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Um estudo bibliográfico sobre a concepção mecanicista, o Movimento Bourbaki e a Matemática Moderna

Tarliz Liao

A concepção mecanicista

Galileu, Descartes e Newton, fundadores da ciência (séc. XVII), estabeleceram novos modelos de descrever o mundo e seus fenômenos. Segundo Braga et al. (2000, p. 25-26), muitas das obras escritas até esse século por causa desses novos modelos foram revistas. Outras foram escritas e denominadas Tratados; apresentavam as teorias de Newton, assim como as dos demais fundadores da ciência moderna, sem conceitos metafísicos. O Iluminismo foi o movimento que se iniciou no século XVIII e acompanhou a ciência como nova forma de ver o mundo tanto quanto de fundar uma nova razão. Esses são tempos caracterizados por maior preocupação com a formalização e rigor com a linguagem na ciência.

Capra (1982, p. 180) afirma:

O triunfo da mecânica newtoniana e do paradigma cartesiano nos séculos XVIII e XIX estabeleceram a Física como o protótipo de uma ciência “pesada”, pela qual todas as outras ciências eram medidas. Quanto mais perto os cientistas estivessem de emular os métodos da Física e quanto mais capazes forem [sic] de usar os conceitos dessa ciência, mais elevado seria o prestígio das disciplinas a que se dedicam [sic] junto à comunidade científica.

Ainda segundo Capra (1982), o paradigma cartesiano nos séculos passados explicava de modo objetivo muitos fenômenos que aconteciam; no entanto, vem se desvinculando das ciências sociais porque muitas vezes não envolve variáveis móveis, como valores culturais e ecológicos. Com isso, hão que ser considerados outros ramos do conhecimento, como o entendimento antropológico, no estudo de qualquer fenômeno.

Assim, é dessa crença na irrelevância de fatores de caráter antropológico no acontecimento de fenômenos, bem como de aspectos de rigor na linguagem científica, que derivam o Movimento Bourbaki e, posteriormente, o movimento da Matemática Moderna.

O Movimento Bourbaki

Segundo Boyer (1974), a Matemática do século XX é marcada pela abstração e preocupação com a análise de grandes esquemas. Em 1939 surgiu o primeiro volume de uma obra chamada Elementos de Matemática, assinado por Nicolas Bourbaki, que esteve em desenvolvimento até meados da década de 60. Na realidade, os autores da obra eram matemáticos que, sob esse pseudônimo, elaboraram um tratado que pretendia integrar de modo coerente e impecavelmente rigoroso os principais desenvolvimentos da Matemática: as Estruturas Fundamentais da Análise, com os subtítulos: Teoria dos Conjuntos, Álgebra, Topologia Geral, Funções de Variável Real, Espaços Vetoriais, Topologia e Integração.

Ainda segundo Boyer (1974), nesse grupo de matemáticos (quase todos franceses), que formou uma espécie de sociedade secreta, Jean Dieudonné e André Weil foram considerados os dois líderes mais ativos. Os trabalhos de Bourbaki caracterizavam-se pela adesão completa ao tratamento axiomático, a uma forma abstrata e geral, retratando uma estrutura lógica. O lema do movimento era “um objeto matemático é a sua definição”. Como consequência dessas ideias, surgiu um movimento conhecido como Matemática Moderna, que tentava adaptar a formalização do movimento bourbakista para o ensino.

Ao tratar de biblioteca digital, Souza afirma que esse movimento foi responsável pelas mudanças no ensino de Matemática em nível elementar e secundário em décadas posteriores e focava a abordagem dos conceitos somente através da definição matemática formal.

O início da Matemática Moderna

Para Kline (1976), o movimento da Nova Matemática ou Matemática Moderna surgiu nos EUA quando, após a Segunda Guerra Mundial, o governo norte-americano percebeu seu déficit em Matemática e Física perante a tecnologia de seus opositores, em especial a ex-URSS. A leitura que se faz do que é importante em Matemática algumas vezes tem influência de ordem política. Ainda segundo Kline (1976), isso aconteceu de modo evidente no período da Matemática Moderna nos EUA, quando se acreditava haver a necessidade de estudantes com maiores habilidades em Matemática e Física para uma possível corrida técnico-científica.

