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O cinema e o debate acerca dos Parâmetros Curriculares Nacionais

Janaina Garcia

As artes sempre estiveram presentes na escola, mas de que maneira? No período entre a Semana de Arte de 1922 e a Reforma Educacional de 1971, a arte ocupava lugar subalterno no então chamado ensino primário e secundário. É significativo, nesse período, como demonstrou Duarte Jr. (2007), a existência da arte nos currículos seguida de adjetivações, como “artes industriais” ou “artes domésticas”. Na primeira disciplina, os alunos (do sexo masculino) aprendiam a confeccionar nas oficinas objetos “úteis”, como estantes, porta-copos, bandejas etc. Na segunda, as alunas eram adestradas nas “artes” culinárias, de bordado, costura etc. As cadeiras de formação musical, também chamadas “canto orfeônico”, continuavam a se restringir ao ensino do Hino Nacional. Todavia, há que se ressaltar a iniciativa de inúmeros educadores e artistas que procuraram, paralelamente ao ensino oficial, fundar e desenvolver as “escolinhas de arte”, nascendo a pioneira em 1948, no Rio de Janeiro, por iniciativa de Augusto Rodrigues. Observou-se ainda a célebre experiência (duramente reprimida) dos ginásios vocacionais, que, coordenados pela professora Maria Nilde Mascellani, deram à arte lugar ao lado das outras disciplinas (Duarte, 2007).

Desta forma, nota-se como a arte era considerada na escola: “como uma atividade supérflua, um babado, um acessório da cultura” (Salvador, 1971, p. 20). A arte, considerada um luxo e interpretada segundo os parâmetros europeus, destinava-se à formação e ao lazer das classes mais abastadas. Tais classes também nunca viram com bons olhos as manifestações artísticas populares, consideradas “primitivas” e “incultas”. O povo, que não tinha acesso à arte de elite, também era desencorajado e até reprimido em suas manifestações estéticas. Logo, sendo a tendência oficial de nosso ensino eminentemente pragmática desde os seus primórdios, a arte nunca teve nele papel que não fosse o de mero apêndice ou de preparação para atividades “superiores”.

Dentro desse contexto, é importante ressaltar que a mesma lei que profissionalizou a educação brasileira (5.692/71), transformando-a numa imposição de valores pragmáticos, tornou obrigatória a educação artística no primeiro e segundo graus. A disciplina implantada compreendia as seguintes áreas: música, teatro e artes plásticas, que deveriam ser desenvolvidas no decorrer da formação dos estudantes. Haverá aí alguma contradição, ou qual é o real papel dessa obrigatoriedade? Segundo Gadotti (1978), tal imposição desempenha a função de ideologia, ou seja, permite que se possa falar do caráter “humanizante” e “formativo” do nosso sistema educacional, que, tão voltado ao “homem integral”, até incluiu a arte em sua formação.

A obrigatoriedade da educação artística, nesse dado contexto, gerou uma situação caótica para o ensino das artes em âmbito nacional. A formação do professor polivalente em artes se revelou extremamente deficitária. É algo difícil exigir que um mesmo indivíduo possa, efetivamente, trabalhar com seus alunos em todas essas áreas distintas. Para tanto, haveria que se constituir uma equipe de trabalho com diferentes profissionais especializados numa só forma de expressão. Mas, ao não levar isso em consideração, a obrigatoriedade do ensino de artes naquele contexto fez com que os professores desenvolvessem atividades que não conheciam bem, apenas para cumprir o programa e as formalidades acadêmicas. Nessas condições, os professores de arte terminaram por desempenhar um papel decorativo no interior da escola, sentindo-se confusos quanto ao seu real valor e à necessidade para a formação do indivíduo.

