Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.
Comédias de Shakespeare – análise de fragmentos da peça Noite de Reis
Juliana Carvalho
Aconteceu em 14 de fevereiro, no Auditório Machado de Assis da Biblioteca Nacional, mais uma edição do evento Rodas de Leitura, uma parceria da Estação das Letras com a própria Biblioteca Nacional. O convidado da vez foi o reconhecido ator e diretor Amir Haddad, que escolheu fragmentos da peça Noite de Reis para falar sobre as comédias de Shakespeare.
Quando pensamos em Shakespeare somos imediatamente levados ao universo dramático de Otelo, Hamlet ou Romeu e Julieta. Realmente as tragédias dominam a obra do brilhante autor, que escreveu apenas duas comédias. Para o diretor, falar de comédia é muito interessante na medida em que ela oferece mais nuances, mais alternativas, além de ter mais abertura e possibilidade de ir adiante. Para a tragédia não há saída, pois o sentimento trágico é imobilizador.
O texto Noite de Reis talvez seja o menos lido de Shakespeare. É uma comédia em que ele trata magistralmente questões de amores não correspondidos, afetos impossíveis e troca de identidades. A cena acontece na noite do dia 6 de janeiro, Dia de Reis. Na tradição britânica, essa data encerra o ciclo de festejos natalinos, e o costume da época elizabetana era fazer festa e troca de presentes.
Na peça, Viola sofre um naufrágio junto com seu irmão, Sebastião, e o paradeiro dele torna-se desconhecido. Ao ser entregue em terra firme por seus resgatadores, a moça implora ajuda do comandante para que a apresente ao duque Orsino na segurança de um disfarce masculino para servi-lo enquanto conquista sua estima. Assim se torna Cesário, um belo e astuto rapaz cuja retórica ganha logo a estima do duque. Este o incube de ser seu intermediário diante da condessa Olívia para revelar-lhe seu amor e seus desejos mais profundos de estima e casamento. Olívia, porém, guarda luto ferrenho pela morte prematura de seu amado irmão, que era seu último parente vivo. Assim, afasta todos os pretendentes e não se permite o risco do amor como homenagem ao irmão. Cesário (Viola) leva a cabo os desejos do duque e, nesse movimento entre confissões de seu senhor, ela mesma se apaixona e torna-se vítima de seu disfarce. Olívia recebe Cesário pela força de seus argumentos, profundamente femininos, que lhe despertam a sensibilidade ao amor. Olívia cede em suas resistências mais poderosas, caindo de paixão pelo jovem Cesário (Viola), que, ao perceber o afeto de Olívia, questiona a fragilidade feminina em se deixar seduzir por frases bem ditas e ardis sedutores bem montados e sente pena dela por a estar enganando. Feste, o bobo, questiona o luto de Olívia usando sua crença de que seu irmão estaria no céu. Ele crê que ela esteja sendo egoísta por estar infeliz na Terra se crê que seu amado irmão está no céu.
Entre esses amores não correspondidos, a vida dos empregados de Olívia corre solta e Malvólio, personagem burguês, rígido e religioso que administra o palácio da condessa, é enredado numa trama bem-feita de seus subordinados, que o fazem acreditar que Olívia estaria apaixonada por ele. Seus subordinados falsificam cartas com a assinatura da condessa, fazendo pedidos a Malvólio para que se vista de modo ridículo e se comporte de modo inadequado, reforçando que ignorasse se ela fingisse não entender. O pobre Malvólio cai na armadilha, deslumbrado, provocando riso e escárnio de seus colegas de trabalho, até que conseguem fazer com que Olívia conclua que Malvólio está louco. Ela o manda trancafiar por horas, fazendo-o passar por uma série de humilhações desesperadas.
Os diálogos entre Viola e Olívia são tão intimamente ligados à natureza feminina que é difícil pensar que um homem pudesse ter sido tão profundamente sensível a ponto de construí-los. São duas mulheres fortes, que questionam sua natureza e os desígnios culturais, senhoras de seu destino mas sensíveis ao amor.
