Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

As teorias do cinema e o contexto escolar

Janaina Garcia

Mestre e doutoranda em Educação; professora de Sociologia

Quando se introduziu, na história do cinema, a expressão “linguagem cinematográfica”, tratou-se de postular a existência do cinema como meio de expressão artística, com o propósito de provar que o cinema era uma arte; logo, que deveria ser dotado de uma linguagem específica, que fosse, por exemplo, diferente da literatura e do teatro.

Segundo Aumont (2001), o que está em jogo é saber como o cinema funciona em relação às outras linguagens e sistemas expressivos. Dessa forma, a ideia constante dos teóricos é de opor toda tentativa de assimilação da linguagem cinematográfica à linguagem verbal.

Os primeiros teóricos do cinema a tratar de tal oposição foram Ricciotto Canudo, Louis Delluc e uma grande parte dos formalistas russos, entre eles Lev Koulechov e Sergei Eisenstein, no início da década de 1920. Entretanto, foram os estes últimos que tiveram papel decisivo nas concepções fundadoras da linguagem cinematográfica (Aumont, 2001).

O primeiro teórico que abordou a questão do estudo do cinema como linguagem foi o húngaro Bela Balázs (Aumont, 2001). Aquele autor, em seus dois últimos livros – L’esprit du cinéma (1930) e Le cinéma, nature et évolution d’un art nouveau (1948) – partia da questão de como e quando a cinematografia se transformou numa arte particular, empregando métodos essencialmente diferentes daqueles empregados no teatro, constituindo-se, assim, em outro tipo de linguagem formal.

Todavia, em 1927, com Poetika Kino, um tipo de revista/manifesto com cinco ensaios publicados por seis membros do Opoiaz (sociedade de estudos da língua poética), na antiga União Soviética, a hipótese do “cinema-linguagem” foi mais explicitamente formulada. Em seu artigo, Youri Tynianov precisava que

no cinema, o mundo visível é dado não como tal, mas na sua correlação semântica, senão o cinema não seria nada mais que uma fotografia viva. O homem visível, a coisa visível só são elementos do cinema-arte quando eles são dados em qualidade de signo semântico (Aumont, 2001, p. 116).

Essa correlação semântica é dada através de uma transfiguração estilística: a correlação dos personagens e das coisas na imagem, o ângulo da tomada e a perspectiva nas quais elas são feitas, a iluminação... Tudo isso possui importância colossal. É pela mobilização desses parâmetros formais que o cinema transforma o seu material de base, a imagem do mundo visível, em elemento semântico de sua própria linguagem.

Logo, para os formalistas russos não há arte e, consequentemente, linguagem cinematográfica se não houver transformação estilística do mundo real. Essa transformação só interfere em ligação com o emprego de certos procedimentos expressivos que resultam da intenção de comunicar uma significação. O sentido não basta; precisa acrescentar a significação. Como diria Christian Metz (1972), trata-se apenas da semiologia: aquilo que se chama de sentido do acontecimento narrado pelo cineasta teria sido, de qualquer modo, sentido para alguém. Mas pode-se diferenciar, do ponto de vista dos mecanismos expressivos, o sentido dito “natural” das coisas e dos seres e a significação premeditada.

Dessa forma, nota-se um consenso entre os teóricos da área, de que a aparição da linguagem cinematográfica se deu com a progressiva descoberta de procedimentos de expressão fílmica, pois o cinema, no seu início, não era dotado de linguagem; era somente a reprodução do real. Entretanto, as teorias do cinema nos ajudam a pensá-lo de diferentes formas para além da linguagem, como ficou acordado em consenso pelos primeiros teóricos.

No Dicionário teórico e crítico de cinema, elaborado pelos franceses Jacques Aumont e Michel Marie (2009), professores da Universidade de Paris III, sugerem-se seis maneiras de entendê-lo. Introduzirei, brevemente, cada uma delas.

