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Fernão Lopes, historiador ou contador de histórias?

Raquel Menezes

Mestranda em Literatura Portuguesa (UFRJ)

Fernão Lopes, nascido por volta de 1380 (não há um registro preciso), foi escrivão de D. Duarte e deu início à série de cronistas do reino. Ler as crônicas de Fernão Lopes pode ser uma tarefa que apresenta ao leitor não só as possíveis, e compreensíveis, dificuldades de vocabulário (ainda que seja em uma edição atualizada ortograficamente), mas também as motivações históricas desse cronista que trata de modo literário a História. Fernão Lopes, que por volta de 1400 tinha cargo público de responsabilidade, acompanhou, por exemplo, a última guerra contra Castela, conheceu D. João e presenciou a rebelião do povo contra D. Leonor Teles.

Ainda que, como Aubrey F. G. Bell, possamos afirmar que Fernão Lopes é o maior dos cronistas, ele não foi o mais antigo de todos. Muito provavelmente, se cronistas como o espanhol López Ayala (1332-1407) e Froissart (1337-1410?) não tivessem existido antes do cronista português, Fernão Lopes não teria alcançado o elevado grau de excelência a que chegou. De acordo com Bell, “evidentemente Fernão Lopes deve muito a Ayala. A clássica introdução dos discursos, que lhe têm censurado, imitou-a do seu predecessor espanhol” (1986, p. 24). Além do já nomeado Ayala – citado por Fernão Lopes em Crônicas de D. Fernando e em Crônicas de D. João (segunda parte) –, Martim Afonso de Melo e um latino Dr. Christophorus (Cristovão), segundo António José Saraiva e Óscar Lopes, são também mencionados por Fernão Lopes, que se refere livremente aos seus predecessores na arte da história.

A obra de Fernão Lopes compõe-se da Crônica de D. Pedro, da Crônica de D. Fernando e da Crônica de D. João (1ª e 2ª partes). O presente trabalho se propõe a observar como Fernão Lopes visita fatos históricos e, a partir deles, constrói um texto literário, visto que, para contar suas histórias, o cronista carrega nos pormenores dramáticos, descrevendo as personagens com características e emoções.

Com o objetivo de analisar como a revisitação histórica é feita por esse cronista, sua originalidade será um tema. Luiz Costa Lima, em seu A crônica medieval e a originalidade de Fernão Lopes, ao discutir o discurso ficcional nesse cronista, coloca em relevo a inexistência de qualquer marca distintiva entre a história e a ficção na Idade Média: “Para o homem medieval, não há qualquer marca distintiva entre história e ficção. Desde que não se oponham à verdade religiosa, ambas são confiáveis, porque ambas são tomadas como verdadeiras” (Lima, 1986, p. 23). No entanto, logo após ratificar que história e ficção eram indistinguíveis na Idade Média, Costa Lima ressalva que em Fernão Lopes, apesar de este ser um cronista medieval, a história e a ficção passam a ser distintas. Nas suas palavras, “vemos como ele [Fernão Lopes], embora não se pretenda que seja o único, que ao reconhecimento da instância subjetiva passa a corresponder o estabelecimento de uma linha divisória entre a História e a ficção” (1986, p. 23).

Assim, observamos como a história ficcional de Fernão Lopes marca uma ruptura com a tradição medieval. Para este estudo, além da teoria de Costa Lima, são também aproveitados os pressupostos de António Borges Botelho acerca da definição de justiça que leva o reinado de D. Pedro a ser considerado bom – porque justo – para o povo. Associada à ideia de justiça, a noção de público de George Duby aparece neste trabalho com o intuito de compreender a parceria entre o povo e o rei que figura na Crônica de D. Pedro. Outros olhares lançados sobre a escrita de Fernão Lopes são utilizados, como o de António José Saraiva, Teresa Amado, Luis Sousa Rebelo e o já citado Aubrey F. G. Bell.