Na opinião de Kline (1976), intensificou-se a pressão para a modernização do ensino da Matemática e das Ciências, e o que se pretendia era uma nova abordagem da Matemática escolar que apresentasse essa disciplina de modo unificado, recorrendo à linguagem dos conjuntos e privilegiando o papel das estruturas, em especial das estruturas da Álgebra abstrata. Isso se traduziu numa visão formalista da Matemática, da linguagem simbólica das estruturas algébricas, rigor e na formalização precoce dos conceitos. A partir de uma atitude governamental, a reformulação do ensino se concentrou no currículo. O governo norte-americano entendia que o melhoramento do currículo iria coroar de êxito toda aquela questão da corrida técnico-científica, produzindo uma nova geração de cientistas.

Emprega-se, nesse ato, uma visão mecanicista: a crença de que a solução seria apenas alterar o currículo, sem entendimento do “macro mundo” da educação.

Esse fenômeno de mudança curricular aconteceu na mesma época em países europeus e logo depois no Brasil. Para Kline (1976), os matemáticos modernos defendiam as ideias do desenvolvimento lógico como estrada para a compreensão; da importância do rigor em Matemática e da precisão com a terminologia; e do simbolismo tanto quanto da ênfase na “Matemática pelo que ela representa” (Kline, 1976, p. 97). Os matemáticos modernos denominavam a matemática tradicional “Matemática pré-1700” e consideravam sua linguagem imprecisa e ultrapassada.

Segundo Kaleff (1989, p. 4),

a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (órgão que une EUA, Alemanha, países do Mercado Comum Europeu e os da Escandinávia) patrocinou em 1959 em Royaumont, na França; em 1960, em Dubrovnic; e em 1961, em Paris, seminários dos quais saíram as Sinopses para a Matemática da escola secundária e Matemática para físicos e engenheiros, publicadas pela Unesco e que nortearam as mudanças que se seguiram. (...) Esses seminários influenciaram principalmente os matemáticos franceses do grupo Bourbaki, sua preocupação com os conteúdos, com o aspecto formal, abstrato e rigoroso, com ênfase na precisão das definições e no uso cuidadoso da linguagem.

Segundo Kline (1976), o movimento da Matemática Moderna procurou usar conceitos e processos unificadores para reestruturar os diversos tópicos escolares de modo mais coerente nas novas aplicações dessa linguagem e eliminar alguns dos tópicos tradicionais considerados obsoletos. Pretendia-se ainda proporcionar aos alunos melhor compreensão das ideias matemáticas e, ao mesmo tempo, melhorar suas competências do cálculo. O estudo das estruturas unificadoras e o uso de uma linguagem comum poderiam ter, nessa perspectiva, influência benéfica no próprio domínio do cálculo.

A Matemática Moderna no Brasil

No último trimestre de 1964, aconteceu no Rio de Janeiro uma conferência promovida pela Comissão Interamericana de Educação Matemática (CIAEM) e pela National Science Foundation dos Estados Unidos; essas instituições decidiram por um programa de aprimoramento do ensino da Matemática nas escolas secundárias da América Latina. De acordo com o artigo Apresentadas as conclusões pela reunião de Educação Matemática, do jornal O Estado de S. Paulo,

participaram figuras representativas do ensino da Matemática deste hemisfério, unânimes em destacar a importância da reunião em face da contínua modernização que se processa no ensino da Matemática em todo o mundo (...), a modernização dos programas (...) o melhoramento dos programas e preparação dos professores. (...) Como convidados especiais do Brasil estiveram presentes os professores Lindolpho de Carvalho Dias, do IMPA, e Osvaldo Sangiorgi, do GEEM (27/12/1964).

De fato, as ideias modernistas começaram a tomar corpo em 1961, com a criação do GEEM (Grupo de Estudos em Ensino de Matemática). Nos anos seguintes, foram oferecidos cursos de férias para professores, custeadas por convênios do GEEM com o MEC.

Especula-se a imposição norte-americana para a mudança no ensino de Matemática no Brasil, pois na ocasião havia pouquíssimos representantes da comunidade matemática brasileira.

Segundo o pensamento modernista no Brasil, a Matemática Moderna era tida como a Matemática que ajudava a pensar, e acreditava-se que seu método iria revolucionar o ensino, como era noticiado no artigo A Matemática que ensina a pensar, do jornal Folha de S. Paulo: “as crianças vão aprender Matemática de uma forma muito mais lógica. Elas não farão mais cálculos – uma coisa mecânica –, que ficarão para as máquinas. Aprenderão tudo por meio da lógica” (7/12/1970). O artigo Matemática de hoje é de ensinar sem assustar, do jornal Diário Popular, afirmava:

A matemática deixou de ser o “bicho papão” dos estudantes, é a era da Matemática Moderna; (...) trata-se apenas de um quadro, pintado com cores diferentes, onde são colocadas algumas peças geométricas em determinados lugares, significando números (...). A criança irá aprender a raciocinar, terá a mente mais livre para criar soluções, não ficando tanto na dependência das contas (3/2/1965).

