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Outras palavras de Chico Buarque

Alexandre Amorim

Chico é um esteta. Mesmo que seu primeiro conto publicado tenha sido uma tentativa não muito original de traduzir o mito de Ulisses para as odisséias cotidianas, ou mesmo que sua primeira novela remeta ao livro Revolução dos Bichos, de George Orwell, aplicado aos dias de ditadura militar no Brasil, sua preocupação com a palavra já estava presente nesses textos. No conto Ulisses, o homem comum é retratado em seu desespero de ser acolhido pela companheira, apesar de sua mediocridade: “talvez você espere contos fantásticos... Mas não, Penélope, não ouvi o canto das sereias”. As respostas de Penélope não são ouvidas. As técnicas narrativas se mostravam como um desafio ao autor, meticuloso já em suas primeiras obras.

Em entrevista a um jornal argentino, Chico disse, em 1999, que se achava mais inovador em seus livros do que em suas canções, pelo maior conhecimento literário do que musical. Mesmo que esse conhecimento por vezes se traduza em influências, patentes em seus textos, é fácil descobrir o escritor experimentando romper ou fundir estilos literários para buscar o seu próprio. Assim como Ulisses, o livro infantil Chapeuzinho amarelo, nascido de uma historinha contada à filha Luísa, também foi escrito como paródia, mesmo que subvertendo a moral do conto original de Perrault. No caso de Fazenda Modelo, o livro de Orwell foi o mote para que sua voz libertária apresentasse como patéticos os rumos seguidos pelos dirigentes deste país nos anos de chumbo. Chico ainda tentou se esquivar da comparação em 1975, declarando ao Pasquim que nem conhecia Revolução dos Bichos quando escreveu sua “novela pecuária”. Mas se os porcos de Orwell são uma metáfora genérica do ameaçador absolutismo de então, os bois que habitam a fazenda imaginada por Chico Buarque eram retratos específicos do desgoverno brasileiro, onde os militares alimentavam o povo com o sonho da casa própria, loteavam a Amazônia e se incumbiam de fazer crescer o bolo para poder então dividi-lo. “Escrevi não por uma necessidade literária, mas política”, afirmava o autor, numa entrevista à revista Bundas, de 2000.

Em Estorvo, de 1991, essa amálgama de influências acontece, agora dando maior espaço à originalidade de estilo do autor. Não é à toa que a Companhia das Letras e o próprio Chico apresentam esse livro como uma novidade, deixando suas experiências literárias anteriores guardadas em um baú. É uma nova fase na escrita de Chico, em que ele busca com mais maturidade sua própria maneira de se expressar na literatura. Aponta-se claramente a influência de Rubem Fonseca no modo narrativo e de João Gilberto Noll na questão do deslocamento e da submissão ao devir, mas em nenhum momento duvida-se da assinatura do autor: é Chico Buarque quem escreve a história, em que o título prediz a sensação contínua de incômodo que nos causa o personagem principal, sempre incompatível com os ambientes em que se encontra. O protagonista de Estorvo não se sente em nenhum momento abrigado ou resguardado em qualquer lugar que esteja. Ao contrário, ele se vê perseguido e está sempre em fuga, mesmo que em sua própria casa, na casa da irmã que prefere ignorá-lo, no sítio abandonado de sua família ou na casa da ex-mulher que o despreza. “Não adianta ficar aqui parado. Eu não posso me esconder eternamente de um homem que eu não sei quem é”. O termo deslocamento pode ser utilizado com um duplo sentido, já que o personagem está em constante movimento e, ao mesmo tempo, é um elemento desarticulado do sistema em que vive.

Em 1995, Benjamim volta ao tema do homem deslocado de seu meio. Talvez o livro mais incompreendido de Chico, o idealizado triângulo amoroso entre Benjamim, Castana e Ariela é formado por uma narrativa calcada em linguagem cinematográfica e pode causar estranheza no leitor a abordagem nervosa do narrador, como se fosse uma câmera que nunca estivesse presa a um tripé, mas sempre sendo carregada na mão de quem mostra o que está se passando. Essa narrativa rápida pode nos remeter a flashbacks e tenta nos enxertar na cabeça do personagem-título, um homem que já não distingue completamente suas memórias daquilo que vive no presente. O próprio Chico reconhece que pode haver algo de nouvelle vague no modo de narrar – o que pode ser uma pista para acompanhar as desventuras de um homem cuja história ele mesmo põe em cheque. Mas escolher pistas não é a melhor maneira de ler um livro. Se Estorvo e Benjamim são considerados livros “difíceis”, a dificuldade de lê-los deve ser considerada mais um prazer a ser desvendado. Ler os livros de Chico não se resume a entender as histórias, mas também a saborear as palavras, as frases e as vozes que as formam.

Chico, antes de tudo, é um esteta, e as palavras, tratadas com harmonia em suas canções, são quase que protagonistas de sua última obra. Talvez por isso Budapeste, publicado no ano passado, tenha sido seu livro de maior aceitação pelo público. São outras palavras, escritas, e não cantadas. Mas em nenhum livro de Chico Buarque um assunto é trabalhado com tanta leveza. Se a narrativa sempre foi lapidada, Budapeste traz a matéria-prima da escrita – a linguagem – para a frente do texto, tornando explícito o talento do autor. Influências, ainda existem. A metalinguagem anda em voga e o autor não vive isolado do mundo. A história do ghost-writer José Costa e seus textos atribuídos a outros nomes torna-se, entretanto, bastante autoral quando, mais uma vez, seu deslocamento influencia sua identidade. Se em Estorvo e Benjamim as identidades dos protagonistas se apresentam fragmentadas, Budapeste mostra o processo de ruptura da identidade através da busca de sentido para as palavras e para a escrita. Chico está à vontade, brincando em seu próprio quintal.

O romance mais recente, Leite derramado, é a narrativa de um homem de cem anos e uma interpretação muito subjetiva da história das classes sociais brasileiras. Eulálio, como bom exemplo de narrador pós-moderno, não deixa que o leitor tenha nenhuma certeza sobre suas histórias. Apesar de sua narração claudicante e de sua consciência de que suas histórias podem não interessar a muita gente, contá-las é o que mantém o protagonista-narrador forte o suficiente para lutar contra o destino certo e trágico de morrer e ser esquecido. Narrar é seguir vivendo. Leite derramado é um texto cheio de espaços a serem desvendados, cheio de interpretações a serem feitas. Chico Buarque, mais uma vez, faz seu leitor pensar com prazer, sabendo que nem toda história tem uma interpretação correta ou uma moral determinada. Ler é uma questão de escolha.

Escrever romances pode ser uma mostra de ecletismo do compositor Chico Buarque. Pode também ser um descanso do músico ou uma fuga da escassez temporária de inspiração melódica. Não importa muito qual a explicação, até porque Chico concorda com todas elas quando é perguntado. Importa aproveitar mais uma faceta de um compositor (e autor) genial. Importa notar que o autor (e compositor) sabe lidar com a prosa de seus livros tanto quanto com a poesia de suas letras. E quem há de afirmar que esta lhe é superior?

Publicado em 29/03/2011

Publicado em 29 de março de 2011

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