Apesar de ter em vista que as crônicas de Fernão Lopes formam uma trilogia e obedecem, portanto, a um “plano geral” – o que coloca o cronista de D. Duarte em uma posição soberana como historiador, pensador e escritor e atribui uma decisiva intencionalidade a toda essa escrita –, é mais utilizada na primeira parte do texto a Crônica de D. Pedro e, na segunda, a Crônica de D. João. Devido à intencionalidade da escrita de Fernão Lopes em contar os feitos dos antecessores de D. Duarte, a pedido deste, a crônica de D. Fernando é mencionada com intuito de mostrar como a justiça de D. Pedro legitimou seu bom reinado. Isso porque, para Fernão Lopes e seu conceito de justiça equânime, D. Pedro, “com bom desejo, por natural inclinação, refreou os males regendo bem seu reino” (Lopes, 1977, p. 43), enquanto seu sucessor, D. Fernando, é o rei cujas “sucessivas perplexidades, provocadas pela sua governação, criam o espaço psicológico onde se move o desejo de um novo chefe, capaz de satisfazer as esperanças goradas” (Rebelo, 1983, p. 66). A combinação dessas duas personalidades, D. Fernando e D. Pedro, dá espaço para a figura de o Mestre de Avis ser gradativamente anunciado como se fosse um messias, “o Mexias de Lisboa”.

À conclusão fica a tarefa, como de costume, de costurar as ideias do texto, transformando os retalhos em um tecido firme, ainda que isso se dê de modo ensaístico, já que não se trata de uma tese ou de um tratado, mas sim de uma monografia. Tenciona-se ler o literário no cronista Fernão Lopes – o que, saliento, não é uma grande novidade –, tendo em vista a relação entre a história e a ficção, tendo como veículo de pensamento a revisitação ficcional da história.

A originalidade literária de Fernão Lopes: história ou ficção?

Aprendemos com George Duby que a História é uma arte, uma arte essencialmente literária, e que, portanto, uma crônica é um texto literário, ainda que feita com um propósito de uma “certidão de verdade” (1984, p. 5), como, em um texto dedicado à escrita de Fernão Lopes, afirma Flora Sussekind. Fernão Lopes, em algum ponto da crônica de D. João, pergunta acerca da desvalorização da “fremosura” e do “afeitamento das palavras” em prol do prestígio da “nua verdade”, sintagma, em certa medida, sinônimo da “certidão de verdade”. Assim, Fernão Lopes “exige de sua prosa a nudez. Despe-a da ‘novidade de palavras’. Neutraliza-a da ‘favoreza’” (Sussekind, 1984, p. 8).

Se para um cronista medieval o que vale é a verdade, como propõe Fernão Lopes, e não o “afeitamento das palavras”, como lidava o cronista medieval com a sua própria escrita, visto que, mesmo afim à fidedignidade dos fatos, sempre correrá o risco de uma intervenção da subjetividade? Talvez pelo fato de ser um contador de histórias, como o chama Teresa Amado, Fernão Lopes acabe por reunir primorosamente a sua capacidade literária tendo como base fatos históricos.

Fernão Lopes era um cronista medieval; era, pois, um compilador que ordenava cronologicamente (“punha em crônica” (Saraiva e Lopes, 1996, p. 123)), realizando construções profundamente narrativas. Com isso, no decorrer das crônicas, a perspectiva da subjetividade complexifica-se e, desse modo, Fernão Lopes conjuga dentro de seu texto elementos subjetivos de grande potencialidade: um vinculado ao artificial, necessariamente controlado e isolado, e o outro, o de uma ordem natural, gerador de um relato, digamos assim, realístico, ao passo que o cronista se vale de fatos históricos. O contador de histórias medieval, portanto, conhecedor dos desvios pela afeição e ornamentação dos discursos, atribui-se a autoridade que o trabalho de cronista muitas vezes solicita, o que pode ser notado no prólogo à Crônica de D. Pedro:

Deixados os modos e definições da justiça que por desvairadas guisas muitos e seus livros escrevem, somente daquela para que o real poderio foi estabelecido, que é por serem maus castigados e bons viverem em paz, é nossa intenção, neste prólogo, muito curtamente falar, não como buscador de novas razões, pro própria invenção achadas, mas como ajuntador, num breve molho, dos ditos de alguns que nos prouveram. À uma por esperta os que ouvirem, que entendam parte do que fala a história (Lopes, 1977, p. 41).

