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Como se fossem morrer

Pablo Capistrano

Escritor, professor de filosofia do IFRN

Sábado passado as pessoas andavam pelas ruas de Natal como se fossem morrer. Os carros zuniam seus motores poluentes, os ônibus lotados freavam bruscamente nas paradas entupidas, os salões de beleza congestionavam, os corredores dos shopping centers latejavam de pessoas percorrendo suas veredas coloridas com montes e montes de sacolas, como se aquele fosse o último presente, a derradeira bijuteria, a blusa definitiva.

Estamos perto do fim do ano, na semana da festa do Sol Invicto (que os cristãos costumam chamar de Natal), e as pessoas estão correndo como se estivessem tentando se esconder do tempo. Como se tivessem a morte bafejando no cangote.

Nosso tempo é um tempo de fins, de interrupções. Quando o ano começa definitivamente seu crepúsculo, as pessoas mergulham nessa euforia histérica que mistura medo, culpa e esperança em uma mesma bipolaridade urbana.

Sente-se no ar o clima desses meses, apimentado pelo vento leste do verão que chega matando a fúria do mar e lambuzando o céu de Natal de um azul tão definitivo que dói no coração.

Nos tempos velhos, anteriores ao nascimento de Jesus, filho de José, na terra de Israel, todos os povos agrários tinham seus cultos de morte e renascimento. Naquelas eras, o tempo não acabava. Não havia um começo de tudo, e por isso não poderia também haver um fim. Os mitos gregos ensinavam que tudo sempre havia existido e que por isso nada acabaria. Dentre os grandes mistérios da religião pagã, nos cultos da fertilidade e na magia da grande mãe, três se destacavam: o culto a Deméter, os ritos em homenagem a Perséfone e os mistérios de Dionísio.

Durante muito tempo pensou-se (devido às leituras popularizadas por Nietzsche) que Dionísio era uma divindade oriental, exótica, vinda de um ponto impreciso a leste do planalto da Anatólia, cujo culto deveria ter sido introduzido na Grécia por volta do século V antes da era comum. Hoje se sabe que seu culto é muito, muito antigo e que remonta aos fundamentos mais arcaicos da velha sociedade matriarcal da aurora da humanidade.

O vinho, “a porção ardente da mãe negra”, de acordo com Eurípedes, ou a “mãe selvagem” de acordo com Ésquilo, era seu símbolo mais forte. Mas não era o único. A hera selvagem que brotava do solo também representava esse deus agrário que entusiasmava os adeptos de seus cultos. O entusiasmo (enthousiasmos em grego – “ter o deus dentro”) era o presente do vinho daquele deus possuído, louco de uma energia poderosa que unia homens e mundo em um ciclo eterno de morte e renascimento.

Eram desses mistérios que os velhos gregos aprendiam sobre o destino da alma depois da morte e sobre o modo como a natureza regulava seus ciclos. O mistério da vida que gera mais vida, o segredo primitivo da morte que cria mais vida.

Hoje perdemos contato com esses antigos mistérios (ressalvadas algumas raríssimas exceções) e até a missa, esse profundo ritual de morte e renascimento que mistura a ceia do Pessach com os cultos de fertilidade dos velhos deuses, em que o sangue e a carne de Deus são consumidos como na Antiguidade pagã se consumia o vinho e a carne de Dionísio, anda dessignificada no coração de muitos cristãos.

Talvez por isso, quando se aproxima o fim de ano, nós, órfãos do sagrado, extirpados do contato com as velhas forças da terra e com as antigas e misteriosas práticas que ligavam os homens aos céus no tempo da morte, experimentamos a náusea de nosso próprio fim e respondemos à demanda de nosso renascimento com o único poder que conhecemos: a irredutível e magnética força de nossos cartões de crédito.

Publicado em 04/01/2011

Publicado em 04 de janeiro de 2011

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