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Branco de alma negra? Nada de pré-conceitos

Tatiana Serra

Sabe quando você acorda e parece viver um dia em que todos falam sobre o mesmo tema? Os mais místicos poderiam dizer que, em alguns dias, você acorda mais sensível e percebe com mais intensidade os sinais ao seu redor. Os terapeutas diriam que há momentos em que você faz uma reflexão sobre suas próprias questões e se espelha no que acontece no seu cotidiano. E acho mesmo que foi uma mistura disso tudo que aconteceu naquele dia.

Logo pela manhã, me olhei no espelho e vi que naquele dia meus cabelos haviam resolvido manifestar sua própria vontade – drama que só as cacheadas que não se renderam às progressivas e os cabeleireiros são capazes de entender. Nessas horas, lembro que, quando eu era criança, nem sempre gostava dos meus cabelos, muitas vezes cheguei a me render às toucas e até mesmo percebi preconceitos vindo de amigas e de pessoas da família. Mas hoje dou risada de tudo isso e, graças à miscigenação e ao leave-in, eu adoro meus cachos e sei lidar muito bem com eles e suas vontades.

Dicas de beleza à parte, quando cheguei ao ponto de ônibus, rumo ao trabalho, presenciei uma discussão entre uma senhora obesa e um rapaz negro que, acredito que por pura distração, não cedeu a ela o único lugar para se sentar no banco do ponto. O que poderia ser interpretado apenas como uma demonstração de falta de gentileza, que se resolveria com alguns gestos e palavras, se transformou numa “guerra”, indo da intolerância ao mais puro preconceito. Os dois começaram a se xingar tanto que já não dava mais para saber com quem estava a razão. Gorda, crioulo, vagabundo, esclerosada... De tudo eles falavam, menos do que realmente desencadeou aquilo. Minutos depois, enquanto os dois se “distraíam” com a briga, aproximou-se um deficiente visual que, com o auxílio de sua bengala, sentou-se no lugar vago do banco, e foi sua naturalidade que deu fim àquela discussão – que só aconteceu porque as pessoas se deixaram levar pelos olhos e não pelo tato em lidar com simples situações do cotidiano.

Para mim – e espero que para todos que estavam ali – aquele foi o primeiro aprendizado do dia. No caminho até o trabalho, cheguei a dormir em alguns momentos. Sempre preocupada em tomar conta da minha bolsa, costumo ficar atenta a quem senta do meu lado. Entre um cochilo e outro, me assustei com um rapaz que se sentou ao meu lado de maneira mais brusca. Ele tentava a todo custo tirar algo do bolso e aquilo me assustou. Segundos depois, vi que era um celular e um fone, mas, a essa altura, eu já estava segurando minha bolsa com firmeza e decerto estava com cara de assustada.

Quando me dei conta da cena, não sabia se eu fingia que estava dormindo ou se pedia desculpas a ele. Mas nada fiz, ou melhor, fui me questionando e chateando durante o engarrafamento que me levava ao trabalho. Eu agiria assim com qualquer um que se aproximasse dessa maneira? Afinal, vivemos tensos em nosso dia a dia, e tudo parece uma ameaça. Ou será que o fato de ele ser negro influenciou minha atitude? Pensar isso pra mim é horrível, porque não me considero racista, mas sei que há dentro de todos nós (ou da maioria de nós) um inconsciente ainda cheio de preconceitos. E eu sinceramente recrimino isso em mim.

A cada instante eu ia vendo que aquele era um dia em que tudo e todos seriam meu espelho; um dia de autoanálise, enfim! Ao chegar ao trabalho, liguei o computador e fui ler algumas notícias na internet. A primeira que me chamou a atenção foi uma entrevista com Jeferson De, diretor do filme brasileiro Bróder, que acaba de estrear nos cinemas e já passou por festivais nacionais e internacionais. O título era “Ter pele escura no Brasil é maravilhoso e doloroso”, e entendi que meu dia poderia terminar ali, logo depois que eu lesse toda a entrevista.

Conduzido pelo jornalista e escritor Luciano Trigo, Jeferson De fala sobre sua trajetória, sobre o filme e que não gostaria de ser visto como um cineasta negro, mas como um artista livre. Com menos violência e mais sentimento do que os filmes do gênero, Bróder conta a história do reencontro de três jovens amigos da periferia de São Paulo que têm a mesma origem e diferentes destinos.

Quando estudava Cinema na USP, Jeferson mergulhou na questão afro-brasileira, pesquisou a produção de diretores negros e, posteriormente, a representação feita pelo cinema brasileiro. Daí surgiu o manifesto Dogma Feijoada. Porém, quando perguntado de que forma a militância pela causa negra se relaciona com seu trabalho como diretor, Jeferson lamenta ser lembrado o tempo todo da sua melanina e lembra que a herança escravocrata recente ainda rege muitos comportamentos. “Senti isso principalmente quando passei a frequentar lugares onde as pessoas jamais esperavam me encontrar. Então, quando sento para escrever um roteiro isso tudo vem à tona. Mas o que eu mais temi foi ser óbvio e boçal. Em Bróder, por exemplo, quis trazer dramas humanos e não ser panfletário. Às vezes penso que isso, por mais simples que seja, causa surpresa nas pessoas. É como se muitos espectadores (negros e não negros) esperassem de mim pedras na mão e eu apresentasse flores”, afirma ele.

Comparando seus trabalhos, Jeferson diz: “o Dogma Feijoada é super atual. Ter pele escura no Brasil é paradoxalmente maravilhoso e muito doloroso. Em Bróder eu apenas tornei meu discurso um pouco menos óbvio, ou seja, a negritude de alguém não pode ser medida pelo tom de pele. Caio Blat (que representa um dos três jovens do filme) é um negro-branco, ou seja, um brasileiro à procura de uma identidade. Por isso ele interpreta um jovem chamado de Macu, referência explicita ao personagem Macunaíma, de Mario de Andrade”. E assim terminou a manhã daquele dia em que ganhei como presente a vontade de sair por aí dando flores a todos.

Publicado em 17 de maio de 2011

Publicado em 17 de maio de 2011

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