Como afirma Luiz Costa Lima, “a crônica, por assim dizer, deixa de se escrever a si própria e passa a depender da interpretação de quem a assina. O cronista deixara de ser um coletor para tornar-se um intérprete” (1986, p. 22). As crônicas de Fernão Lopes marcam uma ruptura com a tradição medieval, porque o cronista trabalhou em uma margem de “integração do que é novo dentro das velhas estruturas mentais” (Rebelo, 1983, p. 59). O fato de a Revolução de Avis elevar ao trono de Portugal um rei bastardo, aliado a setores burgueses, contra uma nobreza em grande parte legitimista, permitiria a Fernão Lopes maior liberdade narrativa, como sintoma de uma descoberta da subjetividade e de seus efeitos sobre a verdade do texto escrito. Fernão Lopes anteciparia elementos centrais do discurso histórico moderno, hierarquizando o campo textual entre os modelos ornados e fabulosos e o discurso portador de uma verdade nua, pois

O historiador se legitima enquanto se vê de posse da verdade do que houve. E a verdade, em nossa tradição ocidental, não se deixa pensar senão como una (...), o foco uno da razão veio a privilegiar uma forma discursiva, a historiográfica.(...). O historiador é aquele que confronta os testemunhos, que coteja as fontes com o que outros escreveram, o que não teria outro cuidado senão o de talhar na pedra do texto as letras da verdade (Lima, 1986, p. 24-25).

Ao longo de toda a crônica, encontramos um narrador ativamente engajado em organizar o fluxo de informações, sempre cuidando de manter o interesse do leitor aceso, a ordenação do texto e a qualidade de verdade apresentada. Além disso, Fernão Lopes passa a se construir enquanto fonte de autoridade através de um conjunto de regras que implementará ao longo da narrativa. O modo como Fernão Lopes, na Crônica de D. João I, reuniu as provas para que o jurista concluísse que todos os herdeiros eram tão bastardos quanto o Mestre de Avis, inclusive D. Beatriz, de forma a “mostrar que Deus sancionava com milagres a causa portuguesa” (1988, p. 170), como afirma Saraiva, é um exemplo da fonte de autoridade do cronista. Fernão Lopes, cujo método é baseado na recolha de informação e na invalidação da prática heurística, o que permite considerá-lo o precursor da historiografia moderna em Portugal, é portanto um admirável e espantoso escritor. Capaz de criar ambientes e cenas íntimas de palácio, além de ter em sua arte historiográfica ficcional cenas marcantes – como a dança do rei com o povo e a há pouco referida recolha das provas que legitimou o Mestre de Avis – captava sutilezas psicológicas das personagens que descreveu com a finura e a sagacidade de um legitimo ficcionista. Como exemplo, a breve história do Infante D. João, o assassino de D. Maria Teles, irmã de D. Leonor Teles, na Crônica de D. Fernando, e as peripécias da rainha D. Leonor Teles contra o futuro rei, o Mestre de Avis, que o levam a ser preso.

Ainda na tentativa de tentar responder acerca do discurso de não-“afeitamento das palavras” de Fernão Lopes, avanço um século na história: a propósito da indiscutibilidade de que a Carta de Pero Vaz de Caminha é uma crônica, Jorge de Sá afirma que esta “é criação de um cronista no melhor sentido literário do termo, pois ele recria com engenho e arte tudo o que ele registra no contato direto com os índios e seus costumes, naquele instante de conforto entre a cultura europeia e a cultura primitiva” (1985, p. 3). Recuo: se trocarmos de autor, portanto, de Pero Vaz de Caminha para Fernão Lopes, observamos ainda que, contrariando a ideia de não-“afeitamento” do cronista medieval em prol de um prevalecimento de uma verdade nua, apesar da intenção de registro histórica, a crônica é antes de tudo um gênero literário. E mais: é o próprio Fernão Lopes quem redimensiona o gênero cronístico, ao instituir uma voz autoral ancorada em procedimentos de subjetivação, como o faz no prólogo da Crônica de D. Pedro:

E porquanto el-rei Dom Pedro, cujo reinado se segue, usou da justiça, de que a Deus mais apraz que cousa boa que o rei possa fazer, segundo os santos escrevem, e alguns desejam saber de virtude é esta e, pois é necessária ao rei, se o é assim ao povo; nós, naquele estilo que o simplesmente apanhamos, o podeis ler desta maneira (Lopes, 1977, p. 41).