A escola brasileira, funcionando muitas vezes em precárias condições, não dispõe de infraestrutura para abrigar espaço apropriado ao trabalho com a arte. Organizada ainda de maneira formal e burocrática, sua estrutura relegou a Educação Artística a uma disciplina a mais dentro dos currículos tecnicistas, com pequena carga horária semanal. Com a implementação dos PCN na LDB de 1996, acredito que a disciplina esteja tendo seu devido reconhecimento frente às outras disciplinas. Constata-se, assim, que a arte tem agora função essencial para construir aquilo que está fora dos limites da razão discursiva, reconhecendo a importância da arte na constituição do humano e estabelecendo para atividade de tal disciplina formação específica em cada subárea (música, teatro, dança, artes visuais e artes audiovisuais).

Mas, afinal de contas, o que são os Parâmetros Curriculares Nacionais?

Os PCN são definidos como referências de qualidade para a educação no Ensino Fundamental e no Ensino Médio em todo o Brasil (PCN Ensino Médio, volume único, 1997, p. 12). Ou seja, quem os escreveu pensou neles como uma referência curricular comum para todo o país. O documento de introdução aos PCN sustenta a necessidade dessa referência comum para toda a nação porque afirma que fortaleceria a unidade nacional e a responsabilidade do Governo Federal para com a Educação. Os PCN não se são currículo acabado e obrigatório, mas o seu nível de detalhamento acaba por transformá-los em referência obrigatória para a construção dos currículos do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. E, embora haja muitas citações sobre o respeito às especificidades locais (o que exigiria um trabalho de escuta e pesquisa por parte dos elaboradores do documento), a centralização é a marca dessa política educacional.

Com existência prevista no Plano Decenal de Educação (1993-2003), os PCN pretendem orientar as ações educativas no ensino obrigatório e, assim, melhorar a qualidade do ensino nas escolas brasileiras.

A orientação proposta nos PCN reconhece a importância da participação construtiva do aluno e, ao mesmo tempo, da intervenção do professor para a aprendizagem de conteúdos específicos que favoreçam o desenvolvimento das capacidades necessárias à formação do indivíduo. Ao contrário de uma concepção de ensino e aprendizagem como um processo que se desenvolve por etapas, em que a cada uma delas o conhecimento é acabado, o que se propõe é uma visão de complexidade e da provisoriedade do conhecimento. De um lado, porque o objeto do conhecimento é complexo de fato e reduzi-lo seria falsificá-lo; de outro, porque o processo cognitivo não acontece por justaposição, senão por reorganização do conhecimento. É também provisório, uma vez que não é possível chegar de imediato ao conhecimento correto, mas somente por aproximações sucessivas que permitem sua reconstrução (PCN Ensino Médio, volume único, 1997, p. 44).

O trecho citado expressa a escolha pela Psicologia e pelo construtivismo, embora o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas seja uma exigência do Art. 206 da Constituição (Azanha, 1996, p. 10).

Desta forma, com a LDB de 1996 houve maior reconhecimento do ensino das artes no Ensino Fundamental e principalmente no Ensino Médio, ressaltando seu sentido cultural, que vai se desvelando na medida em que os alunos do Ensino Médio participam de processos de ensino e aprendizagem criativos que lhes possibilitam continuar a praticar produções e apreciações artísticas, a experimentar o domínio e a familiaridade com os códigos e expressão em linguagens de arte.

O objetivo do PCN de Artes para o Ensino Médio é explicitar diretrizes gerais que possibilitem promover conhecimentos de arte aos adolescentes, jovens e adultos. Tais diretrizes buscam contribuir para o fortalecimento da experiência sensível e inventiva dos estudantes e para o exercício da cidadania e da ética construtora de identidades artísticas (PCN Ensino Médio, volume único, p. 42). Logo, conhecer arte no Ensino Médio significa que os alunos são capazes de se apropriar de saberes culturais e estéticos inseridos nas práticas de produção e apreciação artísticas fundamentais para o desempenho social do cidadão.

