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Biodetergentes para limpeza de petróleo
Natascha Krepsky
Doutoranda
Frederico da Silva Sobrinho
Doutorando
Mirian Araújo C. Crapez
Do Programa de Pós-graduação em Biologia Marinha da Universidade Federal Fluminense
O petróleo é uma importante fonte de energia e matéria-prima. Grande parte da produção brasileira vem de poços situados no mar. Para o óleo atingir o ambiente, bastam pequenas falhas na exploração, no transporte ou no processamento. Após um derrame, a melhor estratégia de recuperação é a que causa o menor impacto e facilita o restabelecimento do ecossistema. Isso pode ser obtido com a ajuda de algumas bactérias que, quando estimuladas, produzem substâncias detergentes, acelerando a regeneração ambiental.
O primeiro derrame de petróleo no ambiente amplamente divulgado no Brasil aconteceu em 1975 na baía de Guanabara (RJ) e envolveu o cargueiro iraquiano Tarik Ibn Ziyad. Cerca de seis toneladas de óleo vazaram no canal central de navegação da baía, atingindo praias nas cidades do Rio de Janeiro e Niterói, dentro e fora da baía. Nesse acidente, o óleo provocou incêndios nos manguezais ao redor da baía e afetou várias comunidades animais (ver ‘Biorremediação’, em CH nº 179). Outros importantes acidentes ocorreram ao longo da costa do Brasil nos últimos anos, afetando inúmeros ecossistemas, principalmente manguezais (ver ‘Derrames no Brasil’).
Figura 1. As principais refinarias do Brasil, indicadas pelos pontos vermelhos, estão situadas próximas a manguezais (áreas em amarelo no mapa, ao longo da costa)
A capacidade de recuperação dos ambientes marinhos depende de fatores como a concentração e composição do óleo, a forma como chegou ao ambiente, a forma em que está (em solução, suspensão ou ligado a matéria orgânica), o tempo de exposição ao óleo, o número de níveis nutricionais afetados, a existência de organismos juvenis e adultos no local, o histórico da exposição dos organismos ao óleo, o estresse ambiental (como presença de esgoto, variações de temperatura e salinidade e outros fatores), o tipo de hábitat afetado e os meios usados para a retirada do óleo (sistemas de tratamento de efluentes e de descarte e/ou operações de limpeza).
No Brasil, grande parte das refinarias de petróleo situa-se perto de saídas de rios e baías abrigadas – locais com baixa hidrodinâmica, onde se formam mangues, alagados e enseadas (figura 1). O sedimento nesses ambientes, muito fino e rico em matéria orgânica, é facilmente contaminado por hidrocarbonetos e outras substâncias do petróleo, muitas delas tóxicas. Tais substâncias podem ser liberadas lentamente por anos, o que pode desestabilizar a comunidade de organismos do fundo marinho, reduzindo o oxigênio disponível, a degradação de poluentes realizada por bactérias e retardando a própria recuperação ambiental.
Na última década, ocorreram no Brasil em torno de 30 acidentes mais sérios com vazamento de petróleo ou derivados. Os piores foram:
- MAIO DE 1994 – Rompimento de duto e vazamento de 2,7 milhões de litros de petróleo em São Sebastião (SP), poluindo 18 praias.
- MARÇO DE 1997 – Rompimento de duto da refinaria Duque de Caxias (RJ) e vazamento de 2,8 milhões de litros de petróleo, atingindo 4 mil m2 de mangues da baía da Guanabara.
- JANEIRO DE 2000 – Rompimento de duto da refina
O petróleo nos organismos
Os organismos marinhos acumulam em seus tecidos poluentes como metais, pesticidas e hidrocarbonetos do petróleo, dependendo de sua disponibilidade e da concentração na água do mar. A acumulação é crescente na cadeia alimentar, sendo máxima nos animais do topo dessa cadeia – processo denominado biomagnificação. A incorporação do poluente pode ocorrer durante a alimentação com partículas ou água contaminada. Peixes e invertebrados tendem a acumular óleo nos tecidos ricos em lipídeos, como fígado e gônadas, e a concentração pode ser elevada, o que pode ser perigoso para o homem se esses organismos forem usados como alimento.
Organismos que vivem no fundo do mar, como mexilhões e outros invertebrados, têm grande potencial para acumular os hidrocarbonetos de petróleo que se depositam no sedimento. Após um derrame de óleo, organismos oportunistas (como poliquetos e bactérias degradadoras de petróleo), capazes de usar esses compostos como fonte de carbono e com rápida taxa de geração, têm suas populações aumentadas em relação a outras espécies. Todos os organismos vivos são suscetíveis aos efeitos dos hidrocarbonetos de petróleo, que podem atacar células e outras estruturas (figura 2). Derrames de petróleo podem destruir totalmente as comunidades marinhas da região afetada. Com isso, sofrem sérios riscos em atividades como a pesca, muito importante em regiões costeiras. Durante um período que pode durar anos, após um derrame, o ambiente será repovoado por espécies oportunistas ou não. Como esse processo é muito lento, espécies nativas ou endêmicas podem desaparecer.