Fernão Lopes, ao colocar em ordem cronológica a vida de D. Pedro, descreve-o como um rei justo, responsável pelo bem público. Isso permite pensar que o cronista não só relatava a vida dos reis de Portugal como também, ao fazer registro dos fatos em ordem cronológica, organizava elementos decisivos para a história de seu país. E, assim, o texto de Fernão Lopes transforma-se de pluralidade de retalhos – como o sonho de D. Pedro, em que seu filho João (futuro D. João I, o Mestre de Avis) apagava um incêndio com uma vara – em uma unidade bastante significativa, pois, na primeira crônica, temos indícios do que aconteceria na terceira. Em Fernão Lopes, a estratégia de se valer de “sinais providenciais (...) visa a demonstrar o assenso divino a uma nova concepção do poder e a fornecer-nos a probatio ex eventu necessária à sua consolidação definitiva no domínio da mentalidade coletiva” (Rebelo, 1983, p. 46). Desse modo, dados do passado corroboram o que acontece no futuro, com uma espécie de uso retrospectivo de profecia para que fatos da história de Portugal sejam justificados tal como futuramente aconteceria em alguns romances românticos.

A justiça, para Fernão Lopes, “é uma virtude” (1977, p. 41), “pois duvidar se o rei há-de ser justiçoso não é outra coisa senão duvidar se a regra há-de ser direita, a qual, se e direitura desfalece, nenhuma coisa direita se pode por ela fazer” (idem, p. 42). Em George Duby, encontramos a definição de Littré para o vocábulo “público”: “O que pertence a todo um povo, o que concerne a todo um povo, o que emana do povo” (2009, p. 17). Assim sendo, a autoridade e as instituições que sustentam o Estado são o ponto de equilíbrio, o que na Crônica de D. Pedro nos leva a pensar no rei justo como um rei público, visto que “o princípio que D. Pedro implementou na sua política de justiça distributiva (...), no serviço do bem comum, na paz e na abastança de todos, como o fundamental imperativo e a essencial justificação do poder real” (Gil & Macedo, 1998, p. 148), pois D. Pedro

corrigiu as medidas de pão de todo Portugal e ordenou outras cousas para bom paramento e proveito de sua terra, das quais não fazemos mais longo processo por não sabermos quanto prazeriam aos que as ouvissem (Lopes, 1977, p. 57).

Com seu reinado justo, no sentido da equidade, D. Pedro se posicionava diante dos crimes como se cada um fosse cometido contra ele próprio, logo, contra o reino, por ser um rei público, publicus – “que no latim das crônicas e das leis qualifica o que depende da soberania, do poder de regalia, o que é da alçada da magistratura encarregada de manter a paz e a justiça no povo” (Duby, 2009, p. 18). Por ser o Estado, na época de D. Pedro e na própria época de Fernão Lopes, responsável por estabelecer igualdade na justiça, Fernão Lopes, ao relatar a vida de D. Pedro, não só o descreve justo como também vê que a execução dessa justiça aproxima o rei do povo. Assim,

D. Pedro entendia cada crime individualmente cometido contra quem quer que fosse como um crime cometido contra si e toda a sua terra, tornando claro que o propósito do rei, ao complementarmente garantir a segurança econômica e a paz social dos seus súditos, era de facto a todos eles poder vir bem e a nenhum o contrário (Gil & Macedo, 1998, p. 148).

Por essa justiça equânime, algumas das “cousas que el-rei Dom Pedro ordenou por ordem de justiça e prol de seu povo” foram “degredo” e “açoutamento” dos que “deixavam suas mulheres e filhos que tinham e tomavam barregãs”, “meter um bispo a tormento porque dormia com uma mulher casada”, “queimar a mulher de Afonso André”, por exemplo. Além da severidade nos castigos, existia ainda o gosto de D. Pedro por participar das torturas e de açoitar ele próprio os acusados. O que pode ser entendido como gestos patológicos com requintes de crueldade, Fernão Lopes, por meio de estratégias discursivas romancistas, trata de fazer parecer como justiça equânime:

Este rei Dom Pedro, enquanto viveu, usou muito de justiça sem afeição, tendo tal igualdade em fazer direito que a nenhum perdoava os erros que fazia, por criação nem benquerença que com ele houvesse (Lopes, 1977, p. 58).