O PCN de artes se insere na área Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, subdividindo-se em música, artes visuais, dança, teatro e “ampliando saberes para outras manifestações, como as artes audiovisuais”(PCN Ensino Médio, volume único, 1997, p. 42). Observa-se a ênfase dada a essas áreas do saber como linguagem, isto é, linguagens artísticas e seus códigos correspondentes, e ao quesito tecnologia. Mas por que será que essa área vem acompanhada de “e suas tecnologias?” No texto de Carl Sagan encontramos bons motivos para incluir tecnologia nos currículos escolares:

Nós criamos uma civilização global em que os elementos mais cruciais — o transporte, as comunicações e todas as outras indústrias, a agricultura, a medicina, a educação, o entretenimento, a proteção ao meio ambiente e até a importante instituição democrática do voto — dependem profundamente da ciência e da tecnologia. Também criamos uma ordem em que quase ninguém compreende a ciência e a tecnologia. É uma receita para o desastre. Podemos escapar ilesos por algum tempo, porém mais cedo ou mais tarde essa mistura inflamável de ignorância e poder vai explodir na nossa cara (Sagan, 1996, p. 4).

A observação do cotidiano ratifica o que o texto afirma em relação ao inegável e crescente desenvolvimento tecnológico e sua incorporação ao nosso dia a dia nas duas últimas décadas do século XX. Ao propor que cada área de ensino se estruture considerando as tecnologias associadas a ela, o objetivo, segundo Sagan, é promover competências e habilidades que sirvam para o exercício de intervenções e julgamentos práticos. E aqui se inclui desde o entendimento de equipamentos e de procedimentos do cotidiano social e profissional até a avaliação de riscos e benefícios em processos tecnológicos; a avaliação de aspectos éticos envolvidos na produção; a aplicação do conhecimento tecnológico e a capacidade de ponderar sobre os usos dessa produção humana.

Resumindo, ao compor a área Linguagens, Códigos e suas Tecnologias no Ensino Médio, a arte é considerada particularmente pela articulação da tecnologia com aspectos estéticos e educacionais. Por ser um conhecimento humano articulado no âmbito sensível cognitivo, torna possível, por meio das artes, criar significados, mobilizar sensibilidades, modos de criação e comunicação sobre o mundo da natureza e da cultura.

É assim, ao desenvolver conhecimentos estéticos e artísticos dos alunos, que a disciplina Arte comparece como parceira das disciplinas trabalhadas na área Linguagens, Códigos e suas Tecnologias e nas demais áreas presentes no Ensino Médio. O PCN ainda prevê que

ao participar com práticas e teorias de linguagens artísticas nas dinâmicas da área Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, a disciplina arte deve colaborar no desenvolvimento de projetos educacionais interligados de modo significativo, articulando-se conhecimentos culturais apreendidos pelos alunos em Informática (cibercultura), Educação Física (cultura e movimento corporal), Língua Portuguesa e Língua Estrangeira (cultura verbal, trabalhando inclusive as artes literárias) (PCN Ensino Médio, volume único, 1997, p. 44).

Logo, para a realização de tais projetos educacionais são desejáveis diversas parcerias formadas entre os professores responsáveis pelas várias disciplinas. Sem perder a clareza das especificidades de cada uma delas, é possível ousar contatos entre as suas diversas fronteiras de conhecimento e entrelaçá-las quando for a serviço do alargamento cultural dos alunos. Trata-se de momentos de interdisciplinaridade ou de trânsito entre fronteiras de conhecimentos, objetivando uma educação transformadora, cuja maior responsabilidade se concentra na formação e identidade do cidadão.

Na medida em que tais fazeres são acompanhados de reflexões, trocas de ideias, pesquisas e contextualizações históricas e socioculturais, transformando conhecimentos estéticos e artísticos anteriores em compreensões mais amplas de conviver com a arte, fecunda-se a consciência de uma sociedade multicultural, em que o estudante confronte seus valores, crenças e competências culturais no mundo no qual está inserido.

Nesse sentido, o intuito do processo de ensino e aprendizagem em arte é levar os estudantes a humanizarem-se, como cidadãos inteligentes, sensíveis, estéticos, reflexivos, criativos e responsáveis, no coletivo, por uma melhor qualidade cultural na vida dos grupos e das cidades, com ética e respeito pela diversidade.

