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Um abraço no vazio – entrevista com João Gilberto Noll
Alexandre Amorim
A entrevista com João Gilberto Noll foi feita por telefone, na manhã quente de um domingo de janeiro. O escritor mora em Porto Alegre e está escrevendo um novo livro, mas mesmo assim teve tempo para falar da experiência de escrever e viver a perplexidade de estar em um mundo constantemente a ser preenchido.
Desde seus primeiros livros, os personagens de Noll tomam o leitor pela mão sem nem antes se apresentar – sem nem dizer seu nome! – e conseguem nos seduzir, nos levar em suas viagens sem rumo definido, muitas vezes andando em círculos. Porque esse personagem não promete nada; cria-se o pacto de não esperar dele respostas. Ao contrário, aprende-se a compreender o inevitável desfecho das obras de Noll: o leitor deixado sozinho, tentando dar conta daquelas viagens inconclusas.
A identidade abandonada pelo narrador serve para que se possa explorar sua fragmentação através de seu constante deslocamento. A partir de Deleuze, fica claro que o simulacro do narrador nas obras de Noll tem o “díspar como unidade de medida”, isto é, ele pode sugerir sua identidade original, mas não mais a representa. Todo o caminho percorrido, toda ação tomada e toda ação sofrida por cada um de seus narradores não é mais do que a tentativa de recriar-se. A presença do narrador não é nostálgica em relação à perda de sua identidade, mas recriadora de si mesmo durante todo o tempo. O deslocamento constante desse narrador não toma a direção de um resgate de sua origem, mas de uma constante experimentação de si mesmo, criando inúmeros simulacros e encenando constantemente sua vida. A identidade foi esquecida, e os eternos confrontos com o mundo só vão confundi-lo ainda mais consigo mesmo. Como diz o próprio Noll nesta entrevista, “é um personagem que habita em mim, mas não sou eu”.
Obras abertas que relatam o perambular de um personagem de quem jamais saberemos a identidade. Talvez a maior crítica a esse tipo de literatura seja a de que ela não se abre para a experiência da vida, mas, ao contrário, se fecha em um mundo pequeno, como uma criança que não experimenta as brincadeiras de rua e se fecha em seu quarto, vivendo apenas os limites daquela reclusão. Um jogo solitário, em que não acontece nem a apresentação do único participante à sua plateia, que é o leitor. Um jogo em que o participante, que está sozinho, pode mudar as regras quando bem entender. Mas como concordar com essa crítica que tenta esvaziar o valor literário dessa narrativa, se nessa literatura o narrador faz, sim, suas regras, mas mesmo assim prende a atenção do leitor até a última página e, além dessa última página, faz refletir sobre esse jogo que acaba sem chegar a um final definitivo? O texto, então, cumpre duas funções fundamentais: entreter e causar reflexão.
Se existem em sua obra uma abertura de significados e uma fragmentação da narrativa através do livre-andar de seus protagonistas, é tentador para a crítica literária tentar rotular o escritor de pós-moderno. Mesmo assumindo o interesse pelo trabalho acadêmico sobre sua obra, ele se faz reticente: “a aproximação com o pós-modernismo está se distendendo, hoje. Tem menos força. Sou pós-moderno no titubeio da ação, sofro de dispersão profunda e isso se coaduna com o pós-moderno. Tenho uma descrença no fato de a narrativa ser incólume em si. Ela sofre de ataques e dispersões”, Noll analisa, ao mesmo tempo que mostra por que se afasta desse rótulo acadêmico: “o anseio amoroso que mostro hoje, por exemplo, não está no pós-moderno”.
Como são histórias que causam certo desconforto em quem as lê, porque são narrativas de personagens em eterna movimentação por um mundo em que não se ajustam, coube justamente a dúvida sobre ser ou não confortável escrever. Noll responde que “sim, escrever é fisicamente confortável. Um dos momentos mais interessantes é a escrita, é descobrir o que se precisa dizer durante o ato da escrita. E, é claro, descobrir ferida aberta”. A ideia, portanto, vem durante a escrita, junto com ela. Ele concorda: o ato de escrever é que faz a história continuar. “Esse ato é a trip, o instante que, sobre mim é muito forte. Sou um escritor do inconsciente”.
Ele segue explicando seu modus operandi: “A história vai se redefinindo à medida que se escreve. Tenho uma história muito vaga antes de pôr a mão no teclado. O desenrolar da escrita vai firmando coisas na história”. Não há, portanto, uma história estruturada antes que as mãos do autor cheguem ao teclado. A palavra é que dita a própria história. Mas Noll faz questão de desfazer qualquer impressão mística desse ato. Não é uma experiência esotérica, mas perfeitamente humana – ainda que metafísica: “gosto de ter o vazio para começar. É importante esse abraço no vazio. Esse nada que você não sabe preencher, mas vai ter que preencher – essa pobreza infinita. Existe o açodamento, o sentimento de urgência disso”.
O autor parece estar sempre experimentando a urgência em seus textos. Ainda que as ações sejam poucas e muitas vezes lentas, urge preencher o vazio da existência. Ele responde, observando sua obra como um todo: “os impasses que meus personagens sofriam estavam mais ligados ao existencialismo. Hoje, eles não sofrem mais tanto assim”. Mas a indefinição e o vazio podem ainda ser notados em seus personagens. “A indefinição da identidade continua em minhas obras, porque é um mesmo personagem sobre o qual escrevo. A mesma matriz de personagem. A alma dele está presente em todos os livros. É um personagem que habita em mim, mas não sou eu. Não tem dados bibliográficos significativos meus”, ele argumenta.