No prólogo, ao afirmar que “a justiça é muito necessária, assim no povo como no rei, porque sem ela nenhuma cidade nem reino pode estar em assossego” (1977, p. 42), o cronista medieval coloca na justiça a responsabilidade do sucesso do governo de um rei. Sendo o rei o responsável-mor pelo reino, fica a cargo dele a execução da justiça, literalmente em se tratando de D. Pedro, que açoitava e torturava os criminosos. Além de responsável por descrever os castigos executados pelo rei, atribuindo-lhes caráter justo, foi também Fernão Lopes o cronista que “tão vividamente simbolizou na cena prodigiosa em que o rei transformou a sua solitária noite de insônia numa grande dança coletiva pelas ruas de Lisboa” (Gil & Macedo, 1998, p. 149).

Fernão Lopes “se defrontava com interpretações que torceriam os fatos para melhor ajustá-los ao interesse da casa que serviam” (Lima, 1986, p. 32), e, com isso, os castigos de D. Pedro de Portugal, “o justiceiro”, são atos de justiça, enquanto os maus gestos de D. Pedro de Castela, “el cruel”, serviram para afundar o povo castelhano em uma guerra civil. Fernão Lopes usa estrategicamente a história de D. Pedro de Castela para ressaltar as qualidades justas do D. Pedro português, que seriam mais uma vez comparadas, desta vez às de seu sucessor, na Crônica de D. Fernando.

Fernão Lopes e o povo: os limites do discurso histórico

Nesta seção, a justiça ainda será um tema, pois para Fernão Lopes justiça é a virtude soberana, que se mostra no resultado equânime que o reinado de D. Pedro teve – “E diziam as gentes que tais dez anos nunca houvera em Portugal como estes que reinara Dom Pedro” (Lopes, 1977, 168). Como observamos no prólogo da Crônica de D. Pedro, a justiça é “necessária ao rei, se o é assim ao povo”, pois “é uma virtude que é chamada toda virtude” (idem, p. 41), o que nos permite afirmar mais uma vez que a igualdade entre rei e povo se dá nessa crônica: “Rei e povo eram parte do mesmo coletivo” (Gil & Macedo, 1998, p. 149). O rei, o mais importante vetor da unidade da nação e da ordem, é provavelmente o único que persiste, ainda que metamorforseado, até hoje, no imaginário nacionalista e patriótico. D. Pedro é caracterizado por Fernão Lopes como generoso, popular, amante da caça, impetuoso em seus atos e amigo de fazer justiça com suas próprias mãos; D. João I é ambicioso, vivo, estadista, prudente e político, possuindo o dom de dominar-se a si próprio e aos outros. Até mesmo D. Fernando possui características nobres, ainda que somente no primeiro momento (pré-D. Leonor Teles), como ser alegre, galanteador, afável, de magnífico pensamento, “grandioso de vontade”. Enfim, a construção da personalidade dos três reis por Fernão Lopes instituiu que os monarcas fossem vistos como símbolos e figuras de um poder que se sobrepunha a todos os outros. Um rei, por mais fraco que fosse, nunca se equipararia a qualquer senhor feudal, o que significa dizer que, por mais que fosse um rei de erros irreparáveis, cujas consequências explodiram imediatamente após sua morte, D. Fernando mereceu do cronista elogios não apenas à sua beleza física mas também ao seu talento para os desportos e à sua magnanimidade com os fidalgos.

Já o povo, a “arraya meuda”, é apresentado por Fernão Lopes como protagonista da história, o que consiste num dos mais flagrantes traços de originalidade e fama de Fernão Lopes. Para Aubrey Bell, “Entusiástico, ignorante, visionário, supersticioso, cruel, atroz nos seus momentâneos acessos de sanha, generoso no seu patriotismo, o povo é o verdadeiro protagonista da sua história” (1986, p.54). Na Crônica de D. Pedro, como vimos anteriormente, a justiça deveria existir como um ponto de equilíbrio determinado pelo justiceiro D. Pedro, o rei, em prol da equanimidade do povo. Rei era ativo e povo, portanto, passivo. Na Crônica de D. João I, o povo elege o seu rei, o Mestre de Avis, como se fosse o guardião, ou melhor, quem dava voz à vontade divina.

