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Bate-papo sobre literatura, ensino e divulgação cultural
Juliana Maria Carvalho
Professora especialista em Língua Portuguesa
No final de outubro, a professora doutora Muna Omram esteve na UFF para ministrar o minicurso Literatura, Ensino e Divulgação Cultural, oferecido pelo Programa de Iniciação à Docência do Instituto de Letras.
A quantidade de temas abordados foi bem ampla, começando no cânone e na história da alfabetização e da literatura brasileiras, passando por suportes físicos para o livro, tecnologia, mídia e culminando no mercado editorial. Foram momentos de rico aprendizado.
Uma questão que volta e meia vem à tona e que certamente você, como professor, já deve ter ouvido é a preocupação com o fim do livro impresso. Mas, afinal, o livro impresso pode acabar? Corremos o risco de tê-lo substituído por ipads, kindles, netbooks e outros suportes digitais para leitura? Para a professora Muna, estamos vivendo algo semelhante à entrada das fitas VHS no mercado. “Quando as fitas VHS surgiram, muito se especulou sobre o fim das salas de cinema. Vieram os DVDs, blu-rays e continuamos vendo salas de cinema serem abertas no país. Transformações aconteceram; afinal, elas migraram das ruas para os shoppings, ganharam sistema de som THX, projeções em 3D, mas continuam existindo e se multiplicando”.
Ainda segundo ela, os livros impressos coexistirão com outras tecnologias, que costumam agradar às gerações mais jovens: “há mais de dois anos, com o lançamento do kindle, as vendas de livros digitais aumentaram 700%. Só na primeira semana de vendas do ipad, foram baixados 600.000 livros! Apesar disso, não houve queda na venda de livros impressos. O mercado mantém-se estável desde 2004, apesar da crise econômica de 2009. E ainda há muito espaço para crescer”.
Outro importante assunto abordado foi o cânone atual. De acordo com a professora, os profissionais de letras devem estar atentos à banalização dos textos, porém tendemos a rejeitar demais o novo e “endeusar” o cânone: “O que é bom? O que vende ou o que não vende? Podemos utilizar Paulo Coelho e a saga Crepúsculo na sala de aula? Sou a favor de utilizar textos atuais que despertem a curiosidade para a leitura, mas dentro de um plano estratégico. O professor deve começar dos textos mais simples para os mais complexos, agregando livros atuais e ‘queridinhos das crianças e adolescentes’ aos livros canônicos. Basta saber e planejar bem as competências que pretende desenvolver com cada tipo de leitura”.
O estímulo à leitura na era da imagem e o uso de redes sociais para desenvolver habilidades de escrita também foram temas abordados: “As crianças e adolescentes têm grandes dificuldades para se comunicar nas redes sociais, escrever e-mails e pesquisar no Google, mas eu diria que a maior delas é a organização das ideias. O hábito da leitura ajudaria muito, mas a caminhada é longa”.
Do século XIX até aqui, muita coisa mudou, mas vem desse tempo o nosso pouco gosto pela leitura. Até a vinda da corte portuguesa para o Brasil, as crianças aprendiam a ler nas fazendas ou nas igrejas e não havia livros para a alfabetização. Os escravos não eram letrados, salvo poucos que recebiam instrução para ensinar os filhos dos senhores. As meninas aprendiam apenas o suficiente para as atividades domésticas. Nesse ponto, ficávamos muito atrás dos países europeus. A maioria das mulheres europeias lia muito mais, pois tinham muitos empregados e não se preocupavam com as tarefas da casa. Elas tinham com a literatura uma relação de lazer e consumo, pois os livros ditavam moda. Consumir livros era sinônimo de status, e a popularização da literatura aumentou o interesse pela ampliação da educação.
Aqui, a base do ensino e a prática da leitura eram feitas em relatos dos viajantes, biografias, romances ou em textos manuscritos. Até 1808, não produzíamos livros no Brasil. Antes desse período, chegamos a ter imprensa, mas ela foi desfeita depois da Inconfidência Mineira, o que fez com que os textos escritos no Brasil fossem mandados para Portugal para serem impressos. Isso explica a escassez de livros no país até esse período. Os hábitos da corte portuguesa incentivaram a criação da Imprensa Régia e da Biblioteca Nacional; desde então, passamos a produzir nossos próprios livros.
Depois do Império constituído, era comum o uso da Constituição de 1827 e do Código Criminal na alfabetização. Em 1868, Abílio César Borges, o Barão de Macaúbas, médico e educador, lançou uma série de livros para a alfabetização em três volumes: Primeiro, Segundo e Terceiro Livro de Leituras, os primeiros dedicados ao aprendizado da leitura e da escrita e voltados especialmente às crianças.