A primeira maneira seria o cinema como reprodução ou substituto do olhar (Aumont & Marie, 2009). Embora os autores do dicionário não o citem, talvez essa teoria remontasse à ideia bakhtiniana de excedente de visão (Bakhtin, 2003, p. 21). Enxergamos nas pupilas de outrem o reflexo do que ele está olhando, incluída a nossa própria imagem, pois no olhar do outro se vê tudo aquilo que não alcançamos ver com os nossos próprios olhos. Dessa forma, começa-se a refletir acerca do que sucede quando estamos olhando nos olhos de outra pessoa; tal teoria permitiria imaginar as possibilidades que temos de conhecer outras culturas, outras ideias, outras formas de ver o mundo, de acordo com o olhar que cada filme singularmente significa. “Olhar outros lugares, outros tempos, sentir e pensar como outros pensam e sentem a vida” (Fresquet, 2007).

Uma segunda maneira proposta pelo dicionário seria pensar o “cinema como arte” (Aumont & Marie, 2009), logo, como sistema de formas. Diversos cineastas consideraram o cinema como síntese das artes, como herdeiro de todas as artes, como arte do espaço e do tempo (Aumont, 2004). Nessa perspectiva, o cinema absorveria nele as principais questões estéticas das artes tradicionais até a sua aparição. Logo, para esses autores o cinema como arte não se caracteriza pela sua fidelidade de reprodução do real; ao contrário, sua riqueza consiste na possibilidade de se distanciar dessa reprodução, criando formas que lhe são próprias e que não reproduzem formas reais. O pensamento desse grupo de teóricos poderia ser resumido em uma frase: “o cinema é uma arte total que contém todas as outras, que as excede e transforma” (Aumont & Marie, 2009, p. 144).

A terceira possibilidade descrita no dicionário é a do “cinema como linguagem” (Aumont & Marie, 2009), que começou a ser abordada a partir da década de 1960 com certo rigor, tendo como principal expoente teórico Christian Metz. Esse autor, para compor sua teoria do cinema como linguagem, tomou por base a Linguística. Defende o cinema como “linguagem artística”(Metz, 1972, p. 75), mais do que um veículo específico, pois nasce das várias formas de expressão que não perdem inteiramente suas leis próprias (a imagem, a palavra, a música...) e que têm por obrigação compor em todos os sentidos da palavra. Sua força (ou fraqueza) consiste em englobar expressividades anteriores: o elemento verbal, os ruídos, a música, a imagem... Dessa maneira, o cinema se apresenta como linguagem porque possui códigos específicos que são dotados de significado; logo, dotados de linguagem fílmica: conjunto de modalidades de língua e estilo que caracterizam o discurso cinematográfico. O cinema possui sintaxe: relacionamento dos planos, das cenas, das sequências. Possui elementos básicos de sua linguagem: a planificação (os diversos tipos de plano – geral, de conjunto, americano, médio, close...); os movimentos de câmera (travelling, panorâmica...); angulação (plongée, contre-plongée...); e a montagem.

Considerar o cinema como linguagem acarreta algumas complicações, pois existem várias formas de linguagem, como a que o dicionário citado explicita, por exemplo, do “cinema como escrita”.A escrita é um processo que supõe fundamentalmente dois movimentos: lembrar e inventar. Precisamos de memória para escrever, e no cinema existe a possibilidade de ativar lembranças da memória, de inventar o passado e o futuro. O cineasta italiano Píer Paolo Pasolini considerava o cinema como “língua escrita da realidade”(Aumont, 2004), isto é, nossa linguagem primeira é nossa presença, realidade dentro da realidade.

A quinta forma de entender o cinema proposta por Jacques Aumont e Michel Marie seria a do “cinema como modo de pensamento” (2009). Tal ideia estaria nas bases do pensamento do filósofo Gilles Deleuze, que observa na história das formas cinematográficas o desencadeamento sucessivo de grandes funções mentais – o imaginário e a memória – em um modo absolutamente diferente daquele do nosso psiquismo, descrevendo o cinema, portanto, como uma máquina de pensar. O cineasta que mais se aproxima de tal forma de cinema é o francês Jean-Luc Godard, que se expressaria de maneira em que é possível identificar pensamentos, texturas, cores, culturas, cheiros, sentimentos, vivências em forma de imagem.