Uma obrigação, como cronista do rei, era elogiar D. João I, mas uma iniciativa foi dar importância à participação popular no rumo em que a situação evoluiu. É o povo de Lisboa que empurra o Mestre de Avis; é o povo das vilas que assegura a expansão do apoio à causa dos nacionalistas. Tratava-se de, antes de principiar a história do reinado, demonstrar a legitimidade de uma eleição régia que não foi determinada pelo direito de sangue, mas pela vontade da população (povo, burguesia e pequena parte da nobreza).

Como cronista/historiador, Fernão Lopes baseia-se nos fatos e documentos, mas, como bom contador de história que era, criticava dados históricos e fontes, aproximando-se da crítica histórica do século XIX, a cargo, por exemplo, de Oliveira Martins. Nas palavras de António José Saraiva, “o problema do rigor documental não deve confundir-se com o problema da objectividade do historiador” (1988, p. 169). A obsessão pela verdade e o baseamento em documentos, características da prosa de Fernão Lopes, “tem como contraponto, na poética medieval, a obediência à convenção” (Sussekind: 1984, p. 8). Os recém-referidos atributos da prosa de Fernão Lopes, principalmente a fixação por uma verdade, tornar-se-ia ainda mais forte, mais tarde, nos romances históricos.

Fernão Lopes interpreta a história por meio de sua experiência social, como afirma Teresa Amado:

Uma série de circunstâncias felizes fizeram com que Fernão Lopes não estivesse sujeito a tais limitações. Não era membro puro de nenhum grupo. De origem pequeno-burguesa, ao que tudo indica, ganhou pelas exigências da sua profissão e pelas suas próprias qualidades intelectuais, acesso ao convívio com pessoas e objectos que social e culturalmente estavam muito acima do horizonte que seu nascimento teria permitido antever. (1997, p. 25)

E, também, “se encontra numa atitude crítica perante a tradição” (Saraiva: 1988, p.200) ao ver nos fatos da história manifestações de todos os grupos sociais, inclusive o povo. A visão histórica de Fernão Lopes, pela atenção dada às classes populares, pela responsabilidade no “cataclismo social que seduz os historiadores modernos” (Idem, p. 201), é imensamente mais preciosa do que a de seu sucessor, Zurara, cuja aplicação era dada aos privilégios da fidalguia. É assim, com seu caráter revolucionário, que Fernão Lopes apresenta suas crônicas como meio de legitimação da dinastia de Avis, o que, muito provavelmente, foi a motivação de D. Duarte ao encomendá-las ao cronista do reino.

Fernão Lopes, apesar de suas intervenções pessoais e suas características revolucionárias há pouco listadas, tenciona contar a história dos reis de Portugal que originam a dinastia de Avis de forma fidedigna, ou o mais próximo possível da verdade. A linha geral cronológica, sucedendo, na narrativa, trechos que tratam de fatos de guerra, referências detalhadas aos tratados de paz, episódios da vida cortesã, como casamentos e conversas públicas e privadas, desse modo, é respeitada por Fernão Lopes.

O prólogo segundo da Crônica de D. João I começa com Fernão Lopes recapitulando sua narrativa anterior, ou seja, os episódios que conduziram o Mestre de Avis ao trono de Portugal. Esse evento marca o início de um novo reinado, logo, as histórias a serem ordenadas não são mais as de uma ‘revolução’, que levou um bastardo ao trono como conseqüência, porém, a crônica de um rei e seus feitos. Fernão Lopes entra agora num campo repleto de convenções e modelos que pressionam a escrita da história de um rei. Entretanto, o cronista “é também laborioso historiador, crítico e filósofo” (Bell: 1984, p.66), como já foi dito, e, por essas características, mantém o leitor tão poderosamente preso à narrativa.

O que se anuncia na Crônica de D. João I é um louvor às virtudes de um rei que já figura definido como bem-aventurado. Portanto, nem todos os acontecimentos serão relatados, apenas aqueles que podem dar ideia da grandeza do monarca. Os elogios aparecem recortados no corpo da crônica, primeiro através da preocupação de Fernão Lopes em anunciá-los, depois pelo fato de quebrarem a temporalidade narrativa tão observada pelo autor nos outros momentos do texto. Como a “primeira parte” não tratava de um rei, mas de uma “revolução”, Fernão Lopes sentiu-se mais livre em relação às convenções da crônica dinástica. Dentre essas, o cronista cita o hábito de discorrer, antes mesmo de principiar o “rrecomtamento” das “estorias” acerca das bondades do rei. A série de elogios é ampla e esgota todas as nuances do maravilhoso régio. Ou poderia Fernão Lopes apenas esboçar os bons feitos a fim de cumprir a obrigação formal? Assim que parece optar pela segunda alternativa, surge a dúvida:

