vaga consciente de seu mundo. Encontramos o perambular desse personagem examinado e reexaminado pelos seus leitores e estudiosos: a empatia causada no leitor mostra que este simulacro tornou-se sedutor o suficiente para que seja interpretado.

Publicado em 9 de marços de 2010

Publicado em 09 de março de 2010

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.