O PCN de Artes ainda prevê competências como “realizar produções artísticas e compreendê-las; apreciar produtos de arte e compreendê-los; analisar manifestações artísticas, conhecendo-as e compreendendo-as em sua diversidade histórico-cultural” (PCN Ensino Médio, volume único, 1997, p. 46). Analisando as competências expostas pelo documento, observa-se a importância da realização de produções artísticas, individuais e/ou coletivas nas linguagens da arte (música, artes visuais, dança, teatro e artes audiovisuais) tendo como foco a reflexão e a compreensão dos diferentes processos produtivos com seus diferentes instrumentos de ordem material e ideal como manifestações socioculturais e históricas. Logo, pretende assegurar a instância reflexiva em todas as etapas do processo de produção artística, em que se espera, com isso, evitar a falsa dicotomia que opõe teoria e prática, pensar e agir.

Nesse sentido, escolhi aprofundar a leitura dos PCN de Artes focando o cinema, cuja parte referente ao audiovisual (p. 45-46), está disposta em áreas como televisão, vídeo, telas informáticas e o cinema, em que prevê que os alunos adquiram competências como: fazer trabalhos artísticos como desenhos, pinturas, gravuras, modelagens, esculturas, fotografias, reprografias, ambientes de vitrine, cenários, artes gráficas (folhetos, cartazes, capas de discos, encartes e logotipos, dentre outros); saber fazer trabalhos artísticos em telas informáticas, vídeos, CD-ROM e home page, dentre outros, integrando as artes audiovisuais; analisar os sistemas de representação visual, audiovisual e as possibilidades estéticas e de comunicação presentes em seus trabalhos, de seus colegas e de outras pessoas; investigar em suas produções de artes visuais e audiovisuais, inclusive as informatizadas, como se dão as articulações entre os componentes básicos dessas linguagens – linha, forma, cor, valor, luz, textura, volume, espaço, superfície, movimento, tempo etc.; e analisar as intrínsecas relações de forma e conteúdo presentes na sua própria produção em linguagem visual e audiovisual, aprofundando a compreensão e o conhecimento de suas estéticas.

Problematizando tais competências previstas para serem adquiridas pelos estudantes, nota-se certo avanço em reconhecer tal linguagem (a audiovisual) não como ferramenta pedagógica, isto é, uma não instrumentalização de seu uso, tão frequente nas escolas. Por exemplo, frequentemente os professores projetam determinados filmes para explicar, introduzir ou debater os conteúdos (para citar alguns exemplos: Rainha Margot, para falar da inquisição de 1572; 1492, para falar do Descobrimento da América; Danton e o processo da revolução, para falar da Revolução Francesa). Isso não significa uma crítica em si, porém a instrumentalização do cinema parece ser a única aproximação possível, na educação, para a grande maioria dos professores.

Os PCN, ao priorizar a articulação entre a teoria e a prática, produziram avanços no ensino de Arte, de modo que ela deixasse de se reduzir ao equivoco de mera instrumentalização, como no caso do cinema. Entretanto, observo certo retrocesso no fato de as linguagens audiovisuais estarem todas juntas, pois cada uma constitui uma linguagem específica. Os PCN, por exemplo, colocam juntos cinema e televisão como linguagens audiovisuais. Deleuze (1985), por sua vez, explica que o cinema e a televisão possuem funções distintas. A televisão, segundo esse pensador, caracteriza-se por privilegiar a informação em detrimento da expressão artística, diferentemente do cinema, que privilegia a expressão artística.

