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Erro de português: pobre tem que calar?!

Edwiges Zaccur

O que há por trás do livro criticado pela mídia global

Quem ainda duvida de que o ato pedagógico é sempre um ato político, como ensinou Paulo Freire, tem uma prova cabal nesse episódio em que a mídia detonou um livro que se valeu de exemplos da variedade popular da nossa língua.

Desqualificar ou compreender a lógica do outro – eis a questão. Trata-se de uma discussão que vem de longe e remonta ao processo de colonização, cujos efeitos não foram apagados, como bem perceberam intelectuais que promoveram a Semana de Arte Moderna de 1922. Oswald de Andrade, por exemplo, escreveu dois pequenos e densos poemas que indiciam essa questão. Num primeiro, intitulado Erro de Português, lamentou que a chegada de Cabral ao Brasil se desse debaixo de chuva: “fosse uma manhã de sol / o índio tinha despido o português”. Implicitamente o poeta denunciava que tantos saberes nativos construídos em séculos de cultura oral foram execrados como barbárie. Num segundo poema, Pronominais, trata indiretamente da variedade linguística, pondo em destaque a frase gramaticalmente correta “do professor, do aluno e do mulato sabido: Dá-me um cigarro”, em contraponto a outra, “a do bom branco e do bom negro / da Nação Brasileira”que falam cotidianamente: “Deixa disso camarada / Me dá um cigarro”.

Após esta pequena digressão, volto à questão do erro de português que estaria presente no livro alvo de uma verdadeira campanha difamatória empreendida sobretudo pela mídia global, secundada pela revista Veja neste mês de maio de 2011. Pessoas de elite que não leram o livro, não são especialistas em linguística e pensam que educação é terra de mãe Joana, onde todos podem se intrometer inconsequentemente, trataram de dar suas opiniões em concordância com a posição da mídia. Encontrei uma exceção na fala de Ana Maria Machado: “Custo a crer que isso tenha acontecido como tem sido noticiado”. Pelo menos a escritora se reservou o direito de duvidar, e, de quebra, usou uma forma coloquial em lugar do uso prescrito pela norma culta: “Custa-me crer que...” Na edição do dia seguinte, o referido jornal (guardião da norma culta mas não imune a pequenas concessões ao coloquial), desculpou-se pelo erro de português...

No entanto, o que lhe caberia era penitenciar-se pela prática de usar e abusar da pesada artilharia global para manipular, omitir, torcer os fatos e disseminar falsas verdades aos quatro ventos. Em nome do que é consenso – a obrigação que efetivamente a escola tem de ensinar a norma culta –, foi ardilosamente extraído um exemplo da unidade: “Falar é diferente de escrever”, apartando-o do contexto de uma explicação detalhada sobre as variedades linguísticas de caráter regional, socioeconômico e cultural, com ênfase no que diz respeito à variedade da classe popular.

Naquela unidade, a autora, em vez de preconceituosamente execrar a fala popular, buscou compreender essa outra lógica. A explicação apresentada vai ao encontro da que Monteiro Lobato apresentou no prefácio ao livro Contas de capiá: “Se pondo apenas o artigo no plural a frase fica perfeitamente clara, para que botar no plural também o substantivo, pensa com muita razão o jeca...”Lobato vai ainda mais longe ao insistir que esse mesmo princípio de economia linguística está presente no inglês, que não flexiona o verbo, pois o pronome já exprime perfeitamente o seu sujeito: I have, you have, we have. Quanto à concordância nominal, o inglês mantém o artigo no singular e pluraliza o substantivo. Ou seja, a língua inglesa também se satisfaz em marcar uma só vez o plural, descartando a redundância. Nas palavras de Lobato: “faz a mesma coisa que o jeca, só que invertido”. Mas quem se atreveria a chamar de ignorantes e burros os falantes da aristocracia inglesa cuja língua se vale do princípio da economia linguística? No entanto, palavras como ignorância e burrice aparecem repetidas vezes nas matérias publicadas, desqualificando a variedade popular.

Monteiro Lobato, com sua proverbial ironia, sai em defesa da fala do jeca no prefácio citado:

quem condena como coisa errada o modo de falar ou a língua do jeca revela-se curto do miolo. Os modos de variação de uma língua são fenômenos naturais, e não há erro nos fenômenos naturais. Erro é coisa humana (Lobato, 1964, p. 29).

Oswald de Andrade e Lobato se anteciparam aos estudos linguísticos que respaldam a afirmação de José Saramago: “O português existe em várias línguas”. No documentário Línguavidas em português, o escritor referiu-se ao que efetivamente o preocupa – a diminuição do vocabulário e da capacidade de expressão. Mas onde está a riqueza do idioma senão nas bibliotecas, nos acervos de tudo que já foi e está sendo escrito em nossa língua? Recomendo o referido documentário a todos que se interessem por gente que vive e trabalha, ama e sofre, conversa e sonha em português nos diferentes quadrantes no planeta. Mas o recomendo também àqueles que insistem em pensar a língua como coisa em si mesma, apartada dos seus donos, os falantes, e das relações, sobretudo as de poder. Poderiam, quem sabe, oxigenar suas ideias com a fala de Mia Couto: “a língua portuguesa namorou” e se deitou em diferentes sítios do planeta e se enriqueceu “à medida que se mestiçou”.