Bactérias devoradoras de petróleo
Alguns microrganismos, como bactérias e fungos, podem utilizar hidrocarbonetos como fonte de carbono e energia, eliminando com o tempo esses poluentes. Em áreas sujeitas a poluição crônica por óleo e em águas costeiras e estuarinas existem muitas bactérias (livres na água ou aderidas ao sedimento e a outras estruturas) que resistem às altas concentrações de hidrocarbonetos ou são capazes de biodegradá-los. Esses microrganismos apresentam alterações, como mudanças nas proteínas da membrana celular, que permitem a remoção dos hidrocarbonetos da membrana, evitando danos à célula. Assim, se especializaram na degradação de hidrocarbonetos.
O estudo desses organismos tornou possível propor uma nova ferramenta para a recuperação de ambientes contaminados: a biorremediação. Essa tecnologia propõe o uso intencional dos processos bioquímicos bacterianos para degradar contaminantes ambientais ou atenuar seus efeitos. A biodegradação depende da temperatura e da salinidade, da taxa de oxigênio dissolvido, da disponibilidade de nutrientes, do tipo de óleo e do ambiente afetado. Tais óleos são uma rica fonte de matéria orgânica e seus hidrocarbonetos podem ser consumidos e transformados por uma variedade de microrganismos. Essa transformação é importante na natureza e pode ser utilizada em tratamento de água, na produção de gás natural e na biorremediação.
Figura 2. Efeitos da contaminação por hidrocarbonetos de petróleo em indivíduos de diferentes organismos: vegetais (V), invertebrados (I), peixes (P), anfíbios e répteis (A/R), aves (Av.) e mamíferos (M). Vegetais têm sua taxa de fotossíntese alterada e vegetais, peixes e aves também sofrem mudanças populacionais e alterações na estrutura da sociedade
Obs.: Adaptado de Crapez, ‘Efeito dos hidrocarbonetos de petróleo na biota marinha’, in Efeitos dos poluentes nos organismos, 2001
A vida em sociedade
Bactérias são organismos muito pequenos, menores que 1 micrômetro (1µ), ou seja, um bilionésimo do metro. Para contornar as dificuldades desse tamanho mínimo, as bactérias são capazes de aderir a superfícies inertes ou biológicas, sintetizando uma matriz composta de proteínas, carboidratos e/ou lipídeos. A partir dessa estrutura, o biofilme, outras bactérias e microrganismos passam a constituir uma comunidade, que exibe taxas metabólicas, crescimento e atividade genética peculiares (figura 3).
Figura 3. Consórcios de bactérias (as formas arredondadas) podem se agrupar em biofilmes – como mostra a imagem em microscopia eletrônica de varredura (aumento de 10 mil vezes). Na imagem, os resíduos de uma estrutura em forma de rede (pouco preservada na preparação das amostras para microscopia) são da substância que envolve e protege as bactérias no biofilme
No ambiente marinho, os biofilmes bacterianos aderem às superfícies e/ou a outros organismos, colonizando, por exemplo, sedimentos depositados e superfícies de partículas minerais e orgânicas. Do ponto de vista ecológico, essa colonização é vantajosa, pois direciona, através de sinalização química, microrganismos para locais específicos. Assim, a adesão de uma primeira espécie pode atrair e facilitar a chegada de outras, estimulando relações simbióticas tão comuns na natureza. Os produtos do metabolismo de um organismo podem servir para o crescimento de outros, tornando o poder de degradação do agregado maior que o de cada organismo isolado.
No ambiente é comum a formação de populações heterogêneas de bactérias com metabolismos variados – o chamado consórcio bacteriano. Alguns organismos do consórcio podem formar biofilme, o que dá às bactérias fácil acesso às enzimas responsáveis pela decomposição de substratos (dissolvidos e particulados) e também de compostos que poderão ser usados para respiração alternativa, se faltar oxigênio. Essa estratégia garante a sobrevivência dos organismos dos consórcios em condições extremas como elevada acidez ou alcalinidade, aumento de temperatura, presença de radicais livres, poluição por hidrocarbonetos e outras.
Para as bactérias que degradam substâncias como o petróleo, é fundamental a ação de enzimas capazes de quebrar moléculas grandes, gerando partes menores que poderão entrar nas células através de suas membranas. No entanto, para serem degradadas pelas bactérias, tanto as substâncias com afinidade por óleo (hidrofóbicas) quanto aquelas com afinidade por água (hidrofílicas) devem ser misturadas em água. E as próprias bactérias encontraram um modo de fazer isso.
Os biodetergentes
Microrganismos como bactérias e fungos produzem, quando estimulados, certas substâncias que agem como detergentes naturais. Entre esses organismos estão bactérias dos gêneros Candida, Pseudomonas, Bacillus e outros. Os biodetergentes promovem a mistura (emulsão) de compostos como água e óleo, o que normalmente não acontece devido à alta tensão de superfície da água. Esses produtos biológicos são conhecidos como biossurfactantes (o termo surfactante foi criado a partir de partes da expressão inglesa surface active agents – agentes ativos na superfície.