A sexta e última maneira de pensar o cinema proposta pelo dicionário seria o “cinema como produção de afetos e simbolização do desejo” (Aumont & Marie, 2009). A produção de afetos é gerada espontaneamente ao se assistir a alguns filmes e acontece o que se poderia denominar experiência estética. A própria palavra estética, que deriva do grego, significa sensação. Logo, são possíveis, em nós, diversas sensações que se despertam diante de algumas cenas ao longo de um filme. A partir da experiência estética, podemos simbolizar o desejo, isto é, alguns filmes permitem diversificar nossos desejos, abrindo novas possibilidades reais ou fantasiadas.

Após a breve exposição de tais teorias do cinema, é possível pensá-lo de várias formas para além da linguagem propriamente dita, pois isso é, desde seus primórdios, um consenso entre os teóricos que compreenderam o cinema enquanto linguagem artística específica.

De tais teorias do cinema, quero destacar o “cinema como arte”, apoiando-me nos estudos de Alain Bergala, e o “cinema como reprodução ou substituto do olhar”, de Jacques Aumont e Michel Marie, dialogando com os estudos acerca da obra de Bakhtin, propostas pelo teórico de cinema norte-americano Robert Stam, que considero muito interessantes para uma aproximação do cinema em contexto escolar.

Bergala, em seu livro L’hypóthèse cinéma, de 2002, relata a experiência da implementação do cinema como disciplina nas escolas francesas, período este em que era consultor do projeto La Mission. Tal projeto, como já mencionado, tinha o propósito da introdução das artes nas escolas, enfatizando a experiência artística.

Mas como se daria essa experiência artística em contexto escolar? A hipótese teria como base o que Bergala chamou de “pedagogia das artes” (Bergala, 2002, p. 26), cujos objetivos seriam reduzir as desigualdades, revelar nas crianças e adolescentes outras capacidades de sensibilidade e desenvolver o espírito crítico. Entretanto, no que diz respeito à experiência pedagógica concreta, há o discurso dos que estão ligados à prática e se chocam todos os dias com a realidade, encurralados entre as resistências de hierarquia e as dificuldades encontradas na sala de aula. Para resolver tal impasse, toda pedagogia deveria ser adaptada às crianças e aos jovens aos quais ela visa.

Logo, a hipótese da pedagogia das artes teria a questão da arte como algo que vai ao encontro da alteridade. Para desenvolvimento de tal hipótese, foi necessária a distinção entre a educação artística e o ensino artístico (Bergala, 2002, p. 29). Essa separação entre educação artística e ensino artístico não deixou de perturbar os professores das disciplinasartísticas tradicionais no contexto francês onde tal proposta educacional foi aplicada e de afirmar o seguinte: a arte não pode depender unicamente do ensino, no sentido tradicional de disciplina inscrita no programa e na grade curricular dos alunos, sob a responsabilidade de um professor especializado, sem ser amputada de uma dimensão essencial.

O interessante a reter dessa proposta de Bergala, nessa diferenciação entre educação artística e ensino artístico, é sua força e sua novidade de convicção de que toda forma de aprisionamento nessa lógica disciplinar reduziria o alcance simbólico da arte e sua potência de revelação, no sentido fotográfico do termo. Para Bergala, “tanto para os alunos como para os professores, ela deve ser, na escola, uma experiência de outra natureza que não a do curso localizado” (Bergala, 2002, p. 30).