Como se percebe, essa discussão vai muito além de simplesmente ensinar a norma culta. Impõe-se indagar: para que, por que e como ensinar a norma culta? Nesse ponto termina o consenso e se anuncia o conflito. Há quem ensine a norma culta como forma de desqualificar a forma “errada” do povo, de hierarquizar e separar os que contam dos que não são levados em conta. Ou como forma de silenciar aqueles bárbaros que falam uma algaravia destituída de lógica e precisam antes aprender a língua de poder se quiserem sair da invisibilidade. Mas há também os que lutam para ensinar a norma culta, sim, para emancipar e ajudar o povo a aprender a língua de poder para brigar melhor, para exercer a cidadania plena, direito de todos os que vivem e pensam em português. Para tanto, é preciso se apropriar da língua legitimada, ser poliglota da própria língua e, sobretudo, dispor dos mesmos instrumentos dos que a utilizam para cercear os direitos do povo.

A campanha patrocinada pela mídia global evidencia o quanto perdura entre nós o status quo colonialista, bem ao estilo Justo Veríssimo: “eu odeio pobre”.No caso do livro apontado como “errado”, além de negar a fala popular, a mídia estendeu sua maciça campanha de desqualificação à autora por explicar aos jovens e adultos a natureza do preconceito de que são vítimas. Para não deixar dúvida do que trata o livro em questão e restaurar o direito do leitor à informação, cito um trecho em que, depois de discutir variedades linguísticas, a autora destaca a necessidade de aprender a norma culta:

Reescrevendo a frase no padrão da forma culta teremos:

Os livros ilustrados mais importantes estão emprestados.

“Você pode estar se perguntando: Mas eu posso falar: os livro? Claro que pode. Mas fique atento, porque, dependendo da situação, você pode ser vítima de preconceito linguístico”.E conclui: “O falante, portanto, tem de ser capaz de usar a variante adequada da língua para cada ocasião”.

Volto à frase do título: o pobre pode falar a língua que trouxe do berço? Cabe indagar quem se beneficia da desqualificação da população pobre, vítima da histórica exploração a que se soma o preconceito linguístico. Será que, por acaso, as vítimas da injustiça social ainda virão a ser responsabilizadas pelo atraso do Brasil? Num país em que as vítimas são culpabilizadas, a sociedade que produz tanta injustiça social e tanto analfabetismo, inclusive o político, dorme o sono dos pretensamente justos e se absolve.

Eis que o articulista Merval Pereira (O Globo, 17/05/2011, p. 4) fez ao público o grande favor de explicitar com todas as letras o que há por trás dessa campanha liderada pelo jornal em que escreve. Ao problematizar a distribuição gratuita do livro, levanta duas hipóteses. Na primeira o MEC estaria “pretendendo fazer uma política a favor dos analfabetos e ignorantes”, o que agravaria sua condição. Na segunda, haveria uma tentativa de justificar o modo como o presidente Lula fala, o que seria um “agravante ao ato criminoso de manter os estudantes na ignorância”. Eis o cerne da questão política: o que move a campanha contra o livro, no fundo, seria uma campanha contra o presidente-operário, bem alfabetizado politicamente, por ensinar, pelo seu exemplo, que o povo tem o direito a pronunciar a sua palavra.

Curiosamente, o assunto do livro saiu da mídia à medida que surgiram falas de peso no âmbito dos estudos linguísticos, como o pronunciamento da Associação de Linguística Aplicada do Brasil (Alab):

Assim, ao contrário de contribuir para uma agenda partidária de manutenção da ignorância, acusação levianamente imputada ao livro e ao PNLD (e, portanto, aos estudiosos da linguagem), os “erros” em questão, se interpretados contextualizadamente e explorados de forma interessante em sala de aula, contribuem para o desenvolvimento da consciência linguística, mostrando que, apesar de todas as variantes serem aceitáveis, o domínio da norma culta é fundamental para a efetiva participação nas diversas atividades sociais de mais prestígio. Neste sentido, a Associação de Linguística Aplicada do Brasil expressa seu repúdio à atitude autoritária e uníssona de vários veículos da imprensa em relação à concepção deturpada de “erro” e convida seus membros a se posicionar nesses veículos de forma mais efetiva e veemente sobre questões relacionadas a ensino de línguas e políticas linguísticas, construindo leituras mais situadas, persuasivas e plurilíngues.

De minha parte defendo veementemente que, em vez e desqualificar a variedade popular, deve-se estimular a presença viva da literatura em nossas salas de aula como um espaço especialmente emancipatório e rico onde a palavra, como sublinhou Ziraldo em O menino quadradinho é (instrumento de escavação) e Lavra (mina de todas as riquezas). As regras de concordância, regência e outras que-tais poderão ser apropriadas por imersão na boa leitura que, sendo bela e profunda, ao mesmo tempo comove e fala tanto ao sentimento como à razão. Nesse sentido, seria formidável um viradão literário, por exemplo, com atores e atrizes lendo belos poemas e contos, mas isso não interessa à mídia global, pois ajudaria o povo a levantar a cabeça e nunca mais se deixar colonizar pela ideologia do opressor. Afinal, se a maioria explorada se der conta desse jogo e usar a seu favor as armas do outro, inclusive a norma culta, nossa história poderá tomar outro rumo e talvez possamos nos aproximar da utopia de um outro país e um outro mundo possíveis, com mais igualdade e menos injustiça social.

Referência

LOBATO, José Bento Monteiro. Obras completas v. 13. São Paulo: Brasiliense, 1964.

Publicado em 31 de maio de 2011

Publicado em 31 de maio de 2011

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