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Como nasce um pensador

Fábio Souza C. Lima

Historiador e filósofo, especialista em educação, professor

É mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito

Albert Einstein

Considerada uma das mais belas histórias da literatura mundial, o Mito da Caverna, alegoria criada pelo filósofo Platão (428 ou 427-348 ou 347 a. C.), conta a saga do primeiro homem a se indignar com a sua condição de ignorância. Num ato de rebeldia, o primeiro homem a se libertar das correntes que o prendiam a um mundo obscuro e sem perspectivas resolve saber. Daí em diante, todas as dificuldades que enfrenta retornam para ele novos conhecimentos do mundo e de si mesmo.

Resumidamente, o mito conta que alguns seres humanos, acorrentados e sem poder mover a cabeça no interior de uma caverna desde seu nascimento, são obrigados a olhar para o fundo do local onde vivem. Eles nunca viram outros seres humanos e, pela força das correntes, nunca, sequer, se viram. A saída da caverna fornece a eles apenas um diminuto raio de luz. E, numa sequência, atrás deles existem um muro alto, um corredor por onde passam outras pessoas a carregar coisas sobre suas cabeças e uma fraca fogueira, porém capaz de projetar as sombras das pessoas que estão passando no corredor. As sombras são projetadas para o fundo da caverna, tornando-se as únicas coisas que os prisioneiros veem durante sua vida.

Apesar de os prisioneiros nunca terem se visto, eles se comunicam, dando nomes a si mesmos e às sombras que estão vendo na parede do fundo da caverna. Imaginam que aquilo que ouvem são sons vindos das sombras, e não das pessoas ou das coisas que carregam por trás do muro.

Segundo Platão, essa seria a condição em que os homens se encontram graças às ideologias, aos valores e às ideias que, por muitas vezes, levam a uma postura preconceituosa, de crenças, de prejulgamentos e baseada nas aparências. O mundo desses prisioneiros baseia-se apenas no que veem, no que falam e ouvem, ou seja, nos sentidos, num mundo sensível. Contudo, esta não seria a condição da humanidade, posto que somos capazes de conhecer muito mais do que sombras e, principalmente, porque somos capazes de pensar, raciocinar, buscar a essência das coisas e produzir novos conhecimentos. É da condição humana o querer saber, o buscar o conhecimento.

Mas o Mito da Caverna não termina por aqui. Revoltado com sua condição, um dos prisioneiros começa a forçar as correntes e barras que o prendem. Seu esforço intenso o leva à soltura de grilhão após grilhão. Ele percebe o que está à sua volta, porém decide ir em direção ao feixe de luz. Enfrentando a dor de nunca ter usado seus músculos, ele escala o muro e enfrenta as dificuldades de passar por um apertado caminho até a saída da caverna. Ao sair, tem a sua visão ofuscada pela luz intensa do sol. Quer voltar para o interior seguro da caverna, mas se sente indisposto por conta do difícil caminho que teria de enfrentar. Acaba por se acostumar com a dor nos olhos e no corpo e fica do lado de fora da caverna.

O ex-prisioneiro se vê admirado com as cores, as formas que nunca havia visto, as pessoas, os novos assuntos; se espanta com os novos conhecimentos, mas, por um momento, se pergunta qual seria a realidade: o interior ou o exterior da caverna? A felicidade que experimenta ao conhecer responde e decide por ele: nunca mais quer habitar a caverna, mas não pode deixar de lamentar a sorte de seus companheiros que continuam na escuridão da ignorância. Segundo Platão e Aristóteles, a filosofia nasce em nossas mentes pelo espanto e admiração (thaumatzein) de cada homem com os saberes que estão diante de nós.

O ex-prisioneiro, mesmo maravilhado com o que acaba de conhecer, escolhe voltar à escuridão para resgatar seus companheiros e levá-los à luz. Depois de passar pelo difícil caminho até o espaço em que estava confinado, tenta contar aos prisioneiros as coisas que viu, porém eles o ignoram e debocham das suas palavras. Mesmo assim, o liberto insiste em levá-los à luz, mas os prisioneiros preferem a segurança dos conhecimentos estabelecidos e terminam por espancá-lo para que silencie.

O tema do homem que se liberta de suas amarras é frequentemente abordado por variadas linguagens que fornecem saberes, como acontece em músicas, livros, filmes etc. Podemos destacar que obras recentes como O show de Truman (Peter Weir, 1998); Matrix (Andy e Larry Wachowski, 1999) e A Ilha (Michael Bay, 2005) que, de forma quase didática, apresentam os dilemas de seus personagens e a constatação deles de que existe algo além do que estamos vendo.

No filme A Ilha, por exemplo, pessoas vivem dentro de uma caverna acreditando que estão sendo protegidos por um mal maior que se encontra do lado de fora. Seus habitantes são acorrentados pela parca educação que recebem, um saber insuficiente para desenvolver o pensamento crítico. Contudo, a personagem principal, vivida pelo ator Ewan McGregor, movido por sua curiosidade, mesmo desacreditado pelos amigos, descobre coisas novas que colocam em xeque o mundo em que vivia.

Em Matrix também encontramos esses elementos. Matrix como uma caverna que não expressa a realidade e a decisão de tomar a pílula vermelha para sair dela iniciam a trama. Ao sair, recém-liberto, o prisioneiro emprega os músculos, que nunca haviam sido usados. Seus olhos doem, pois também não haviam sido usados. E o enjoo do questionamento sobre o que é a realidade se coloca no vômito do personagem. No decorrer da trama, Neo é avisado de que os jovens têm maior possibilidade de serem libertos (pois o conhecimento dos jovens ainda está em formação), mas os mais velhos estão tão viciados no sistema que lutarão para defendê-lo. Mesmo assim, tal como fez seu professor, Morpheus, Neo se torna, nas sequências do filme, responsável pela libertação de várias pessoas.

Esta é a tarefa do liberto; esta é a tarefa do professor: libertar os alunos a todo custo, mesmo que sejam viciados e acomodados ao conhecimento que possuem. A promessa é de encontrar novos conhecimentos e ver o mundo de forma muito diferente. Um novo local onde os conflitos se tornam mais evidentes, mas onde há também a possibilidade de experimentar verdadeiramente a plenitude da vida.

Referência

PLATÃO. A República. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 2000.

Publicado em 17 de maio de 2011

Publicado em 17 de maio de 2011

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