Nesse sentido, quando Bergala fala de diferença entre educação artística e ensino artístico estabelece uma diferença de postura entre um professor de Educação Artística e um professor de ensino artístico. Mas que diferença seria essa? Bergala aspira a que todo professor torne-se um bom passeur (Bergala, 2002, p. 44), referindo-se ao conceito proposto por Serge Daney (1944-1992, francês, crítico de cinema), que consiste em entender o agente de transmissão como aquele que dá algo de si mesmo, que acompanha na barca ou pela montanha aquele a quem deve fazer passar, que corre os mesmos riscos daqueles que tem sob sua responsabilidade. Para o professor de Paris III, fechar as crianças e jovens dentro de uma sala de aula e entupi-los de teorias fundamentais não é a melhor maneira de lutar contra o iletrismo. Isso seria esquecer uma verdade primeira, que “somente o desejo instrui” (Bergala, 2002, p. 77). A pessoa só aprende aquilo que deseja aprender. Esse princípio está presente em toda criança, mas a escola não percebe que o desejo dos alunos já está conformado ao princípio social da realidade: tem que saber ler, escrever, contar por diferentes motivos. E aqui nota-se uma das grandes desigualdades escolares: aqueles que têm razão para aprender e aqueles que, por causa de seu ambiente familiar, social e cultural, não têm. Aqueles que já têm um futuro e aqueles que só têm um presente caótico.

Diante tais situações, o que pode fazer então o professor em sala de aula? Investir no seu aluno, no potencial que ele possui, construindo um espaço de troca recíproca, assegurando a ele um lugar de reconhecimento em seu meio social. Assim, essa criança ou esse adolescente, sentindo-se respeitado e amado poderá investir em si próprio, no desejo de pensar e aprender. Esse seria o desempenho do passeur proposto por Bergala em direção ao ideal de professor de Educação Artística e não o professor de ensino artístico. Um professor que acompanha na busca e corre junto o risco de expor o aluno ao seu próprio gosto, a suas escolhas e preferências, trocando o lugar simbólico do educador.

Essa nova maneira de encarar a arte na escola possibilita uma nova postura do professor, exigindo dele a disponibilidade de pesquisar, de acompanhar e de colaborar no aprendizado crítico e criativo do estudante, o que frequentemente o coloca diante de situações imprevistas, novas e desconhecidas. Nesse contexto, exige-se que professores e alunos compartilhem de fato o processo de construção, e não apenas o de reconstrução e reelaboração do conhecimento.

Dessa forma, entende-se que a proposta de ensinar cinema em contexto escolar é fazer uma experiência de criação. Para iniciar uma prática criativa, uma experiência direta e pessoal, trata-se de uma diferença de exigência entre ensinar, no sentido clássico, e iniciar. Segundo Bergala (2002), é de uma experiência de sujeito a sujeito que se opera um gesto de criação, para o qual é indispensável ter corrido o risco, ao menos uma vez na vida, de escolher sua posição, seu eixo, sua distância, seu enquadramento; de decidir o que se deve ou não dizer ao ator, seu deslocamento, sua adequação de interpretação, de fixar a velocidade do movimento de câmera etc. Bergala define o que deveria ser uma abordagem do cinema como arte: “aprender a tornar-se um espectador que vivencia as emoções da própria criação” (Bergala, 2002, p. 35).

Logo, para que tal experiência de criação ocorra em contexto escolar, Bergala propõe uma metodologia, chamada “pedagogia da criação”(Bergala, 2002, p. 128). Essa pedagogia pode começar antes mesmo da passagem ao ato, desde a fase das primeiras aproximações com o filme. Isto é, lendo o filme, assumindo a perspectiva do autor, não apenas como espectador. O ideal seria fazer de conta que se está compartilhando as escolhas do criador, suas emoções. Uma declaração do cineasta francês Jean Renoir poderia servir de fundamento a outro modo de assistir e analisar filmes:

Para apreciar um quadro, é preciso ser um pintor em potencial, senão, não se pode apreciá-lo; e, na realidade, para gostar de um filme é preciso ser um cineasta em potencial; é preciso dizer: mas eu teria feito deste ou daquele jeito; é preciso fazer seus próprios filmes, talvez apenas na imaginação, mas é preciso fazê-los, senão não se é digno de ir ao cinema (Bergala, 2002, p. 128).