Esse protagonista que perambula por entre as obras de Noll é entregue não à própria sorte, mas ao acaso das palavras. A palavra, ferramenta fundamental da escrita, se faz fundamental também para a narrativa porque é através dela que o autor busca suas histórias. “A escrita é decisiva para mim como preparação do inconsciente. É na palavra que eu chego às coisas, e não com ideias pré-fabricadas”. Nenhuma história de Noll tem início definitivo, porque não é uma história definida. “O início da narrativa é a última coisa que escrevo, já na fase de finalização. O início escrito antes serve apenas de aquecimento”. Justamente porque a palavra vem com a força da mudança e com a imposição de ser ouvida, a história se modifica à medida que o inconsciente se verbaliza. É como uma sessão psicanalítica, ele explica: “o que se pensa antes da sessão de psicanálise não interessa, mas sim o que é dito durante a penumbra da sessão psicanalítica. É importante o instantaneísmo da escrita”.
No jogo solitário dos romances de Noll é possível descobrir um novo jogador, que se disfarça em plateia: o leitor se habilita a participar da obra de Noll através do narrador, porque ambos vão se reconhecer em suas experiências: a perplexidade perante a vida. A perplexidade do narrador é explícita, demonstrada na incapacidade de se adaptar às situações e no eterno deslocar-se. É raro encontrar o protagonista de Noll em repouso, e quando o encontramos, é uma situação antes de guardar-se do mundo do que propriamente de relaxamento: “Aqui, ninguém me vê”, relata o narrador de Harmada, de 1993, protegido de tudo e de todos numa floresta. Mas logo que alguém o encontra ele reinicia sua jornada. Esse perambular constante é um sintoma de sua inadaptação, mas o que faz desse narrador um eterno desajustado? A colisão entre desejo e devir parece ser a causa desse desajuste. Como disse o próprio autor, a “pane da utopia” do seu desejo em relação ao que o mundo lhe apresenta determina uma perplexidade tamanha nesse personagem que seu ajuste com o que o rodeia jamais será recuperado.
Seja em contos ou em romances, a linguagem que Noll escolhe é a poética. “A palavra poética tem mais autonomia do que na prosa, a prosa tem que dar mais conta da história. E eu vou para a prosa com a tendência poética”. O ajuste entre a linguagem “mais autônoma” e o protagonista que perambula, também autônomo, é mais do que um acaso. A voz do personagem precisa ser poética, porque precisa buscar sua evocação, buscar de onde vêm suas palavras. “Meus livros são livros de voz. Interessa a percepção do protagonista do mundo. Meus livros são metafísicos, apesar de completamente ateus”. A metafísica de Noll, que fique bem entendido, não é religiosa. Não propõe se voltar a um criador ou a uma origem, mas procurar o sentido do inconsciente, a significação da perplexidade perante o mundo. “Essa metafísica é a religião que não tenho. É a pergunta sobre o que estamos fazendo nessa miséria e nesse encanto. É uma revolta brutal contra a morte, contra o apagamento”.
Por isso a voz do narrador é poética, e por isso a voz de Noll é também poética quando narra suas histórias em público. É uma leitura monocórdia, estranha à primeira audição. Mas ele descobriu nessa narração em voz alta um outro modo de expressar seu texto, além da escrita em si. “É uma maneira demencial de ler, e eu gosto, porque aponta para o que não estamos acostumados a ver, a ouvir. Ouvir coisas estranhas. Essa maneira de narrar é decisiva, tenta mostrar uma infraestrutura humana, fraca, combalida. A palavra em voz alta tem sido tão importante quanto a escrita”.
Essa outra maneira de lidar com o texto vem acompanhada de uma nova percepção do que sua própria obra pode representar. “Hoje, o trabalho artesanal com o texto é cada vez maior, cada vez mais exaustivo. É uma questão de maturidade. O outro não tem nada a ver com tua confusão, você tem que burilar e deixar clara tua intenção ao leitor”. Sua preocupação com o leitor pode parecer contrária à narrativa sinuosa de seus textos, mas se encaixa em sua proposta de mostrar que o mistério do sinuoso e a busca contínua por um sentido não são elementos esotéricos, mas fazem parte da vida de qualquer ser humano. “Sou um sujeito de histórico político forte, não sou abstrato. A erótica presente é uma mostra disso. É o empirismo mais deslavado”, ele afirma. O erotismo é mesmo uma ponte que desfaz qualquer tentativa de entender os livros de Noll como obscuros ou distantes do real. A sensualidade está sempre presente e pode servir de âncora aos anseios do protagonista. É a qualidade palpável de ser humano, além das qualidades humanas ainda em construção, ainda em busca de sentido.
Experimentar a escrita, afirmar o erótico, buscar eternamente. São atos cotidianos que foram deixados de lado pelo senso comum. João Gilberto Noll retoma esses atos como fundamentais e presentes em nossas vidas, mesmo que reprimidos e escondidos, deixados para o inconsciente. Seu texto, através da palavra, abre as portas do que foi reprimido. Tenta “abraçar o vazio” e mostra que a identidade claudicante do personagem não é sinônimo de um mundo fechado em si, mas de uma busca por um mundo aberto – o mundo de eternamente se descobrir.
Publicado em 16 de março de 2010
Publicado em 16 de março de 2010
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