Mas ueo-os aa memoria o dito de Fau(o)ryno fillosofo que nos pos tam gram medo que nom ousamos de o fazer; o qual diz que mais torpe cousa He pouco e leuemente louuar alguma pessoa que largamente della maldizer; porque o que pouco louuor diz dalguum, bem mostra que ha voontade de o louuar mas nom acha em el tays merecimentos per que o grandemente possa fazer, e o que largamente sse estende a muyto mal razoar doutrem, bem da a emtender a todos que odyo e malqueremça o fez demouer a esto (Lopes, 1997, p. 3).

O fragmento mostra a preocupação de Fernão Lopes com a recepção de um tipo de texto cujas regras e expectativas estavam definidas havia muito. Ser econômico no elogio, num gênero caracterizado pelo exagero, poderia dar sinais equívocos ao leitor. Fernão Lopes demonstra não estar completamente convencido da validade desse tipo de elogio fora da ordem da história, mas não consegue determinar-se por seu abandono ou pela sua realização plena:

rrepreeemder, com gram receo, trigosamente, nom embargando a rezam alleguada, alguuns poucos como costumamos poer dos outros reys tocaremos em breue (idem, p. 20).

Fernão Lopes, ao escrever crônicas embasadas na história, torna esse saber uma ciência auxiliar ao exercício da soberania monárquica, o que o faz ser louvado como um marco inaugural da historiografia e da prosa literária portuguesa. Assim, nas crônicas desse grande cronista, uma narrativa cujo sentido se faz fora dela própria e uma identidade autoral que se define como subjetividade são bem-sucedidas, saem como vitoriosas. Novamente, e para finalizar, palavras de Bell, para quem de certo modo o cronista medieval se assemelha a Homero:

Fernão Lopes procura os fatos mais essenciais e faz reviver a história, mas, embora constantemente fascine o leitor, não faz omissões conscientes de factos que devam ser conhecidos. É um feiticeiro que obriga o leitor a aceitar todas estas interpolações entre aspas e a deleitar-se e consentir nos seus conhecimentos graciosamente expressos. Muitas vezes é tão rápido como Homero, ainda que nunca apressado, e mesmo quando emprega os seus dons de imaginação ou o seu conhecimento crítico dá-nos a impressão de ingenuidade (1984, p. 66-67).

 

Referências bibliográficas

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BELL, Aubrey F. G. Fernão Lopes. Trad. António Álvaro Dória. 3ª ed.Lisboa: José Ribeiro, 1986.

CAMÕES, Luis de. Os Lusíadas. 9ª ed. São Paulo: Cultrix, 1993.

DUBY, George. História da vida privada 1: do Império Romano ao ano mil. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

LIMA, Luiz Costa. A crônica medieval e a originalidade de Fernão Lopes. In: LIMA, Luiz Costa. Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

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LOPES, Fernão. Cronica del rei Dom Joham I – de boa memoria e dos reis de Portugal o décimo. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1977, v. I.

GIL, Fernando; MACEDO, Helder. Fernão Lopes, a Sétima idade e os princípios de Avis. In: GIL, Fernando; MACEDO, Helder. Viagens do olhar: retrospecção, visão e profecia no Renascimento português. Porto: Campo das Letras, 1998.

REBELO, Luis de Sousa. A concepção de poder em Fernão Lopes. Lisboa: Livros Horizonte, 1983.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François [et al.]. Campinas: Editora da Unicamp, 2007.

SÁ, Jorge de. A crônica. São Paulo: Ática, 1985.

SARAIVA, António José; LOPES, Óscar. História da literatura portuguesa. 17ª ed. Porto: Porto, 1996.

SARAIVA, António José. O crepúsculo da Idade Média. Lisboa: Gradiva, 1988.  

SUSSEKIND, Flora. Fernão Lopes: literatura, mas com certidão de verdade. Revista Colóquio Letras. Ensaio, n° 81, set. 1984, p. 5-15.

Publicado em 16 de março de 2010

Publicado em 16 de março de 2010

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