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O prazer e a clandestinidade da leitura

Nayana M. Moraes

Graduada em Letras

Texto de prazer:
aquele que contenta, enche, dá euforia

Roland Barthes

Com estas palavras, Barthes tece o papel do texto enquanto processo de sedução do leitor, visto que este último é seduzido muito antes do “ato” da leitura. Essas insinuações permeiam a possibilidade de significados inferidos pelo leitor. A semioticidade da leitura. Os signos presentes que fazem o jogo entre palavras e sentidos, linguagem e erotismo. Esse prazer desencadeia nas sensações conscientes e inconscientes. Uma capa, uma imagem, uma cor propiciam essa sedução, provocação, formando assim sinestesias em que o indivíduo sinta-se atraído pelo livro; o deguste, o devore e sinta-se faminto por conhecimento. Ainda segundo Roland Barthes, essa estrutura é fundamental para a leitura, pois sem esse jogo não há prazer algum nem importância adquirida na linguagem.

O texto é um objeto de fetiche e esse fetiche me deseja. O texto me escolheu, através de toda uma disposição de telas invisíveis, de chicanas seletivas: o vocabulário, as referências, a legibilidade etc.; e perdido no meio do texto (não atrás dele ao modo de um deus de maquinaria) há sempre o outro, o autor (Barthes, 2008, p. 35).

Essa concepção de leitura engendra a possibilidade de uma polissemia, de um vasto campo de significâncias, uma vez que o autor não é propriamente dono de sua obra, mas aquele que influencia ao dar os caminhos implícitos de um texto: a descoberta do pensamento. A idealização, a imaginação cabe ao autor, enquanto o leitor irá ou não atribuir um significado (ou vários). A clandestinidade do sentido para a própria vida, já que cada um esconde as razões da sua essência, daquilo que verdadeiramente o dá prazer. A leitura como objeto de interpretação do mundo. Nesta confusão silenciosa, lembramos do conto metalinguístico de Clarice Lispector Felicidade Clandestina, cuja protagonista está diante da sua paixão interior pela leitura, só que se encontra em constante espera pelo livro tão desejado e vítima da perversidade da antagonista. Um jogo de sedução, em que o livro é o principal meio de provocar os sentimentos de ambas. O não prazer pela leitura da antagonista, que é filha de um livreiro, faz com que esta encontre fronteiras para ter prazer em uma outra situação; adquirir poder para com a menina que almeja algo, que busca interpretar seu próprio mundo.

Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde da minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez (Lispector, 1993, p. 53).

A partir da paixão pelo livro, a personagem vê-se à espera e à mercê da menina “gorda, baixa e sardenta” (p. 52) que a impossibilita a flutuar nas Reinações de Narizinho. O intertexto do conto. Essa obra lobatiana demarca, como contexto, a própria paixão pelo livro, formando tanto no conto clariceano quanto no de Narizinho uma rede intertextual e metalinguística. Figuras que resgatam a memória infantil e a importância da leitura.

A figura do livro está sempre presente em Reinações de Narizinho: livros podem ser abertos para que os personagens possam fugir de dentro deles ou podem ser absorvidos pelo Visconde; ou então livros podem ser lidos por Dona Benta e ter suas histórias contadas às demais personagens (Ribeiro, 2008, p. 144).

A memória, em Felicidade Clandestina, possui papel fundamental na rede supracitada, uma vez que a narradora-personagem revela aos poucos seus sentimentos silenciosos em relação à leitura. Mas estar preso em si mesmo é contrariamente libertar-se na leitura, no jogo do prazer, da ficção, de atribuição de sentido para seu próprio mundo. Linguagem e sedução que se intercalam para estabelecer a infinitude de possibilidades textuais.

A felicidade clandestina da personagem

“Meu peito estava quente, meu coração pensativo (p. 54)”. Com essa frase a menina caracteriza a leitura como um gesto de sentimentos transpostos na clandestinidade da sua essência. Um momento epifânico, característica de Clarice Lispector. Apesar da presença do tempo cronológico, é o tempo psicológico que predomina, a partir do anseio e do jogo entre as meninas. Jogo esse em que há certo erotismo na paixão da menina e provocação desse desejo, a partir das ações da menina de cabelos “meio arruivados” (p. 52). Ainda de acordo com o já mencionado Roland Barthes, o texto é uma figura do corpo erótico. “Observo clandestinamente o prazer do outro, entro na perversão; o comentário faz-se então a meus olhos um texto, uma ficção, um envoltório fendido” (Barthes, 2008, p. 25). A clandestinidade da leitura, título do conto muito bem empregado.

Mas como ser clandestino aos olhos de um texto se ele nos procura a todo tempo? Se um texto procura nos atribuir um significado perante a vida em que somos inseridos? Com esses questionamentos e sopro de felicidade, a protagonista, ao finalmente conquistar o livro, fica maravilhada ao possuir seu objeto de desejo. Abre-o, fecha-o, abraça-o, porém sem ter coragem de lê-lo, de decifrar as entranhas do seu ser e criando um clima constante de euforia e medo. “Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim” (Lispector, 1993, p. 55).

Texto e felicidade: a paixão pela leitura

Escondida, interior, a paixão pela leitura faz-se presente neste conto em que os conflitos de ambas as personagens são vistos como metáfora do jogo da leitura. Perversão, poder (antagonista) o domínio que muitas vezes uma obra literária ou de uso geral exerce sobre o leitor. Prazer, desejo (protagonista), esse leitor que procura um livro como quem cheira um corpo estendido sob os lençóis dos devaneios. Linguagens que aguçam o conhecimento e a infinita busca por completude. “Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o” (Lispector, 1993, p. 53). A paixão pela leitura como maneira de modificar o seu próprio mundo.

Mas para tudo isso ocorrer é preciso que o texto seduza e faça parte de um jogo erótico, em que as palavras proporcionem a liberdade, o êxtase. Esse erotismo livro-leitor demarca a felicidade clandestina da leitura, “preparando um espaço propício à leitura de outros textos, criando estímulos para a leitura do mundo, trabalho da linguagem aplicado ao plano da liberdade” (Ribeiro, 2008, p. 141). Encontrar a felicidade e a liberdade nos livros, no código semiótico da leitura, no prazer que se revela antes do “ato” de ler. Esses termos presentes provocam a paixão pela leitura e o encontro de si mesmo nas páginas do texto.

Referências bibliográficas

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2008.

LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. In: LISPECTOR, Clarice. O primeiro beijo & outros contos. São Paulo: Ática, 1993.

RIBEIRO, Maria Augusta W. Reinações de Narizinho: leitores e leituras. In: CECCANTINI, João Luís e MARTHA, Alice A. P. Monteiro Lobato e o leitor de hoje. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2008.

Publicado em 12 de abril de 2011

Publicado em 12 de abril de 2011

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