O professor de Paris III sempre foi a favor de outra abordagem dos filmes, pois para ele há uma forma de ver e refletir sobre os filmes que constitui uma primeira aproximação dos estudantes com o cinema em contexto escolar, antes da passagem ao ato de filmar, o que é denominado “análise de criação” (Bergala, 2002, p. 127). A análise de criação, contrariamente à análise fílmica clássica – cuja finalidade é compreender, decodificar, “ler o filme”, como se diz na escola –, prepararia ou iniciaria a prática de criação. A análise não ocorre como uma finalidade em si, mas como passagem para outra coisa. Nessa pedagogia da criação trata-se de fazer um esforço de imaginação para retroceder no processo de criação até o momento em que o cineasta tomou suas decisões, em que as escolhas ainda estavam abertas. É uma postura que exige treinamento quando se quer entrar no processo criativo para tentar compreender, não como a escolha realizada funciona no filme, mas como se apresentou em meio a muitos outros possíveis. Nesse sentido, o DVD se mostra inovador para o ensino de cinema: esse novo suporte permite pensar e realizar novas formas de pedagogia que eram até então impraticáveis, devido à linearidade constitutiva da fita de vídeo. Logo, podemos aproveitar as possibilidades oferecidas pelo DVD para repensar novas formas pedagógicas, como uma ferramenta metodológica possível para análise de criação, que escapam aos limites da fita de vídeo.

A esse propósito, Bergala sugere como método de análise de criação uma “pedagogia de articulação de filmes ou fragmentos”(Bergala, 2002, p. 113) que se caracteriza por um didatismo leve, em que já não é o discurso que detém o saber, mas, de outro modo, o conhecimento surge da simples observação dessas relações múltiplas. É essa capacidade – a facilidade de reunir e de relacionar fragmentos – que faz o DVD uma ferramenta preciosa por possibilitar inovações pedagógicas. Uma pedagogia que faça apelo ao imaginário e à inteligência do utilizador, seja aluno ou professor. A forma curta, que é a do trecho ou da sequência, combina os méritos da velocidade do pensamento (algumas vezes, o ato de pôr em relação três trechos permite compreender mais coisas do que um longo discurso) e da transversalidade (pode-se estabelecer relações imprevistas, esclarecedoras e instigantes entre cinemas, filmes e autores que uma abordagem mais linear separaria em categorias estanques). Não há nenhum motivo para que a velocidade do digital não seja utilizada, pois ela põe em relação, cria conhecimento. Sobretudo porque o DVD permite fazer também, com alta qualidade visual, o movimento inverso – indispensável nesta proposta pedagógica –, de desacelerar e paralisar as imagens.

Bergala sugere dois modos de escolher e de pensar um trecho de filme. Como extrato autônomo, que pode ser apreendido em si como uma pequena totalidade, sem experimentar a falta daquilo que o rodeia; ou, ao contrário, como um pedaço arbitrariamente destacado de um filme, em que se sente o gesto de extração como um corte, interrupção, ligeira frustração (Bergala, 2002). Ambos têm virtude pedagógica. Os primeiros como modelos reduzidos, mais fáceis de visualizar integralmente que um filme inteiro. Os segundos como provocação (teasing) do desejo de ver o filme inteiro. A “pedagogia do fragmento” (Bergala, 2002, p. 113), portanto, combina frequentemente os méritos da condensação, da renovação e de uma inscrição mais duradoura das imagens na memória. Assim, Bergala defende uma abordagem do cinema a partir do plano, considerado a menor célula viva, animada, dotada de temporalidade, de devir, de ritmo, gozando de autonomia relativa, constitutiva do grande corpo-cinema.

No que diz respeito ao ato cinematográfico, o plano envolve, de modo magnífico, a maior parte de escolhas que intervêm real e simultaneamente na criação: onde começar e terminar um plano, onde colocar a câmera, como organizar e enquadrar os fluxos que vão atravessá-lo? Mas, enfim, o que é um plano? O plano, para Bergala (2002), é a unidade mais concreta do filme, é a interface ideal entre uma abordagem analítica (pode-se observar numa superfície mínima muitos parâmetros e elementos de linguagem do cinema) e uma iniciação à criação (a partir de uma conscientização de todas as escolhas implicadas em fazer um plano).

