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UM DIA ‘DO’ CÃO

Claudia Nunes

Professora

Não vou contar tudo o que aconteceu no último dia 7 de abril de 2011 porque estou desgastada. Sem outra opção, só posso lembrar e lembrar. Ao invés de acordar para a vida, acordei para conhecer a morte. Os gritos no rádio e as imagens ininterruptas da TV se chocaram com a minha sensação diária de acordar para um novo dia cheio de promessas e novidades. Era um dia de terror. Um dia assustador. Dentro de uma escola, um ex-aluno entra, saca suas armas, mata 12 crianças e fere mais 13. Como assim? Dentro da escola? Será possível?

Vários pensamentos me assomaram e nada se alinhavava. Imagens e entrevistas se sobrepuseram e jogaram adrenalina negativa no meu despertar. Sou uma subjetividade do mundo, mas, em minha cama, sou uma professora que se projeta inutilmente ao espaço da tragédia e se pergunta: e agora? Só me pergunto isso porque é uma tragédia insuspeitada por todos, mas também anunciada há muito tempo e por muitas vozes técnicas e profissionais do ensino.

Não consigo ser outra coisa neste dia além de espectadora: eu não queria entender o como ou o que aconteceu; isso seria usado aos píncaros, de todas as formas positivas, iludidas, especializadas e torpes pelas diferentes mídias; eu queria entender o porquê de haver sangue inocente por todos os lados dentro de uma escola no horário de aula. As cenas eram textos que precisavam de interpretação, porque sua motivação estava nas entrelinhas deixadas debaixo de uma psicologia em distúrbio e dos tapetes governamentais anos a fio.

Antes da palavra justiça gritada diante de um fato selvagem consumado, temos a palavra insegurança anunciada em qualquer setor de nossa sociedade, principalmente dentro da estrutura física educacional. Mas novamente, depois da invasão, pronunciam-se os futuros remendos, tapa-buracos, velamentos ilusórios das promessas municipais e estaduais: e a população (pais) chorando convulsivamente.

Vou à internet e procuro saber sobre as condições de segurança da escola e surpresa: a escola tem sistema de segurança, seguranças, três portões de ferro antes de sua entrada e monitoramento por câmera nos corredores! Ou seja, não é uma escola padrão e mesmo assim pais crentes e tranquilos enterraram seus filhos-estudantes nos dias 8 e 9 de abril depois de os deixarem estudando para serem alguéns na vida.

Sinceramente estou de saco cheio disso! Sinceramente penso que os alienados são mesmo os sujeitos mais felizes da Terra! Sinceramente penso que a debandada de professores do serviço público é cabível nesta nossa sociedade de autoridades surdas e debochadas. Sim, porque só pode ser deboche.

Em Educação há muitas teorias, tipos de formação e múltiplas práticas que tendem a transformar certas pessoas em certos pensadores (teóricos) do contexto educacional como um todo. Mas em relação à escola e ao ensino temos atores educacionais heroicos que agem dentro de estratégias de guerrilha que os façam suportar desleixos, ignorâncias, violências urbanas, transtornos, ausências e desprezos institucionais e discentes todos os dias. E mesmo assim precisam se manter em formação, dentro de gestões controladoras e longe da escuta da realidade de seus discursos e contextos. Como assim?

São 15h, eu continuo em frente à TV e as informações se avolumam em tragicidade. Ainda assim, só penso em mim: como professora, o que eu faria? Não sei. Talvez me aproximasse mais desse garoto tímido em sua época de estudante... Talvez saísse correndo ao som dos primeiros tiros... Talvez juntasse meus alunos num canto e esperaria o tempo da morte... Talvez telefonasse para minha mãe avisando do ocorrido e pedindo ajuda... Não sei. Mas daqui, da segurança da minha casa, longe de tudo isso, eu só penso na insegurança e no precedente aberto também no Brasil. Agora é preciso ter cuidado diante da porta que se abriu à imensa comunidade de transtornados que ajudamos a criar em nosso estado e seus cérebros emocionais em disfunção. Agora todos sabem a extensão sem discussão e sem limites da expressão “escola aberta à comunidade”.

Nosso ministro da Educação, Fernando Haddad, vem à mídia e confirma a ideia de que a escola tem que ser aberta porque essa é a forma de a comunidade se integrar na sociedade, ou seja, entende a escola como espaço democrático de reflexão e da potencialização das aprendizagens de diferentes formas e com ampla liberdade. Muito bonito e... correto! Mas será que ele conhece os contextos socioeconômicos violentos em que muitas escolas estão inseridas? Será que ele já foi ameaçado pelo chefe do tráfico para abrir a escola e deixar passar seus comparsas e bagulhos? Será que ele já foi obrigado a fechar ou abrir sua escola a mando dos chefes do poder paralelo porque um deles morreu?

