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O que significa ser herdeiro de Marx: uma reflexão a partir de Jacques Derrida

Marlon Baptista

Este escrito tem o propósito de, a partir da leitura do conjunto de conferências de Jacques Derrida intitulado Espectros de Marx, compreender em que sentido é possível pensar o quanto é uma questão de responsabilidade política refletir sobre as heranças do pensamento marxiano. Heranças das quais não podemos abrir mão se quisermos levar a sério uma postura crítica em relação à pretensa hegemonia contemporânea – pós-Muro de Berlim – determinada por uma postura entusiasta e dogmática sobre a destinação do homem à vida no interior da democracia liberal. Veremos como o termo “espectros” tem papel fundamental no processo hermenêutico de Derrida para tentar compreender em que sentido a fantasmagoria, a assombração, se relaciona com uma condição resgatada da peça Hamlet de Shakespeare, onde o herói afirma “the world is out of joint” (“o mundo está fora dos eixos”).

A condição de ser assombrado e de estar fora dos eixos é o que orientará este texto; ambas as condições são o núcleo discursivo que unifica e perpassa as variantes temáticas das conferências de Espectros de Marx e nos situa, desde a publicação de O Manifesto do Partido Comunista em 1848 até o discurso político-midiático contemporâneo, na posição e necessidade de compreender em que sentido precisamos pensar a partir de novos parâmetros e conceitos para não nos reduzirmos a conjuradores, a partidários de uma postura orientada por uma compreensão de mundo ontológico-metafísica que preza a bipolaridade conceitual para tentar dar conta do real e determiná-lo, de modo a ignorar justamente a forma do fantasmático, que seria o que mais propriamente está para além das oposições “ideal e efetivo”, “presença e ausência”, “vida e morte”.

Marx e a mistificação da mercadoria

Iniciemos pelo modo como Marx, em O Capital, descreve o caráter místico do surgimento da mercadoria a partir do exemplo da mesa de madeira. Esse primeiro momento analítico tem o intuito de apresentar o que Marx entendia como fantasma juntamente com a interpretação de Derrida sobre problemas dessa compreensão para então podermos seguir adiante na reflexão sobre o sentido da fantasmagoria contemporânea diante da qual Derrida afirma ser necessário assumir uma posição.

Diante de uma mesa posta à nossa frente, se prezarmos o primeiro olhar, que vê somente o que se mostra, vemos só a aparição de um objeto trivial, que não nos diz nada além de sua finalidade prática e, no máximo, de sua constituição material – a matéria de que é feito. Um primeiro olhar tende a ver o valor de uso da coisa, de modo a não ver seu valor de troca e tudo que está implicado nele. Buscar ver o que não aparece de imediato, o que não se mostra mas está aí já aponta para uma característica do efeito fantasma, do espectro: a frustração da expectativa de opor a presença e a ausência. Pois, se num primeiro momento a mesa é uma coisa ordinária e trivial, a partir do momento em que ela se torna mercadoria assume outro valor, praticamente o valor da atuação de um protagonista vivo que entra em cena, o sensível ordinário torna-se como que uma pessoa, de modo que seu caráter sensível passa a ser incorporado também pelo insensível – ou pelo suprassensível, pois se trata de um valor que não está propriamente na coisa; o valor que se mostra estando na coisa é o seu valor de uso, ou seja, o custo de sua produção e do trabalho envolvido nela. Assim, a forma “mercadoria”, por ser uma coisa sem fenômeno, assume uma figura fantasmal.

Ao mesmo tempo, a sua transcendência como entidade abstrata não se liberta da matéria bruta da mesa, de modo que o fantasma da mercadoria consegue tornar o insensível sensível a partir do momento em que há os que consomem, entrando em relação com a fantasmagoria incorporada na mesa, o que pode ser o mesmo que o momento em que a mesa coloca em movimento a abstração fantasmática do dinheiro, diante de outros objetos a que faz concorrência e diante de pessoas que são seduzidas ou chamadas a comparecer diante da mesa e a aceitar seu valor como valor de troca.