A produção desses biodetergentes pelas bactérias degradadoras de petróleo é fundamental para o crescimento de sua população em locais atingidos por derrames e facilita a biorremediação de hidrocarbonetos não solúveis em água. A molécula do biodetergente tem duas partes, uma com afinidade por água e a outra por óleo (figura 4), e a superfície da bactéria se altera com a produção dessa substância, facilitando a aderência ao hidrocarboneto sem danificar a membrana. Além disso, o biodetergente estabiliza a gota de óleo emulsificada, aumentando a área da bactéria exposta a este. Uma vez aderidas ao óleo através do biodetergente, as bactérias podem formar emulsões muito pequenas na membrana externa ou consumir o poluente.
Figura 4. Atuação de biodetergente na interface de uma solução contendo óleo e água: a parte hidrofóbica da molécula (aminoácidos, por exemplo) interage com o óleo, enquanto a parte hidrofílica (polissacarídeos, por exemplo) interage com a água, o que permite a emulsão das duas fases, até então incapazes de se misturar
Em laboratório é possível selecionar e estimular a produção de biodetergentes por consórcios bacterianos obtidos em ambientes atingidos por petróleo ou outros poluentes (figura 5). Em 2002, o Laboratório de Microbiologia Marinha da Universidade Federal Fluminense, com apoio financeiro da Agência Nacional do Petróleo, iniciou o estudo de processos para estimular essa produção, e todos os consórcios isolados em sedimento de mangue atingido por óleo apresentaram produção de biossurfactantes.
Figura 5. Placa de Petri contendo meio de cultura que permite a seleção de colônias de bactérias produtoras de biodetergentes (A). Essa mesma colônia, quando observada com aumento de mil vezes em microscópio de epifluorescência (B), apresenta vários tipos (cocos e bastonetes), caracterizando um consórcio bacteriano
Um biodetergente é considerado eficiente na promoção da mistura ‘óleo-água’ quando reduz a tensão de superfície da água a um nível que permita a emulsão do óleo em temperatura ambiente. A concentração de sal no meio de cultura, a quantidade de nutrientes disponível e o local de coleta dos microrganismos foram fatores fundamentais para o sucesso dos experimentos.
Verificou-se que a capacidade de emulsificar derivados de petróleos independe da idade dos consórcios. Além disso, um mesmo detergente foi capaz de emulsificar de diferentes formas compostos com diferentes densidades. Por exemplo, a gasolina e o querosene apresentaram ‘emulsões água-no-óleo’, enquanto o petróleo ‘árabe leve’ apresentou emulsificação ‘óleo-na-água’ (figura 6).
Figura 6. A eficiência do biodetergente foi verificada adicionando petróleo do tipo árabe leve em água do mar sem e com o biodetergente. Na presença do biodetergente houve a total emulsificação do petróleo na água do mar, mesmo após 24 horas de experimento
Os estudos mostraram ser possível isolar consórcios bacterianos produtores de biodetergentes capazes de misturar óleo e água de diferentes formas. A diversidade de ação é importante, pois permite o uso desses detergentes em locais onde o tipo de óleo poluente é desconhecido, e em acidentes que envolvam tanto a água (coluna d’água e lençóis freáticos) quanto o sedimento.
Muitas aplicações
Além do emprego para recuperação ambiental já citado, os biodetergentes são usados ainda na retirada de metais pesados do ambiente, na perfuração e exploração de poços de petróleo, na manipulação e transporte de combustíveis e em variadas indústrias (alimentos, medicamentos, cosméticos, materiais de construção e outras) para formar e estabilizar emulsões e como detergentes, dispersantes, umectantes, espumantes e antiespumantes.
O uso de biodetergentes na recuperação de desastres ambientais já foi adotado em várias ocasiões e é uma tendência mundial. No Brasil, é um recurso fundamental para a remediação de ambientes delicados como as baías da Guanabara e de Paranaguá. A maior dificuldade para isso é o alto custo da produção em grande escala desses detergentes. Tendo isso em mente, nosso grupo de pesquisa buscou adaptar a metodologia de isolamento e seleção de bactérias produtoras de surfactante à realidade dos laboratórios brasileiros, usando recursos baratos e acessíveis (água do mar, carboidratos e consórcios bacterianos isolados do ambiente contaminado). No entanto, para que o Brasil possa competir internacionalmente, empregando uma tecnologia de ponta com menores danos ao meio ambiente e maior eficiência de limpeza, é necessário o constante investimento do governo e de empresas ligadas ao petróleo nesse tipo de pesquisa aplicada.
Publicado na Revista Ciência Hoje (janeiro/fevereiro 2006)
Publicado em 4 de janeiro de 2011
Publicado em 04 de janeiro de 2011
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