O declínio da Matemática Moderna

Ao tratar de biblioteca digital, Souza relata que, ao invés da substituição da Matemática tradicional pela Matemática Moderna, verificou-se uma simbiose entre as duas. As aplicações de Matemática no movimento da Nova Matemática desapareceram dos programas e dos manuais escolares.

Portanto, de acordo com Kline (1976), o simbolismo carregado e a ênfase em estruturas abstratas revelavam-se de difícil compreensão para os alunos. A preocupação com o rigor da linguagem dava origem a novos tipos de exercícios, muitas vezes estéreis e irrelevantes. E pior: as competências dos alunos no raciocínio, na resolução de problemas e domínio do cálculo não mostravam os desejados progressos, como noticiou o artigo A renovação da Matemática, do jornal O Estado de S. Paulo:

tal confusão não podia senão indispor os jovens, ao invés de despertar-lhes o interesse; impunham-se símbolos e conceitos sem que eles percebessem a necessidade de teorias novas e sem que tivessem um ponto de apoio na sua vivência anterior. E, deformação mais grave, os jovens eram levados a considerar que a Teoria dos Conjuntos era uma coisa, enquanto o resto da Matemática era outra (3/10/1974).

Conclusão

As informações abordadas até aqui sobre o processo do conhecimento científico e, em particular, matemático, do surgimento da ciência até a segunda metade do século XX, são fundamentais nessa proposta de compreensão dos fatos relativos ao ensino-aprendizagem de Matemática na atualidade.

Souza afirma que

encontramos a humanidade com uma crença muito forte no poder ilimitado da ciência e, em particular, nas estruturas matemáticas e nos sistemas lógicos. A posição de destaque está evidentemente presa a crenças em nível de senso comum de que a Matemática é exata e não permite contradições. Esta é encarada em nível popular como "Ciência" e, em nível educacional, como uma das possibilidades linguísticas. Essa concepção de Matemática tem implicações pedagógicas, e uma delas é constituída pela eliminação do fator sociocultural da clientela escolar, através do argumento de que a Matemática é uma linguagem universal e, portanto, neutra.

Assim, o alto teor de abstração e simbolismo afastavam a aprendizagem de matemática da realidade social e dos valores antropológicos da massa popular. Embora não haja raízes profundas da Matemática Moderna no ensino de hoje, as tendências atuais do ensino e da pesquisa em Ensino de Matemática buscam soluções tanto para o ensino de Matemática quanto para sua aprendizagem.

Referências

Boyer, C. B. História da Matemática. São Paulo: Edgard Blücher, 1974.

Braga, M.; Freitas, J.; Guerra, A.; REIS, J. C. Lavoisier e a Ciência no Iluminismo. São Paulo: Atual, 2000.

Capra, F. Ponto de Mutação – O impasse da economia. São Paulo: Cultrix, 1982.

Kaleff, A. M. M. R. Matemática Moderna. Sua origem e aspectos de seu desenvolvimento em alguns países ocidentais. Boletim Gepem, no 25, ano XIV, 2o sem. 1989.

Kline, M. O fracasso da Matemática Moderna. São Paulo: Ibrasa, 1976.

Souza, A. C. C. Biblioteca digital. História, sensos matemáticos e constructos reflexivos matemáticos: questões sobre educação matemática. Disponível em: www.educ.fc.ul.pt/docentes/jponte/sd/textos/PBGA3-Curriculo.doc. Acesso em 28/11/2003.

A Matemática que ensina a pensar. Folha de S. Paulo, 7/12/1970.

A renovação da Matemática. O Estado de S. Paulo, 3/10/1974.

Apresentadas as conclusões pela reunião de Educação Matemática. O Estado de S. Paulo, 27/12/1964.

Matemática de hoje é de ensinar sem assustar. Diário Popular, 3/2/1965.

Matemática Moderna no ensino: feliz encontro entre a Lógica, a Psicologia e a Pedagogia. O Estado de S. Paulo, 18/10/1964.

Matemática na União Soviética. O Estado de S. Paulo. 31/3/1968.

Publicado em 3 de maio de 2011

Publicado em 03 de maio de 2011

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