Por esse motivo, seria conveniente que a pedagogia da criação encarasse o ato de criação no cinema a partir do plano e das operações mentais que o fazer um plano acarreta, antes de encará-lo em suas operações técnicas. “A criação, no cinema como em outras artes, de início é “cosa mentale”, antes de tornar-se operações concretas (Bergala, 2002, p. 134). Logo, o ato de criação cinematográfico envolve três operações mentais simples para Bergala: “a eleição, a disposição e o ataque”(Bergala, 2002, p. 133).

A eleição seria escolher as coisas no real em meio a outros possíveis: escolher na filmagem os atores, as cores, os gestos. Na montagem, seria a escolha de tomadas; na mixagem, a escolha de sons isolados, de ambientes sonoros.

A disposição seria nada mais nada menos que posicionar as coisas umas em relação às outras. Na filmagem, seria dispor dos atores, dos elementos de cenário, dos objetos, dos figurantes. Na montagem, seria determinar a ordem relativa dos planos e, na mixagem, dispor os ambientes e os sons isolados em relação às imagens.

O ataque concerne a decidir o ângulo ou ponto de ataque às coisas que se escolheu e dispôs. Na filmagem seria decidir o ataque da câmera, isto é, em termos de distância, de eixo, de altura, de objetiva e dos microfones. Na montagem, seria decidir, uma vez escolhidos e dispostos os planos, o corte do inicio e do fim de cada plano. Na mixagem a mesma coisa com os sons.

É importante notar que essas três operações mentais envolvem sempre uma escolha, uma tomada de decisão. O que constitui ao mesmo tempo a especificidade, a dificuldade e a excitação do cinema é que essas operações mentais, sem as quais não há criação, jamais são simples escolhas abstratas ou intelectuais que poderiam ser validadas. Essas escolhas são obrigatoriamente negociadas com a dura realidade, através de tentativas, retornos, remorsos, até que se considere ter atingido um equilíbrio que não traia demais a ideia ou a vontade inicial, ainda quando somos afastados dela por força das circunstâncias.

Desde a fase da análise de sequência de filmes, torna-se possível sensibilizar os alunos para o fato de que os cineastas, em sua grande maioria, não pensam suas cenas um plano depois do outro, em fila, mas em geral, em um esforço para ter uma ideia do conjunto que se traduz na escolha dos principais eixos de ação. No ato de criação no cinema, apesar das aparências de trabalho coletivo, uma só pessoa tem em mente, mesmo que de forma imprecisa e com zonas mal definidas, o filme como totalidade futura. Não importa que a filmagem seja o resultado de um trabalho de equipe: o núcleo de criação no cinema permanece em um indivíduo, que é mais facilmente reconhecido por nós encarnado na figura do diretor.

Logo, por esta apresentação das principais ideias de Bergala, foi possível observar uma aproximação com a teoria do cinema enquanto arte proposta pelo dicionário de Jacques Aumont e Michel Marie, de pensar o filme não como objeto, mas como marca final de um processo criativo. Não como objeto de leitura, decodificável, mas “cada plano, como a pincelada do pintor pela qual se pode compreender um pouco seu processo de criação” (Bergala, 2002, p. 34).

A seguir, das teorias apresentadas, pretendo dialogar com a teoria do cinema, exposta no dicionário já citado, do “cinema como substituto do olhar”. Para tal tarefa, apoiei-me nos estudos do teórico de cinema norte-americano Robert Stam acerca das ideias de Bakhtin.

Visto que a linguagem não é mais um espelho do mundo nem representacional, logo se torna possível haver várias possibilidades de entender e significar a vida e as coisas que nos cercam, pois o que está em jogo é a crise da razão e do sujeito, o que engendra a própria crise da representação. Não há mais uma verdade única que possa ser aceita universalmente; o que há é pluralidade de sentidos, desconstruindo a ideia de que estes possam ser prefixados.

Nesse contexto, emerge o debate sobre cultura. Esta lidaria com a dimensão simbólicado comportamento humano em um mundo concebido como expressão de uma delimitação semântica, em que a cultura torna-se, então, a dimensão suficientemente capaz de oferecer ao mundo-linguagem seus incontáveis significados, em lugar de aceitar passivamente que o significado é pré-fabricado, na realidade esperando apenas ser descoberto e apreendido.

