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Dia de Faxina

Alexandre Amorim

Se naquele dia o patrão colocasse o disco Clube da Esquina para ouvir a antiga canção de Milton Nascimento, Maria não prestaria nenhuma atenção. A estranha mania de ter fé na vida, a necessidade de ter gana e graça, tudo isso passaria pelos seus ouvidos sem chegar ao lugar por onde seus pensamentos agora passeavam. Enquanto esfregava vidros da janela que dava para o morro de São João e para o cemitério, a moça, já despreocupada em guardar a beleza dos vinte anos, pensava que a graça das coisas já não estava lá. Não via graça em sair do trabalho e sentar com amigos em volta de garrafas de cerveja ou gargalhar com amigas entre conversas discretas, mesmo que composta de algumas frases em voz solta e alta. As gargalhadas já pareciam ridículas, a cerveja, sem graça. Na verdade, seus pensamentos vagavam ao redor disso, da graça.

Ave Maria, cheia de graça. Ela misturava elegância, dádiva e diversão em uma mesma reza, que fazia sem sentir. Pensou na falta de graça, pensou na oração e agora se perguntava se diversão e dádiva eram uma coisa só. Eram graça. Mas ela mesma não rezava, nem queria saber de Maria mãe de Deus ou de rogar pelos pecadores. Nem se sentia pecadora, só sentia uma tristeza e não sabia de onde vinha. Talvez por isso tenha vindo a oração da igreja que ela frequentava quando menina. Salve Maria, salve rainha. Pátria amada, salve, salve. Essas coisas de infância a gente nunca esquece.

Os vidros limpos, a cabeça longe. Sentiu vontade de cantar, mas não vinha uma música sequer. Desceu da janela, deixou balde e esponja perto do tanque, tirou lençóis e fronhas da máquina de lavar para o varal. Todos de tecido branco, sem misturar com os coloridos. Os brancos eram mais elegantes, os coloridos mais divertidos. Tinha graça trabalhar? Qual era a dádiva do trabalho? Abaixou o varal, cheirou a roupa recém-lavada, misto de sabão em pó e lavanda. Cheiro quente da água e do verão, calor que fazia as axilas escorrerem quando os braços se esticavam para cima, prendendo os lençóis. Fortes, os braços, mas já engordados. Um viço disfarçado de gordura, uma força que não se expunha. Tanta coisa para pensar, Maria. Esquece desse homem que não te quer, tem fulano, tem meu irmão, que é caidinho por você. Frases cortadas por gargalhadas nas conversas com amigas. Achava graça, se divertia. Agora, estava cansada. Não era falta de força. Era falta de ânimo.

Tinha era de mudar. Não sabia o quê, não sabia se a cor do cabelo, se mudar de vida. Queria mudar de nome, Maria era aquele problema, tinha música, tinha a mãe de Deus, tinha tanta Maria que ela mesma queria ser outra pessoa. Tomou banho, mudou de roupa, pegou o dinheiro com o patrão, que ouvia música na sala, desceu de escada, devagar. O porteiro achou Maria meio tristonha. Riu para ela. Tenha fé, que amanhã é outro dia, ele disse.

Ela achou graça.

Publicado em 19/04/2011

Publicado em 19 de abril de 2011

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