Orsino, apaixonado por Olívia, que se apaixona por Cesário (Viola), que ama Orsino. Confusão montada, Viola fica perdida e enredada, mas é salva pela chegada de seu irmão gêmeo, que é acolhido por Olívia sem saber que ela o confundia com Cesário. Nessa atmosfera, Sebastião tem seu coração instantaneamente arrebatado de amor por Olívia. Entre amores impossíveis e trocas de identidade, a noite de Reis atinge seu ápice até que as tramas dos empregados são desvendadas. Malvólio é solto e Viola revela-se como mulher e apaixonada pelo duque, que, ao reconhecer seu amor, a toma por esposa.
Amir Haddad destaca dois personagens: Malvólio, puritano, religioso, obcecado por regras e bons modos, é o antagonista do clima da Noite de Reis. Ele o compara a um almoxarife que não sabe se divertir e muito menos aceita a diversão dos outros. Já Viola “é brilhante, é um dos grandes personagens de Shakespeare”, diz o diretor. Esse personagem jovem, mancebo, de sexualidade ainda não definida, é objeto de disputa em muitos outros textos da época. Em outra peça de Shakespeare, Sonho de uma Noite de Verão, Oberon e Titânia brigam por um jovem garoto indiano, assim como Cesário (Viola).
Outro personagem interessante é o bobo: “ter um bobo na corte funcionava como ligar a televisão. Se o rei queria diversão, o chamava: ‘Fala aí, bobo!’”. Na realidade, naquela época as coisas funcionavam assim. A Royal Shakespeare era a companhia de teatro oficial do rei, que permanecia no palácio à disposição. Na hora de “ligar a televisão”, eles chamavam a companhia. Também havia músicos na corte preparados para tocar a qualquer momento.
Mas o bobo de Shakespeare era muito inteligente. Ele era o favorito do rei, mas quando este morreu ele ficou meio perdido. Nessa época, os bobos já eram uma espécie em extinção. A condessa o mantém na corte porque tem lembranças da infância, mas Malvólio não gosta dele. No trecho a seguir, Malvólio dirige-se à Lady Olívia:
Espanta-me que Vossa Senhoria se deleite com malandro tão estúpido. Eu o vi no outro dia ser derrotado por um bobo de taverna que não tinha mais miolos que uma pedra. Olhe só agora, ele já não pode defender-se. A não ser que a senhora lhe dê oportunidade, fica engasgado. Eu lhe digo que, para mim, sábios que muito cacarejam com bobices decoradas não passam de palhaços dos bobos.
Como na festa do dia 6 de janeiro, os personagens da peça usam “máscaras”, que vão caindo no decorrer da história. Viola conduz esse jogo de identidades, e essa troca é o principal enredo da peça. O duque se vê em uma situação difícil quando percebe que está interessado em um rapaz. Mesmo vestida de homem, Viola exala feminilidade. Essa mesma feminilidade encanta Lady Olívia, que cai de amores por um jovem rapaz que profere palavras doces e conhece tanto a alma feminina. Esse é o espírito da noite de Reis, tudo que aparenta pode ser, mas na verdade não é. O ser amado em um tempo pode ser um e em outro tempo pode ser outro. Não deixa de ser uma visão cética sobre o amor, que em Noite de Reis revela-se altamente circunstancial. Depois de muita confusão, desfaz-se o equívoco e todos se casam. Viola fala sobre o quanto as mulheres são frágeis, pois bastou falar-lhe algumas palavras e Olívia se apaixonou. Shakespeare deixa na mão do tempo resolver a questão da sexualidade e da troca de identidades.
Amir Haddad lembrou que essa não é uma intriga amorosa original, pois o teatro usa muito o tema da troca de identidades. Shakespeare não tinha nenhuma peça original, ele escrevia com base em histórias coletivas, conhecidas nas comunidades e passadas por gerações oralmente, assim como os gregos. Nenhuma dessas histórias é criada por ele; todas circulavam pela Europa. Romeu e Julieta, por exemplo, é uma narrativa conhecida na Itália desde a Antiguidade. Noite de Reis é uma história banal sobre troca de identidades humanas; não há novidade, mas o tratamento dado a ela por Shakespeare é fantástico.
