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A morte de Buzz Cascudo

Mariana Cruz

Logo depois do Natal, uma amiga me chamou para ver o ritual da morte do Boi Cascudo, que fecha o ciclo anual da brincadeira de boi. Coisa linda de se ver. Mulheres, homens e crianças cantando, tocando e dançando em roda, como se todos fossem iguais, sem diferenças de idade e sexo.

Os passos sincronizados, o coro, a alegria nos rostos, a brincadeira, todos esses elementos e mais um monte de coisas que aconteciam lá naquela roda pareciam afirmar a existência de um elo unificador entre os homens. Era uma volta ao tempo da infância; não uma infância minha, particular, mas uma infância ideal, aquela infância de rua, de jogo de amarelinha, de cantigas de roda (que, embora muitos de nós não a tenhamos vivido, sabemos como é). Saias rodadas, coloridas, instrumentos passando de mão em mão, cantoria afinada. Tudo era dinâmico e harmônico: ora uma puxava um canto, ora outro, as danças mudavam, até mesmo a pessoa que entrava no Boi Cascudo variava. Ele, o Boi, ficava lá no cantinho; de repente alguém ia lá, se enfiava dentro dele, entrava no meio da roda e começava a dançar e brincar com as pessoas ao redor. O mesmo acontecia com a burrinha, a Kalu, mas quem a vestia eram as crianças. Os dois animais pintados e bordados, bonitos mesmo de se ver. As canções falavam do Boi, de Deus, dos lugares e de tantas outras coisas. Era a primeira vez que via aquilo. Minha filha de dois anos estava comigo. Ela e eu descobrindo aquela brincadeira de Boi ao mesmo tempo. Senti como se estivéssemos tomando parte – mesmo sem entender um monte de coisa – de algo que remonta à origem, ao fundamento de algo que vem de muito tempo e se atualiza, se renova cada vez que é cantada; se eterniza.

De início achei que minha filha ficaria com medo do boi. Normalmente ela não gosta de bonecos grandes, coloridos. Nem vai mesmo com a cara do Papai Noel (uma pena, pois o pai dela sempre se fantasia de Bom Velhinho e na festa de Natal que fazemos na pracinha, as crianças ficam eufóricas para tirar uma foto com ele, e ela não se aproxima nem para pegar os brinquedos que ele distribui). Um boi que dança , gira, vai para cima da gente... Imaginei que assustaria a pequena. Mas não. No começo ficamos um pouco de fora. Até que uma amiga a levou para perto do Boi, uma hora que ninguém o estava vestindo e então ela o acariciou, olhou bem de pertinho e assim foi criando intimidade. Depois estava totalmente integrada à brincadeira: dançou, tocou maracá e até vestiu a burrinha Kalu, feliz da vida. Não queria mais sair de dentro dela. Entrou verdadeiramente na brincadeira, o medo foi embora, era mais uma brincante.

Isso ocorreu no dia 26 de dezembro. Senti que meu Ano Novo começou ali. Lá foi a passagem. Os fogos de Copacabana que vi, cinco dias depois, foram só uns desenhos bonitos no céu. E o melhor foi que, mesmo sem planejar, possibilitei à minha filha o contato com essas coisas tão nossas, essas danças, rituais e brincadeiras cada vez mais ofuscadas por desenhos, brinquedos que fazem tudo, produtos importados que nada têm a ver com a nossa cultura. E como valeu a pena, como minha pequena gostou de ver o Boi!

Apesar de ela não gostar muito de assistir àqueles canais infantis na TV (ainda bem, pois acho meio assustadores os comerciais transmitidos por esses canais), ela vê muitos desenhos em DVD. Além disso, na escola e na pracinha, vira e mexe, aparece um amiguinho como um bonequinho ou fantasiado de algum personagem. Foi assim que ela conheceu o Buzz Lightyear, um dos brinquedos do filme Toy Story. De tanto que um amiguinho dela falava do Buzz, aluguei o DVD do filme para ela saber como era, assim como a levei para conhecer o Boi. Quero que ele passe a fazer parte da vida dela, como o Buzz faz.

O mundo está aí, para tudo. Assim como ela curte a Pequena Sereia, Ariel, ela gosta da Yara, mãe das águas, por causa do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Ela conhece o Peter Pan, assim como o Saci. Tal convivência harmônica entre esse dois mundos é possível e saudável, um não exclui o outro. Cheguei a tal conclusão justamente despertada por uma pergunta de minha filha enquanto assistíamos à morte do Boi: “mamãe, por que o Buzz morreu?”. Quem estava por perto não conteve o riso. “filha, esse é o Boi, e não o Buzz”; “por que o Buzz morreu?” repetia, como se não tivesse escutado minha correção. Afinal, estava preocupada com aquele boneco colorido estirado no chão, queria saber o motivo de sua morte e estava se lixando se a pronuncia estava certa ou não.

Sabia que eu tinha entendido a sua pergunta, queria uma resposta. Só. Para o vocabulário dela, “Buzz” é uma palavra muito mais próxima do que “boi”. Sua linguagem ainda está se formando; ela monta suas falas de acordo com as palavras que mais lhe são familiares (assim como ela chama a “bruxa má” de “bruxa mar”, que, convenhamos, é muito mais poético). Um dia ela vai saber que Buzz e o boi são coisas distintas, como também vai saber que o passado do verbo “fazer” na primeira pessoa é “fiz” e não “fazi” e que a bruxa não é “mar” e, sim, “má”. Sem rótulos, sem nada, o importante é ela conhecer o brinquedo de Boi e brincar com ele, mesmo que o chame de Buzz; os nomes, por ora, não são importantes.

Mas não custa nada aproveitar essas férias para viajar com ela para o campo: ter contato mais próximo com uns bois e umas vacas pode auxiliá-la a desfazer tão singela confusão.

P.S.: Ainda sobre essa questão de nomes, uns dias antes de irmos ver a morte do Boi Cascudo, minha filha ganhou uma boneca, que resolveu chamar de Catirina. Achei engraçada a invenção, pois ela não conhece ninguém com esse nome. Dia desses, quando fui ler algo sobre a origem das brincadeiras de Boi, vi que esse é o nome de umas das personagens principais no auto do Boi. Vai entender essa criançada!

Publicado em 11/01/2011

Publicado em 11 de janeiro de 2011

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