Nessa mesma perspectiva, é de extrema importância ressaltar o trabalho do professor Alain Bergala. Quando foi chamado em 2000 por Jack Lang, o então ministro da Educação da França, para ser conselheiro do projeto La Mission, projeto que enfatizava a questão da arte na escola, o sistema escolar francês vivenciava o mesmo problema que o caso brasileiro: na proposta curricular francesa o audiovisual englobava cinema e televisão (Bergala, 2002). Compreende-se aqui uma mobilização do ministro de Educação francês por elaborar a aproximação dos estudantes com o mundo das artes, e sua preocupação em assistir a um filme como obra de arte, o que era tarefa dos cineclubes. Assim, o que a escola poderia fazer de melhor seria realizar tal aproximação não somente dos filmes como obras de arte mas também como obras de culturas distintas.

Segundo Bergala (2002), a aproximação entre televisão e cinema, no sistema educativo francês, fez mais mal do que bem. Tal ideia repousava sobre um pressuposto defensivo: o professor encarregado de ensinar cinema teria como missão primeira desenvolver o espírito crítico; consequentemente, isso significava desenvolver uma reflexão crítica a respeito da televisão. Tal aproximação demonstra muito mais uma instrução cívica do que de uma educação artística, conforme as palavras do próprio Bergala:

Eu tentei suprimir a palavra “audiovisual” de tudo aquilo que tocava especificamente o cinema e de reclamar por uma separação radical da aproximação do cinema como arte (inclusive daquilo que é levado em consideração pela televisão) e da aproximação crítica da televisão naquilo que ela possui de específico (Bergala, 2002, p. 52-53).

Para grande alívio de Bergala, o projeto La Missioncontratou uma conselheira para se encarregar da televisão como área específica. Desta forma, nota-se a crítica elaborada por Bergala, pois, se o cinema tem esse lugar, essa posição diferenciada entre os saberes, dentro do sistema educativo seria um engano supor que o professor que dá aulas de cinema pudesse também se encarregar de dar aulas sobre televisão, acarretando certa desqualificação de tal saber e da própria profissão docente. O erro seria achar que uma aproximação com o cinema daria ferramentas para armar criticamente os estudantes contra a televisão.

Bergala aponta, nesse sentido, dois perigos principais nessa aproximação entre cinema e televisão: primeiro, a televisão não é mais do que um meio e um suporte de difusão; segundo, a própria aproximação com o cinema dentro do ambiente escolar (Bergala, 2002, p. 53-54).

Analisando a primeira proposição, é impossível “etiquetar” a difusão da televisão e a do cinema juntas. Deve-se separar em dois blocos distintos o que é levado em conta do imaginário do cinema (filmes, filmes para televisão, documentários, clips, propagandas) que utiliza os códigos, os métodos de filmagem e de fabricação do cinema; e aquilo que é levado em conta pelos dispositivos televisivos: programas de variedades, jogos debilizantes de todos os tipos, talk-shows, jornais, face a face políticos e esportes transmitidos diretamente. Observa-se que existe um imaginário específico da televisão. Esses dois tipos de produção difundidos pela televisão só possuem em comum o meio como são distribuídos e a situação de recepção, mas eles reportam a imaginários e a posturas do espectador radicalmente diferentes. Logo, brinca Bergala, a análise de uma sequência, por mais inteligente que seja, de um filme de Orson Welles, por exemplo, jamais dará instrumentos adequados para analisar uma dessas emissões televisivas!

A segunda proposição, por sua vez, é uma crítica dessa aproximação do cinema dentro da escola – não como objeto de arte, mas como um objeto ruim, nocivo, perigoso, assim como é a televisão, de que se deve desconfiar das imagens. O ideal pedagógico de uma aproximação crítica mutila a experiência do cinema como arte. Não que não se deva ter esse tipo de aproximação com o cinema; acredito que seja válida e benéfica para os alunos, mas não deve ficar limitada somente a isso.

