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As maravilhosas músicas politicamente incorretas da infância

Mariana Cruz

Marcha soldado cabeça de papel
se não marchar direito
vai preso pro quartel
o quartel pegou fogo...
 
Samba Lelê tá doente

tá com a cabeça quebrada
Samba Lelê precisava
é de umas boas palmadas...
 
”Pai Francisco entrou na roda,

tocando seu violão,
vem de lá seu delegado
e o pai Francisco foi para prisão...

Pode-se dizer que grande parte das músicas de roda infantis tem, para os tempos atuais, letras um tanto quanto politicamente incorretas. A mais famosa delas, Atirei o pau no gato, de tanto ser criticada pelos defensores dos animais, foi até modificada. A versão atual deixa satisfeito até o mais radical membro do  Peta: “Não atire o pau no gato-to-to/porque isso-so não se faz-faz-faz/o gatinho-nho é nosso amigo-go/não devemos maltratar os animais... miau!!!”. Entretanto, apesar da boa intenção, a versão original é muito mais difundida e reina absoluta no repertório da criançada. 

Educando através do medo

Outra famosa cantiga popular que também é alvo de críticas é a do Boi da Cara Preta, que vai pegar o menino porque ele tem medo de careta. Uma forma bastante paradoxal de estimular o exercício da coragem nos pequenos, uma vez que pretende, através de uma ameaça, fazer com que o medo de careta seja extinto. O problema é que uma ameaça nada mais é do que a imposição da vontade de alguém através do medo. Assim, tal música pretende usar o medo como antídoto do medo. E do que irá adiantar o menino parar de ter medo de careta e começar a ter medo do Boi da Cara Preta? Vão ter de criar uma música que tenha algo mais assustador que o pobre bovino, a fim de que o menino deixe de ter medo dele?

Porém, pior do que a música do boi é a que diz que o neném tem que dormir se não a Cuca vai pegar. O agravante é que, nesta canção, o pai e a mãe estão supostamente ausentes.

Acontece que tais letras vêm de um tempo (nem tão longe assim) em que esse “politicamente correto” não estava muito em voga. A pedagogia era na base da chinelada, sem espaço para diálogos e questionamentos. Assim, era comum utilizar o medo como instrumento educativo.

Outro dia mesmo, na casa de uns amigos, presenciei uma cena curiosa; lá estava uma menininha com não mais de três anos, fuçando tudo que não podia, quando deparou-se com o armário de produtos de limpeza. A bisavó não hesitou: ao invés de usar o discurso da pedagogia moderna, explicar o motivo da proibição (“não mexa aí, pois tem produtos com substâncias químicas que se ingeridas podem ser nocivas à sua saúde”), foi pelo caminho mais direto e provavelmente o único que lhe foi ensinado: “sua capetinha, pare de mexer nesse armário, que aí tem um lagarto grande que vai pegar você!”. A pequena provavelmente nem sabia ao certo o que era um lagarto, mas deve ter pressentido que se tratava de algo terrível. Afastou-se do móvel na hora, com olhos arregalados.

Engana-se quem acha que tal método é algo que faz parte do passado remoto. Prova disso é que a palmatória, objeto usado para bater nos alunos, que muitos pensam ter sido abolida das escolas há séculos, só teve seu uso extinto na Inglaterra (o último país ocidental a deixar de usá-la) em 1989. Tal instrumento era inclusive tido como símbolo da autoridade dos mestres, tanto assim que era comum que, nas festas de formatura, os alunos presenteassem seus mestres com palmatórias para afirmar sua submissão.

Cantigas de amor sem final feliz

As musiquinhas românticas de roda também estão repletas de fins trágicos, como podemos conferir na famosa Ciranda, cirandinha, que fala de um anel de vidro que se quebrou e do amor que era pouco e se acabou. Triste também é a história do cravo que brigou com a rosa debaixo de uma sacada, por isso saiu ferido e a rosa despedaçada. Mas o martírio não termina por aí: ele ficou doente e a Rosa, coitada, foi visitá-lo; ele, então, desmaiou e ela começou a chorar. Outra cantiga sem final feliz, porém, mais descolada é a do Tororó, que conta a história do rapaz que foi lá beber água e não achou, mas, em compensação, encontrou bela morena que, sabe-se lá por que, deixou por lá.

Talvez haja um pouco de exagero nos “politicamente corretos” de plantão que acham que tais letras vão interferir na vida das crianças. O que importa é a criança brincar de roda, cantar, batucar, se socializar. E tais cantigas são propícias a isso. Com certeza as crianças que brincam de roda irão lembrar-se com carinho de tais músicas; a letras importam muito mais pelas rimas, pela repetição das sílabas, pela incorporação de elementos diferentes do cotidiano do que pelas mensagens que passam. Pelo menos nessa fase da vida. E, além disso, os elementos que tais músicas mostram de forma negativa, como o Boi da Cara Preta, a Cuca, o gato que apanha, o anel que se quebra, o Pai Francisco que foi para a prisão, são vistos de forma divertida pelas crianças, assim como as cenas de briga que os desenhos de antigamente, como Papa-léguas e Tom & Jerry, entre outros, mostravam. Essas canções com seus elementos aterradores, tristes e até violentos assustam somente os adultos; para as crianças, tais cantigas servem como motor para uma ciranda que nunca para de girar.

 

Publicado em 16 de março de 2010

Publicado em 16 de março de 2010

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