Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

Linguagem como identidade

Alexandre Amorim

Parte 2 – globalização e comunidade

Se o filósofo marxista Leandro Konder, como visto na primeira parte deste artigo, preconiza a necessidade de clareza na linguagem para que se mantenha a identidade de uma comunidade, há que se colocar em dúvida a relação do que é comunitário com o mundo – e até mesmo a determinação do que vem a ser uma comunidade.

Não podemos nos ater ao termo “comunidade” como sugestão de que existam membros definidos de um grupo, porque esses membros navegam muitas vezes por vários grupos, isto é, por várias comunidades, formadas até mesmo por diferentes línguas ou linguagens. O Brasil dispõe de várias codificações de signos e de dialetos regionais, apesar de ser considerado uma mesma comunidade, encerrada no uso de uma mesma língua, o português.

É sabido que esta nação continental encerra diferentes grupos regionais que se interligam e se comunicam sob o signo da língua portuguesa, mas com diferenças marcantes no seu uso. O nortista, por exemplo, encontra barreiras em sua comunicação com o gaúcho e o carioca não pode dispor de seu arsenal vernáculo em qualquer lugar do país sem ter que “traduzir” alguns termos utilizados ou sem sofrer estranhamento da outra parte por sua sintaxe.

Mesmo dentro de uma região geográfica existe o socioleto, a variedade da língua por grupos de trabalho, por gerações ou por camadas sociais. Há comunidades linguísticas distintas dentro de uma mesma comunidade regional, porque nesta existem subgrupos formados pelas mais diferentes influências: classe, idade, experiência de atividade etc.

A cultura de um povo não é encontrada em seu estado primitivo ou puro; portanto, essa comunidade se torna variada e várias. A ilusão nostálgica da baiana do acarajé ou da mulher rendeira em sua roca não corresponde a estratos sociais demarcados ou a figuras culturais rígidas em suas funções. Encontramos baianas vendendo acarajé em Ipanema, Belo Horizonte ou mesmo em bares gaúchos. E até no Pelourinho... E, com ela, vai sua sintaxe, seu jeito de falar, sua codificação da língua – sua linguagem, enfim, que se transforma em cada nova localidade.

Essa “globalização de regionalismos” é mais um elemento que faz da língua um ser vivo. Como diz Peter Burke, historiador que estudou a relação entre linguagem e comunidade na Europa, “o indivíduo propõe, mas a comunidade dispõe” – aceita ou não as inovações linguísticas em seu repertório. As gírias, os neologismos e os regionalismos, além da mudança na conjugação de verbos, podem alterar a estrutura da língua e fazer valer novos signos para a linguagem. Acima, chamei essa influência do regional no global de globalização de regionalismos, mas essa é uma visão romântica da globalização. Uma melhor definição da influência local na língua seria um “canibalismo do regional”, uma vez que diferentes comunidades vão adaptar os regionalismos a elas próprias.

O conceito de globalização, ao contrário, impõe a homogeneização. Desde o final da Idade Média já havia crítica ao uso do latim como fator de unificação das diferentes comunidades linguísticas. Ocorre que essa unidade era imposta principalmente por clérigos e pela classe jurídica, e a maior crítica ao uso do latim era que este não atingia as classes mais baixas. A globalização já era, então, uma ferramenta do poder estabelecido. Assim como a academia científica quer impor ao brasileiro comum uma unidade da língua portuguesa e como os Estados Unidos impõem sua língua como universal.

A boa notícia em relação à tentativa de criar vassalos autômatos através da globalização vem da ideia de resistência que o filósofo francês Michel Serres defendeu no programa Roda Viva (TV Cultura) de 8 de novembro de 1999. Perguntado sobre os perigos da globalização, ele nos acalenta: “posso tranquilizá-los, porque somos feitos assim: criamos sempre a diferença. Suponhamos que o mundo inteiro venha a falar uma única língua. Essa única língua, ao ser falada em São Paulo, no Japão ou em Paris, seria tão diferente em sotaque, intenção, entonação e cultura geral que muito rapidamente não seria mais a mesma”.

Para o filósofo, o medo da globalização deve ser evitado, porque somos sempre levados à criação da diferença e porque temos nossa cultura própria. E ser culto é ser levado a procurar novas culturas, “em busca das diferenças”.

Na Europa do século XVI, o latim era a língua do clero e da “República das Letras”, isto é, das classes dominantes – que preferiam se manter enclausuradas em torres de marfim a homogeneizar a língua para melhor governar. No meio da briga entre o latim (a globalização dominada por uma elite) e o vernáculo (a identidade da comunidade), Shakespeare criou cerca de setecentos neologismos, sendo dois terços usados até hoje na língua inglesa, e muitos deles vieram do latim. Essa pequena história vai de acordo com a teoria de Serres: sempre existirá a resistência que vai criar a diferença, destacando a comunidade da massa uniforme globalizada e até mesmo criando no seio dessa comunidade a grandeza da convivência entre as diferenças.

E quem diria que a linguagem poderia nos levar a ver e apreciar o que temos de comum e de diferente com nossos próximos?

A parte 3 e final deste artigo vai tratar da comunicação da linguagem poética.

Leia mais sobre Linguagem como identidade

Publicado em 2 de abril de 2011

Publicado em 12 de abril de 2011

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.