Entretanto, não se deve esquecer, como aponta Bergala (2002), que o dispositivo televisivo influenciou o cinema, e que foi no caso dos esportes que se deram as formas mais interessantes. A título de exemplo, cito uma passagem de Serge Daney, crítico de cinema:

O zoom se transformou na forma pela qual nós apreendemos o espaço. Foi um certo Frank G. Back que o inventou, em 1962, para filmar os esportes para a televisão. Foi Rossellini (por acaso) que fez a primeira utilização sistemática desse procedimento. O zoom não é mais uma arte da aproximação, mas uma ginástica que se compara àquela do boxeador que dança para não mais encontrar seu adversário. O travelling veiculava o desejo, o zoom difunde a fobia. O zoom não tem nada a ver com o olhar, é uma maneira de tocar com o olho. Toda uma cenografia, feita do jogo entre a figura e o fundo, se torna incompreensível (Daney, 1986, p. 71).

Mas o resto do “específico televisivo” se tornou um pesadelo: os programas infantis praticamente inexistem; os matutinos e vespertinos de variedades são verdadeiros shoppings digitais oferecendo toda sorte de produtos supérfluos; nos programas de entrevistas, os vaidosos entrevistadores, com sua ridícula presunção, falam/opinam mais que os entrevistados; nos informativos e noticiários, as informações são em geral distorcidas e tendenciosas, ou seja, sem isenção da opinião pessoal ou corporativa; os dominicais são sequências intermináveis do mais puro mau gosto que sobrevivem, em sua maioria, da exibição da desgraça e do sofrimento do povo por apresentadores aduladores e repetitivos; e, atualmente, a febre dos reality-shows mostrando desconhecidos em busca dos seus quinze minutos de fama num programa dito politicamente correto pela sua direção.

Nesse sentido, a frase de Godard citada no seu Histoire(s) du cinéma, com certo ar de melancolia em relação às artes visuais, cai como uma luva: “a televisão se tornou um espetáculo”. Por pensar dessa forma, o próprio cineasta, em sua ácida crítica aos meios de comunicação, e em particular, à televisão, em 1973, quando se mudou para Grenoble, sudoeste da França, criou o atelier Sonimage (ao mesmo tempo sua imagem e som + imagem). Nessa época, Godard descobriu o vídeo e mergulhou na experimentação formal, na qual a televisão figura como principal tema de análise e combate.

O mais expressivo fruto desse período é a série Six fois deux / Sur et sous la communication (Seis vezes dois/Sobre e sob a comunicação), realizada por Godard e Miéville para a televisão francesa em 1976. Como o título indica, são seis episódios divididos em duas partes de cerca de 50 minutos, exibidos em seis domingos consecutivos, sempre precedidos pela mensagem “Este programa não oferece as características habituais às nossas transmissões”. Formalmente, são filmes artesanais, nos quais é frequente o uso de longos planos fixos, pontuados com intervenções gráficas – primitivos efeitos de mesa de edição linear. Um dos episódios, por exemplo, é inteiramente composto por uma entrevista com o matemático René Thom, realizada por um Godard que se faz presente apenas pela voz e pela fumaça de seu charuto em quadro. A conversa gira em torno de uma certa teoria da catástrofe; Godard dirige o diálogo compondo uma insinuação de que o trabalho de um matemático está próximo da poesia ou da inocência da infância.

Em Six fois deux, Godard alterna diferentes métodos para questionar a TV, ora propondo simplesmente uma linguagem diferente, ora atacando-a nominalmente dentro de cada episódio. É o caso de um capítulo cortado da série, no qual Godard discute com Jean-Claude Philippe, o apresentador de um cineclube na TV. Trata-se, na verdade, de um nocaute humilhante, no qual o cineasta questiona o fato de Philippe apresentar os filmes com uma explicação introdutória para “ajudar o telespectador a compreender”. É um material desconcertante, em que o contraste entre a violência de Godard e a fragilidade intelectual de Philippe chega a provocar incômodo (ou risos) no telespectador.

A determinação de Godard em criticar a televisão aparece ainda em Meeting Woody Allen (1986), que é basicamente uma conversa de 25 minutos entre os dois diretores, montada por Godard. "Você teria o sentimento, como eu tenho um pouco, ou talvez muito mesmo, de que esse TV power afeta a sua criação, exatamente como a radioatividade pode ter uma ação nefasta sobre a saúde?”, pergunta a Woody Allen sem se preocupar muito com a resposta...