A forma social que relaciona os seres humanos entre si passa a se submeter às relações entre os espectros que são as mercadorias, que se autonomizam e assumem um valor que não corresponde mais ao caráter social do trabalho que engendrou a coisa. Assim como fantasmas não se refletem no espelho, a mercadoria passa a não refletir o processo de produção que pudesse vir a justificar seu valor como valor de uso; “as mercadorias transformam os produtos humanos em fantasmas” (Derrida, 1994, p. 208). Assim, por um lado, ao não refletir, esse espelho naturaliza, fazendo crer que reflete o caráter social do trabalho do homem, como se as não qualidades que ele reflete fossem de fato “o trabalho objetivado nas coisas”; por outro lado, desnaturaliza, ao desmaterializar a coisa do valor de uso, atribuindo a ela o valor de troca, e assim espectralizando-a no absurdo do sensível/suprassensível.

A fantasmagoria ocorre antes e para além da mercadoria

Desse modo, Marx visa apontar um momento de cisão, um momento específico a partir do qual o objeto passa a ser obsidiado, tomado pelo fantasmático; o momento em que se torna mercadoria. Postura que, de certa forma, pressupõe um valor de uso puro, que ignora a possibilidade de que, na mera matéria da mesa, por pouco que fosse, pudesse estar alguma promessa de “substituição de seu valor”. Derrida entende que é impossível determinar um valor de uso puro no qual não possa se apresentar de antemão um valor de comércio. Por isso, entende o valor de uso como um conceito-limite, ao qual nenhum objeto pode de fato corresponder. Assim, se o conceito de valor de uso tem algum valor de uso, ele já se encontra obsidiado (assombrado) de antemão pelo seu outro, o fantasma da “forma-mercadoria”, pois, ainda que a forma-mercadoria não seja valor de uso, a condição de sua não presença ali não a impede de afetar “antecipadamente o valor de uso da mesa de madeira” (idem, p. 214). A forma-mercadoria não é contemporânea a si mesma – como todo fantasma não o é –, pois obsidiar não é estar presente de fato. Ela é intempestiva e antecipa a situação de desajuste, de desacordo, de disjunção do out of joint (fora dos eixos), na medida em que a construção de todo e qualquer conceito exige a determinação de seu sentido, a limitação de sua abrangência, a delimitação da fronteira que lhe proporciona identidade, fazendo-o se opor a tudo que (aparentemente) não é ele; esse estranho, ou esse outro (ou estranhos e outros), mesmo que ainda não determinado, já obsidia a partir do momento da colocação das fronteiras que delimitam a forma, já aparece, ainda que nebuloso (ou principalmente, nebuloso e obscuro) como o outro lado que se insinua e impõe sua diferença.

Por isso Derrida afirma que, mesmo antes de se revelar, o “caráter místico” da mercadoria já é presente na coisa. O fantasma já teria aparecido antes do instante primeiro do advento da mercadoria, se infiltrado no valor de uso, pois, caso contrário, não há como um uso se determinar como tal em oposição ao inútil ou à troca visando lucro, por exemplo. Sem a obsessão não se forma nem mesmo o conceito de valor de uso ou valor em geral, não se dá forma a uma mesa – independentemente de ela ser útil ou vendável. Acontece que todo valor de uso, na medida em que serve para alguém e tem sua serventia repetida, assume de antemão um papel “no mercado das equivalências” (idem, p. 216).

Isso significa que o valor de uso por si só é impregnado pelo sentido de equivalência, que possibilita que um objeto, apesar de ter finalidade utilitária, seja avaliado diante de outros objetos e de outras pessoas, extrapolando o mero valor de uso em prol de outras possibilidades de relação de valor que podem fazer com que o objeto assuma outras feições, sem ser necessariamente a da instauração corpórea da forma-mercadoria como um divisor de águas que delimitasse a cisão de dois momentos completamente distintos.

O que é ser fiel ao espírito de Marx

Ao interpretar desse modo a maneira como Marx entendia o advento do fantasma do capital, Derrida não visa desqualificar ou deslegitimar a força e a importância do pensamento marxiano, mas sim ser coerente com a própria postura crítica de Marx, que é aberta à crítica de si mesma e a processos de reestruturação que configuram propriamente o progresso da postura crítica, apontando assim para a necessidade de ser repensado o que significa a “primeira vez” de um acontecimento.