Houve um tempo em que a escola e seus professores tinham valor. A comunidade se apresentava com respeito a essas pessoas e espaços responsáveis pelo crescimento intelectual e pessoal de seus filhos. Hoje, diante de múltiplos motivos, dentro e fora da educação e do ensino, boa parte das comunidades e escolas estão em caminhos diferentes e cada um acredita que cada um deve cumprir suas obrigações, desde que um ou outro não atrapalhem a vida de um ou de outro. O discurso da democratização vira democratismo e a escola vira extensão de casa, onde tudo pode sem limites ou formalidades inerentes. É isso mesmo? Democracia não se pauta em regras para uma boa integração em sociedade? E numa visão mais cínica: os hospitais públicos estão abertos a todos? As instituições administrativas públicas estão abertas ao ir e vir de todos? Duvido! Não temos atendimento nem acesso decente ou educado!

Num dia, à noite, descobri em minha turma o namorado da minha aluna assistindo à aula. Lógico que solicitei sua saída e, graças a Zeus, fui respeitada e o namorado saiu. Mas como ele entrou? Entrou porque em várias escolas é o próprio diretor que faz a entrada e a saída das crianças. Abre a porta para tudo, observa corredores, recoloca alunos em sala porque literalmente ele está sozinho. Ou seja, onde está a equipe pedagógica e os profissionais administrativos? Ou são terceirizados ou são contratados ou simplesmente não existem! Cobra-se comprometimento sem comprometimento!

Meu coração está dolorido com a insensata morte de 12 crianças. Mas minha mente está quente com a perspectiva que se abriu. Segurança pública tornou-se uma expressão mentirosa ou, se muito, uma prática que alcança apenas alguns setores ou alguns lugares eleitoreiros. Como ficam agora as escolas de contextos conturbados e violentos? Dentro da sala de aula ou dentro da escola, professores podem (e devem) lidar com dificuldades de aprendizagem, distúrbios biológicos e transtornos de personalidade, mas também devem ser inspetores, porteiros, faxineiros etc.? Que loucura!

Depois de horas de exposição ao fato trágico, começo a ficar indignada com o descaso. É descaso em tudo! Por exemplo: se o ex-aluno tinha tantos problemas, como fica o processo de inclusão, de atendimento, de respeito ao aluno tão decantado pela pedagogia e pelo letramento de professores em geral? O ex-aluno era surtado (esquizofrênico) há muito tempo. Todo mundo sabia. Todo mundo via. E num dia de sol chegou ao ápice de sua loucura. Não o defendo, penso até que já foi tarde, apenas pergunto por atitudes que preveniriam o dia 7 de abril e começo a temer outro pensamento: numa sequência imparável, vários setores (familiar, escolar, religioso, estadual e municipal) não fizeram seu trabalho. Como podemos chamar isso? Precarização das condições de trabalho. Desta feita, é difícil reparar, por exemplo, na presença do bullying (nerd, feio, filho adotivo etc.) no meio escolar.

Depois do dia 7 de abril temos um levantamento detalhado de toda a vida pessoal (psicológica), educacional e funcional desse ex-aluno transtornado. Mas de que adianta? Só agora prestaram atenção a ele? Ele se foi com mais 12 inocentes. Acredito que essas informações, hoje, só alimentam a sanha de justiça dos pais órfãos dos filhos; fazem com que a população ataque os familiares inocentes desse perturbado; e justificam o despreparo das autoridades quanto à manutenção funcional das escolas. E daí? Qual é o próximo passo? Não sei...

Por conseguinte, sem respaldo, torcemos pelo aparecimento de heróis anônimos que se disponham a ajudar/salvar quem quer que seja. De novo, outro pensamento: um país que depende de pessoas certas nos lugares certos para diminuir ou aliviar as misérias ou insólitos alheios é um país que pode se entregar à administração estrangeira sem culpa.

Pessoas que se colocam em posição de morte para salvar são importantes, mas o estado/município não teria que se (nos) prevenir por meio de uma vontade política séria? Fazem-se tantos diagnósticos, estatísticas, levantamentos para, no final, estarmos à mercê apenas da solidariedade dos vizinhos, amigos e passantes? Como assim? Não há problema nisso, mas se assim é, paguemos impostos exorbitantes e juros altos aos vizinhos, aos heróis, às pessoas de bem querer que se disponibilizam a tudo por afeto e consciência cidadã. Ou não?

Enquanto na escola tudo for liberado em nome da integração sem aprofundamento e alguns profissionais de gabinete pensarem gestões para outros realizarem, sem capturar as dezenas de realidades escolares, vamos repetir, não a cena de exceção dessa tragédia, mas outras tragédias sem gritos e completamente ignoradas. Por exemplo: a chegada de muitos alunos ao 9º ano do Ensino Fundamental ou ao 1º ano do Ensino Médio sem saber ler nem escrever... O bullying tem sua importância na discussão social e pedagógica, mas... e o analfabetismo funcional?

Neste 7 de abril, ficamos todos desarmados, desarvorados, desanimados, desamparados com a facilidade com que se ceifou a vida de inocentes em processo de aprendizagem dentro de um espaço “seguro”.

É mais uma certeza que se esvai a cada engatilhamento da arma feito por esse ex-aluno com sérios problemas de personalidade; a cada vez que as autoridades nos incutem esperanças vãs quanto às melhorias em geral nas escolas; a cada vez que a loucura humana (mesmo com tons religiosos) se apresenta em torvelinho dentro de um puro nonsense.

Na madrugada, estou com Carlos Drummond. E agora, José?

Publicado em 10 de maio de 2011

Publicado em 10 de maio de 2011

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