Para compreender a peça, é necessário imaginar o teatro em forma de globo. Ao contrário da cena italiana – formato das casas de espetáculo de hoje –, no teatro em forma de globo todas as classes participavam da peça. O próprio Shakespeare construiu um para encenação de suas peças, o Globe Theatre, cuja cópia está de pé em Londres. Os proletários ficavam na plateia e os burgueses nos camarotes, mas todas as classes assistiam a suas peças. Shakespeare falava para uma plateia heterogênea, como não é possível imaginar aqui no Brasil atualmente. Hoje em dia não há uma plateia assim; geralmente os frequentadores de teatro pertencem a determinados grupos sociais. Atualmente, só fazendo teatro na rua constantemente é possível perceber isso. O público ficava em pé, os atores conversavam diretamente com a plateia e Shakespeare dialogava com o público o tempo todo. Não havia paredes e cortinas, e os cenários eram simples. Os monólogos eram conversas diretas com a plateia. No ato I, cena V, Lady Olívia, já apaixonada por Cesário (Viola), manda que Malvólio corra atrás do rapaz para devolver-lhe um anel deixado por ele. Na cena seguinte, Viola comenta com a plateia sobre o anel, esperando a interação do público:
– Nenhum anel deixei, o que quer a dama?
O diretor chama a atenção também para as traduções: “é um texto com muitos trocadilhos, expressões da época, que são difíceis de traduzir, mas que demonstram a liberdade da comédia. Shakespeare fala muitas coisas com poucas palavras e às vezes não percebemos com apenas uma leitura”. Para ele, as traduções ainda podem melhorar. A linguagem de teatro também era utilizada como forma de interação com o público, e isso pode dificultar as traduções. Neste trecho, Lady Olívia faz uma pergunta à Viola travestida de Cesário e esta deseja saber se está realmente falando com a condessa, razão do amor de seu amo.
Olívia: De onde vem, senhor?
Viola: Sei dizer muito pouco além do que estudei e essa pergunta não está incluída no meu papel. Gentil e bondosa donzela, dê-me garantia razoável de que é a senhora da casa, para eu poder continuar minha fala.
Shakespeare pensava em temas essenciais, no que era importante para a sociedade naquele momento. Era um dos poucos autores que não se preocupava com a academia; por isso sua obra é viva e tão popular até hoje. No evento, Amir Haddad não falou especificamente para professores, mas podemos utilizar muito do que foi dito por ele em sala de aula. Na hora de escolher textos para trabalhar com nossos alunos, costumamos dar preferência aos contos, crônicas ou textos jornalísticos. Por que não utilizar o teatro? As peças de Shakespeare abordam temas que continuam presentes em nossa sociedade. Nós, professores, devemos explorá-los principalmente nas aulas de Língua Portuguesa e Literatura. Outros temas possíveis para essas disciplinas são o gênero teatral, a linguagem metafórica, ambiguidades, figuras de linguagem. Dentro do gênero teatral, cada um dos personagens possui uma característica própria de linguagem. A seleção vocabular de Malvólio é completamente diferente da fala do bobo. Os professores de Geografia e História também podem utilizar os textos teatrais como ilustração da época e mesmo para estabelecer relação com os acontecimentos sociais e políticos nos dias de hoje.
Professores, leiam Shakespeare e o apresentem a seus alunos! O teatro é muito rico e precisa ser explorado nas escolas além dos eventos de final de ano, para que as novas gerações de todas as classes cresçam apreciando essa arte milenar que ainda tem tanto a acrescentar à nossa sociedade, falando intimamente ao público.
Publicado em 5 de abril de 2011
Publicado em 04 de maio de 2011
Novidades por e-mail
Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing
Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário
Deixe seu comentárioEste artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.