O discurso de Marx era sobre um tipo de “loucura” que deveria acabar, um imperativo por reincorporação do trabalho que teria se tornado algo abstrato e alienado em relação a uma forma de reconhecimento de si que o homem deveria vivenciar nele (no trabalho). Entretanto, o que Derrida considera problemático é limitar a concepção de fantasmagoria ou espectralização à produção de mercadorias, pois, apesar de ter sido um dos primeiros a pensar a questão da técnica, Marx visava basear sua crítica ao fantasmático numa ontologia, ou seja, concebendo a “presença como realidade efetiva e como objetividade” (idem, p. 226), sem levar em consideração a possibilidade do caráter conjuratório ou exorcista de sua própria postura, num certo sentido equivalente, ainda que com intenções contrárias, às sagradas alianças europeias que visavam conjurar o “fantasma do comunismo”, já que ele visava acabar com o fantasma da representação da subjetividade e interioridade do sujeito moderno para transpô-la (ou reduzi-la) ao mundo do trabalho, da produção e da troca, de modo que ele acreditava (ou queria fazer acreditar) que a fantasmagoria desapareceria caso mudassem as formas de produção.

Assim, ser fiel a um certo espírito do marxismo é ser fiel a uma crítica radical, aberta à autocrítica, ao invés de se apegar à ontologia marxista, ou seja, às formas de instauração de um sistema social de produção, como as experimentadas por totalitarismos no século XX ou como a reivindicação anacrônica de uma ditadura do proletariado nos dias de hoje. Sua importância reside em sua “afirmação emancipatória” (idem, p. 121), extrapolando o dogmatismo abstrato das formas de pensar dos tradicionais dirigentes, em prol da produção de acontecimentos, de novas formas de ação e organização.

Os problemas do discurso dominante vencedor, do capitalismo

Derrida afirma que, desde os anos 1950, em meio a um ambiente de visão de mundo predominantemente escatológica (as ideias sobre o fim do homem, da história, da política, da filosofia etc.), ele e outros no interior da academia se abstiveram tanto de ser marxistas como reacionários de direita, tentando pensar a democracia e o espaço da política por outros caminhos. No início da década de 1990, por outro lado, ele manifestou sua preocupação com a crescente teorização (ou neutralização) do espírito marxiano no interior da academia, principalmente por teóricos que visavam celebrar a vitória triunfante do capitalismo por meio da democracia liberal como uma retomada, em certo sentido, de uma concepção de fim da história; ainda que a atual democracia liberal seja obrigada a admitir não ter alcançado a perfeição prometida em seus “princípios”, os fatos empíricos (os horrores que existem) dos problemas existentes no interior do pretenso processo de instauração desse sistema não seriam suficientes para refutar o valor ideal em processo de ser alcançado – a partir da pressuposição de que não é possível alcançar a realização humana no interior de outro sistema político e econômico.

A constatação shakespeariana de que o mundo está fora dos eixos estava presente nas reivindicações pronunciadas pelo Manifesto do Partido Comunista em meados do século XIX. Mas essa condição não seria própria de um tempo determinado, com data marcada. Não seria o de Hamlet e nem o do Manifesto em particular. Não seria especificidade também de nosso tempo, em que os problemas socioeconômicos mundiais assumiram níveis nunca antes vistos. O fantasmático, a obsessão caracterizaria na verdade toda a história da Europa, com “seus grandes projetos unificadores” (idem, p. 19). O problema se agrava ao pensarmos que a “história da Europa” se globalizou – suas concepções de Estado-Nação, democracia, liberdade, política, direito etc., de modo que a atual hegemonia de conjuração da herança de Marx pode apontar tanto para uma camuflagem do lado podre escondido pelos supostos vencedores quanto para o receio do retorno do fantasma. E, independente de qual das duas razões, o engendramento de novos espectros fomentados por esse discurso hegemônico da nova “ordem mundial” pode estar prejudicando seriamente (ou está mesmo prejudicando seriamente) o espaço em que a democracia deveria estar de fato sendo exercida. O discurso de que Marx está morto e a festa em torno do liberalismo podem ser uma forma de tentar negar ou esconder o que há de obscuro por trás do que está sendo festejado. Em que sentido?

