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Uma deusa de carne e de osso

Pablo Capistrano

Estranho saber que em algumas comunidades humanas não existe lugar para a palavra Pai. Isso se dá porque, segundo os antropólogos, a base da família é matrilinear. As mulheres, desfrutando de uma liberdade sexual pouco vista nas sociedades patriarcais, têm encontros sexuais fortuitos com diversos homens e criam seus filhos sem necessariamente saber quem é o pai deles. Escandaloso para os nossos padrões morais? Pois é. As culturas humanas são ricas em sua diversidade, e isso às vezes assusta.

Mas o instituto “mãe” parece ser bem mais recorrente, senão universal, mesmo que muitos tipos de mães possam ser encontrados por essa aventura de se viver. Abrindo o livro Kaddish, do poeta norte-americano Allen Ginsberg, vejo os seguintes versos: “estranho pensar em você agora que partiu sem espartilhos & olhos, enquanto percorro o calçamento ensolarado de Greenwich Village na direção do Centro de Manhattan, meio-dia claro de inverno e passei a noite toda acordado, falando, falando, lendo o Kaddish em voz alta, escutando o grito cego dos blues de Ray Charles na vitrola”. Essas são as palavras iniciais de uma elegia para uma mãe morta. Naomi Ginsberg era judia, operária, pobre e comunista, filha de imigrantes russos, que ficou louca e morreu num manicômio, deixando o poeta assolado pelos seus próprios fantasmas.

Naomi Ginsberg não foi uma mãe de comercial de TV. Ela não era bonita, não era rica, não foi bem-sucedida profissionalmente, não conseguiu manter a sanidade mental exigida de uma mãe para criar seus dois filhos. Presenteou, ao menos o poeta Allen, com o a sombra da insanidade, do abismo e da fragilidade que assola cada um de nós, seres humanos lançados no mundo. Mesmo assim, três anos após sua morte, Ginsberg lhe dedicou um dos mais belos poemas escritos em língua inglesa na segunda metade do século XX. Neste mês de deusas inefáveis, de mães utópicas e ideais, de mulheres superpoderosas exalando candura e bondade inumanas, penso em Naomi Ginsberg e sua maternidade humana, demasiado próxima de nossos fracassos e de nossas perdas. Quantas Naomis andam por nossas avenidas esses dias? Quantas Naomis sucumbem ao peso de uma imagem inatingível de maternidade vendida nos outdoors dos shopping centers?

Mesmo sendo judia, como Maria (a mãe de Jesus), Naomi nunca conseguiu fiar-se em seu exemplo divino de abnegação e controle. Suspeito que deva ser um grande alívio para uma mulher ler o Kaddish, escrito pelo poeta em 48 horas de alucinações, trancado em seu apartamento, sob o efeito de um coquetel de anfetaminas. O poema é forte, com grande influência de Whitman, com uma tradição de oralidade que beira o êxtase das profecias bíblicas. A parte IV do livro é espantosa: “Oh, mãe, o que eu deixei fora, Oh, mãe, o que eu esqueci, oh, mãe! Adeus! com um comprido sapato preto (...) adeus, com tua barriga flácida, com teu medo de Hitler, com tua boca de histórias sem graça, (...) com teus olhos de Rússia, com teus olhos sem dinheiro, (...) com teus olhos de aborto, com teus olhos de ovários arrancados (...), com teus olhos de divórcio, com teus olhos de ataque, com teus olhos, só com teus olhos”. A mãe operária de Ginsberg é uma mãe que existe em cada esquina desta terra. Uma mãe de carne e de osso. Uma mãe que, louca, acossada por anjos e por sombras, conseguiu escrever um último bilhete, de dentro do manicômio, para o filho; diz assim: “a chave está na janela, a chave está na luz do sol na janela – Eu tenho a chave – Case-se Allen, não tome drogas – a chave está entre as barras, na luz do sol na janela”.

Divina é a mãe que consegue, mesmo sem voz, com todas as suas falhas e todos os seus fracassos, com toda sua humanidade, imprimir ao menos um poema no coração de seus filhos.

Publicado em 26 de abril de 2011

Publicado em 26 de abril de 2011

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