Assim, rapidamente, a televisão se torna, para os dois cineastas (Godard e Miéville), a oportunidade de um projeto de grande envergadura: adotar as ferramentas da TV para melhor denunciar seu conteúdo. Tratava-se de uma reflexão sobre os meios de comunicação, que denunciava “aqueles que asfixiam a verdade” para propor, em contrapartida, uma outra televisão, mais próxima das realidades sociais e mais crítica.

Nota-se aqui a aproximação com o pensamento de Bergala, em que a postura para um estudo da televisão estaria mais próxima da instrução cívica – isto é, de criticar tal veículo de comunicação – do que uma postura de educação artística.

No caso brasileiro, em relação à televisão, um documentário britânico intitulado Muito além do cidadão Kane, de Simon Hartog, exibido em 1993 pelo Channel 4, uma rede televisiva pública do Reino Unido, mostra as relações e influências sombrias do monopólio da Rede Globo no Brasil. A obra detalha a posição desse canal na sociedade brasileira, debatendo a influência do grupo, seu poder e suas relações políticas manipuladoras e formadora de opinião. O ex-presidente e fundador da Globo Roberto Marinho foi o principal alvo das críticas do documentário, sendo comparado a Charles Foster Kane, personagem criado em 1941 por Orson Welles para Cidadão Kane, um drama de ficção baseado na trajetória de William Randolph Hearst, magnata da comunicação nos Estados Unidos.

Dessa forma, quando se estuda televisão é necessário levar em consideração o poder que ela exerce nos sistemas políticos, sociais e culturais. Reconheço que, assim, os estudos sobre a televisão estariam muito mais voltados para uma Sociologia da Comunicação do que para os estudos de arte propriamente ditos.

Acredito que estas breves abordagens sirvam para iniciar uma discussão que enfatiza as diferenças entre a linguagem da televisão e a cinematográfica. Além de cada uma possuir seus códigos próprios para a construção de suas respectivas linguagens, nota-se como a linguagem televisiva está voltada para uma ótica capitalista inserida numa relação de consumo para com o espectador. E, mais ainda, numa relação que prevê a passividade do consumidor, passividade essa que tem relação com as iniciativas culturais, ao contrário do cinema, que promove, de certa maneira, a interatividade com o espectador, tentando levantar questões sobre o multiculturalismo nos ditos cinemas “não hollywoodianos”.

Nesse sentido, não considero coerente todas essas mídias (cinema, televisão, internet, vídeo etc.) serem estudadas juntas, pois cada uma delas possui sua linguagem específica, seus códigos específicos e funções diferenciadas. Defendo o cinema como arte; logo, que possui linguagem particular, linguagem artística, em que se percebem diferenças entre outras linguagens midiáticas que não são propriamente da mesma ordem, que provoca estranhamento, estimula afetos e desestabiliza. Logo, para pensar num possível currículo de cinema para a escola é necessário rever a situação atual na qual se encontra tal domínio e pensar possibilidades de desvinculá-lo de mídias como a televisão ou a internet, que possuem outras finalidades.

Através do estabelecimento dos PCN, tal proposta traz um gesto democrático ao estabelecer conteúdos mínimos para todo o país, reconhecendo devidamente o ensino das Artes e abrindo outras perspectivas, inclusive de pensar num possível e futuro currículo de cinema para que possa ser inserido em tal documento ao lado das artes visuais, teatro, dança e música.

Referências bibliográficas

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DUARTE JR., João Francisco. Fundamentos estéticos da educação. São Paulo: Papirus, 2007.

GADOTTI, Moacir. Educação e sociedade. São Paulo: Cortez, 1978.

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SALVADOR, A.D. Cultura e educação brasileiras. Petrópolis: Vozes, 1971.

Publicado em 24 de maio de 2011

Publicado em 24 de maio de 2011

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