Em seu livro de memórias, Infância, Graciliano Ramos critica o primeiro, o segundo e o terceiro livro. Considera todos tediosos, pesados, inadequados:
Um grosso volume escuro, cartonagem severa. Nas folhas delgadas, incontáveis, as letras fervilhavam, miúdas, e as ilustrações avultavam num papel brilhante como rasto de lesma ou catarro seco. Principiei a leitura de má vontade (...) - Passarinho, queres tu brincar comigo? Forma de pergunta esquisita, pensei (...). Os meus infelizes miolos ferviam (...). Achava-me obtuso.
Contudo, cheguei ao final dele. Acordei bambo, certo de que nunca me desembaraçaria dos principais escritos (Ramos, 1993, p. 117-119).
Muitos, porém, reconhecem até hoje a iniciativa do Barão. O autor distribuiu gratuitamente seus livros numa época em que seu custo era consideravelmente alto. Essa distribuição possibilitou que suas obras chegassem às mãos de crianças de várias regiões, como as da poetisa goiana Cora Coralina, que lamenta, em seu poema Vintém perdido:
Quanto daria por um daqueles velhos bancos onde me sentava, a cartilha de ‘ABC’ nas minhas mãos de cinco anos, quanto daria por um daqueles velhos livros de Abílio César Borges, Barão de Macaúbas e aquelas máximas do Marquês de Maricá, aquela enfadonha tabuada de Trajano custosa demais para meu entendimento de menina mal amada e mal alimentada. Meus vinténs perdidos, tão vivos na memória (Coralina, 1985, p. 32).
No final do século XIX e início do século XX, uma das metas do governo republicano era a expansão gradativa do ensino. A nacionalização do livro escolar tornou-se ainda mais intensa, embora em muitas escolas ainda imperasse o uso dos manuais europeus, como constatou um dos grandes intelectuais brasileiros da época, José Veríssimo, no seu estudo clássico A Educação Nacional, publicado em 1906. João Ribeiro, Antônio Trajano, Joaquim Maria de Lacerda e Raphael Galanti foram autores continuamente reeditados, formando várias gerações de brasileiros. Nesse momento, assim como já vinha ocorrendo desde o século XIX, a mulher, que aos poucos ampliava sua inserção no espaço público, constituía uma importante e crescente parcela do público leitor brasileiro. O Livro das donas e donzelas, publicado em 1906 por Júlia Lopes de Almeida, autora de várias obras dirigidas à mulher, foi uma das expressões desse fenômeno.
No Natal de 1920, Monteiro Lobato inovou, lançando no mercado de livros didáticos brasileiros algo totalmente diferente: Narizinho arrebitado, “segundo livro de leitura para uso das escolas primárias”. Por ser dono da própria editora, o autor não se preocupava em seguir nenhuma receita ideológica e tinha liberdade para criar e publicar suas criações.
O imediato sucesso da obra levou o autor a prolongar as aventuras de seus personagens em muitos outros livros, agora não mais didáticos, girando todos ao redor do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Posteriormente, vários desses livros foram reunidos em um volume: As reinações de Narizinho. As histórias de Monteiro Lobato deram outro rumo à educação infantil:
A família de Narizinho tem um ramo europeu e outro africano, como a maioria das crianças reais brasileiras. A boneca Emília nasceu de uma mistura de vários objetos: macela, pano de saia velha, retrós. Como a literatura infantil de Lobato, que costura juntos crianças e bichos mágicos, políticos e sabugos falantes, o Brasil e o mundo (Cilza Bignotto: Duas visões da infância segundo Monteiro Lobato apud Lendo e escrevendo Lobato. Belo Horizonte: Autêntica, 1999, p. 11).
Se hoje em dia princesas, vampiros e outros personagens fictícios habitam o imaginário infantil e juvenil, isso se deve ainda à emergência da ideia de lazer difundida há séculos pela burguesia: “É difícil para crianças e jovens lerem algo que não lhes dê prazer. Os livros paradidáticos escolhidos pela escola, os canônicos, não representam a ideia de lazer que associamos à literatura até hoje. Por isso sou a favor de uma seleção de textos que mescle tendências atuais com as canônicas. Podem ser usadas releituras de textos clássicos, adaptações ou mesmo alguns best-sellers infantis, como os da série Harry Potter”.
Para saber mais sobre o trabalho da professora Muna Omram, visite o site da revista Litteris.
Publicado em 4 de janeiro de 2011
Publicado em 04 de janeiro de 2011
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