O discurso dominante passa por três principais esferas: 1) a da cultura tida como propriamente política, dos políticos de profissão, no âmbito dos discursos oficiais; 2) a da cultura superficialmente qualificada politicamente, que é a audiência das mídias de massa, por meio das quais a informação é selecionada e hierarquizada, “canais cujo poder aumentou de modo absolutamente inédito, em um ritmo que coincide precisamente, sem dúvida de maneira não fortuita, com o da queda dos regimes de modelo marxista” (idem, p. 77); e, por último, a esfera dos eruditos ou acadêmicos, principalmente das ciências humanas. Acontece que tanto a esfera dos políticos de profissão quanto a dos eruditos não se dissociam das mídias de massa, e cada vez mais a figura do político se torna mais espectral, parecendo até a figura de um ator de TV.

As coisas se confundem, os pronunciamentos editados e selecionados do que se diz ou não na política oficial são, por muitas vezes, manipulados pela mídia, que é até capaz de eleger presidentes ou de eleger para cargos públicos pessoas completamente desqualificadas para o exercício político, como cantores e personalidades de TV. O pronunciamento de um político, quando editado, pode causar o efeito contrário do esperado quanto ao conteúdo genuíno do texto. Por outro lado, os acadêmicos, legitimados pela autoridade científica e pela ignorância não especializada dos leigos, fazem afirmações que convencem muitos – ainda que muitos destes sem muita clareza sobre o porquê do seu convencimento. Convocam para colocar no ar em horário de maior audiência autoridades em assuntos para falar obviedades, para as quais não é necessário nenhum especialista. Mas, no caso específico apontado por Derrida, a hegemonia do discurso que prega por todos os meios o caráter natural e jubiloso do modo de vida pautado no status quo econômico e político da perspectiva social-democrata faz com que seja posta em perigo a democracia, na medida em que falta consistência e legitimidade a um tipo de discurso tão questionável e destituído de verdadeiros fundamentos.

O caráter hegemônico desse discurso inviabiliza justamente a possibilidade da mudança, do porvir, de sermos e nos organizarmos de outro modo, com outras metas. Retornemos ao que foi dito mais atrás: esse alarido talvez denuncie o sintoma de uma condição inquieta, obsidiada ainda pelo fantasma de algum comunismo: “façamos de modo que no porvir ele não retorne mais” (idem, p. 59), mas a característica fundamental do fantasma é sua constante possibilidade de vir a qualquer momento (como temiam as potências da velha Europa do século XIX, na época do Manifesto) ou retornar de repente (como podem temer as atuais potências).

Tamanho alarido, como havia dito mais atrás, pode também servir como camuflagem dos problemas ocasionados pelo sistema conclamado. Cito somente alguns: a mudança do significado do trabalho altera até mesmo o modo de definir a diferença entre trabalho e não trabalho, e os subempregos ou empregos alternativos decorrentes de necessidades inéditas dos mais pobres passam a exigir novas políticas e conceitos para tratar do problema. A guerra econômica entre grandes potências industriais passa por cima de questões éticas ou democráticas, prejudicando países sem acesso técnico-científico equivalente. A manutenção da existência da dívida externa agrava cada vez mais as condições dos países devedores, historicamente em condições desfavoráveis e mantidos na pobreza, tendo necessidade de capital estrangeiro para amenizar a situação decorrente de uma história de exploração ou descaso dessas mesmas potências credoras. As democracias ocidentais incluem no equilíbrio de seus sistemas econômicos a indústria armamentista, vendendo armas para regimes ditatoriais, por exemplo, para que ocorra a manutenção de determinados estados de coisas que correspondem a interesses que nada têm a ver com a democracia (óbvio), mas sim com questões políticas e econômicas. São muitas contradições que poderiam continuar a ser citadas.

Ser herdeiro como seleção de fantasmas, e não exorcismo

A postura que identifica esses problemas reais nada tem a ver necessariamente com as ontologias marxistas do século XX, por exemplo, mas não deixa de ser uma forma de herança do pensamento de Marx a crítica à autonomia da instância jurídica pregada pelos governos democráticos, porque, no fim das contas, as autoridades internacionais acabam por ser determinadas por fatores econômicos, ou seja, pelo interesse dos Estados mais poderosos. E enquanto se busca manter a desigualdade científica, militar e econômica torna-se hipocrisia falar em direitos humanos. A condição de ser herdeiro é uma fatalidade; nós o somos antes que estejamos em condições de aceitar isso ou não. O tipo de análise crítica a que Derrida se propõe – mesmo sem estar reduzida a uma questão de classes – seria impensável numa época pré-marxista. Derrida entende que é importante não só expulsar e exorcizar os espectros, mas selecionar dentre eles qual é importante permanecer ou não, qual deve retornar ou não.

O discurso hegemônico pró-capitalismo pretende exercer a prática de conjuração, exorcizando o espectro que lhe incomoda, pois visa a manutenção do estado de coisas, e, consequentemente, pretende evitar o novo ameaçador ou o retorno de uma ameaça fantasmagórica e concreta do passado. Acontece que essa condição mesma já aponta para o estado de coisas out of joint, a necessidade de algo ser feito, com promessas messiânicas ou escatológicas, por um lado, ou, por outro, a consciência de que algo precisa ser feito, porque a condição das coisas com a hegemonia do estado vangloriado pelos discursos dominantes mostra com evidência que as coisas não vão bem, pois “jamais a violência, a desigualdade, a exclusão, a fome e, portanto, a opressão econômica afetaram tantos seres humanos na história da Terra e da humanidade (idem, p. 117).

Por isso ressaltamos a importância inegável da herança. Quanto mais o novo irrompe, maior é a crise; quanto mais out of joint estão as coisas, mais é necessário convocar o antigo, tomando-o de empréstimo e depois se apropriando dele de forma viva, ao invés de querer ressuscitar mortos ou exumar cadáveres. Nesse sentido, Derrida fala sobre uma Nova Internacional, não no sentido de retomada de um tipo de organização global dos trabalhadores como no século XIX, mas no sentido de transformar o Direito Internacional, de modo a incluir nele “o campo econômico e social mundial, para além da soberania dos Estados” (idem, p. 116). Esse tipo de atitude de herdeiros é o que Derrida afirma como um “é preciso” que assumamos:

É preciso quer dizer é preciso filtrar, peneirar, criticar, é preciso escolher entre vários possíveis que habitam a mesma injunção. E habitam-na de modo contraditório, em torno de um segredo. Se a legibilidade de um legado fosse dada, natural, transparente, unívoca, se ela não pedisse e não desafiasse ao mesmo tempo a interpretação, não se teria nunca o que herdar (idem, p. 33).

Por fim, poderíamos perguntar ainda pelo que caracteriza a condição out of joint. Derrida, com o auxílio de Heidegger, afirma ser o presente. O presente, tempo que sempre é, é fora dos eixos, em desajuste. O presente, como passagem transitória, assume sempre uma posição que fica no meio: entre o que parte e o que chega, o que se ausenta e o que se apresenta; é nele que esses dois movimentos se encaixam, entre o que não é mais e o que não é ainda. Esse ponto de contradições se concentra no presente e faz com que a condição desajustada, fora dos eixos, valha para qualquer tempo. Isso significa que a condição do out of joint é o que possibilita a abertura para o porvir. Ao invés de uma constatação pessimista, trata-se mais de uma perspectiva trágica, na medida em que reconhece a fatalidade da condição humana numa constante hesitação e incerteza que a faz se mover, que faz com que não nos estagnemos ou nos demos por satisfeitos com o estado das coisas, com que possamos pensar que não há metas a serem alcançadas, como pontos finais. O próprio conceito de democracia só surge da condição fora dos eixos, e por isso devemos falar em democracia num porvir e não numa consumação em um presente futuro – o que incorreria em mais um fantasma ou numa ideologia.

Não reconhecer a validade de qualquer discurso com pretensões de hegemonia é o que garante a possibilidade do irromper do novo, da promessa por futuro, da manutenção do engajamento e responsabilidade para que possamos determinar modos de vida. Por mais que seja possível afirmar que há na posição de Marx certa pretensão hegemônica, não é isso o que talvez seja mais importante de herdar nesse processo de seleção e deciframento que envolve toda herança, mas sim a reivindicação do poder de decidir e mudar as condições da vida humana, ao pensar num constante processo de reestruturações e reconfigurações de futuros sonhados, planejados e imprevisíveis.

Referência bibliográfica

DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx. Trad. Anamaria Skinner. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.

Publicado em 26 de abril de 2011

Publicado em 26 de abril de 2011

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