Mas se o mundo é irremediavelmente plural, constituído por inúmeras gramáticas concorrentes entre si, como prosseguir diante dessa multiplicidade de textos? Como se comportar diante do outro que é diferentede mim? Como pensar o cinema dentro da escola, esse “outro”? Como pensar numa proposta de currículo multicultural?

Desse modo, proponho pensar o cinema em contexto escolar dentro de uma perspectiva pós-moderna em Educação, a partir da “translinguística bakhtiniana” (Stam, 2006, p. 137).

Antecipando-se aos sociolinguistas contemporâneos, Bakhtin (Stam, 2006) afirmou que todas as linguagens caracterizam-se pelo jogo dialético entre pressões centrípetas no sentido da normatização (monoglossia) e energias centrífugas tendendo à diversificação dialetal (heteroglossia). Essa abordagem fornece uma moldura valiosa para a compreensão do cinema clássico dominante como uma espécie de linguagem padrão apoiada e subscrita pelo poder institucional, exercendo assim sua hegemonia sobre uma série de “dialetos” divergentes, como o documentário, o cinema militante e o cinema de vanguarda. Uma abordagem translinguística seria mais relativista e pluralista com respeito a essas diferentes linguagens cinematográficas, privilegiando o periférico e o marginal em oposição ao central e ao dominante. Assim, encerrada a análise linguística, quase tudo fica por dizer; daí a necessidade de uma análise “translinguística bakhtiniana”do filme (Stam, 2006, p. 139).

Mas o que vem a ser essa translinguística bakhtiniana? Segundo Stam (1992), é uma teoria do papel dos signos na vida e no pensamento humanos, e da natureza do enunciado na linguagem. A palavra translinguística poderia equivaler à semiologia de Saussure (a ciência dos signos e dos sistemas de signos), não fosse pelo fato de que é precisamente a visão de linguagem de Saussure que Bakhtin contesta. Embora concorde com Saussure em que deveria ser criada uma disciplina que estudasse a “vida dos signos na sociedade”, Bakhtin diverge dele em sua concepção da natureza dos signos e de seu papel na sociedade.

Bakhtin contesta o que considera “o psicologismo de Saussure”, situando a ideologia no interior da consciência individual. Para Bakhtin, “a consciência só existe na medida em que se concretiza através de algum tipo de material semiótico, seja sob forma de “discurso interno”, seja no processo de interação verbal com os outros”(Stam, 1992, p. 30). Assim, Bakhtin descentraliza a consciência individual: em sua visão, os signos só podem emergir em território interindividual. Dessa forma, é possível notar que, para Bakhtin, a consciência individual não pode ser usada para explicar seja lá o que for, porque ela própria necessita ser explicada a partir de um ponto de vista sociológico e translinguístico. Logo, a linguagem é aqui considerada como um campo de batalha social, o local onde os embates políticos são travados tanto pública como intimamente. A linguagem e o poder, nessa concepção, vivem numa interseção permanente, não apenas sob a forma óbvia de conflitos relativos a idiomas oficiais (francês versus inglês no Canadá, por exemplo), como em qualquer lugar onde a questão da diferença linguística se veja envolvida com ordenações sociais assimétricas.

Por outro lado, para Bakhtin “a linguagem nunca se apresenta ordenada com tanta nitidez; é “confusa”, como a própria história. Enquanto produto do incessante leva e traz, do discurso cotidiano, resiste a uma sistematização rígida”(Stam, 1992, p. 32). É interessante notar esse aspecto, pois para Bakhtin fica evidente que o sistema de linguagem é uma abstração imposta, em que o que importa não é simplesmente o signo autoequivalente estável, mas também o espaço para a sua capacidade de se transformar. Nesse sentido, a linguagem não é um sistema acabado, mas um contínuo processo de vir a ser. Os indivíduos, por exemplo, não recebem uma língua pronta; em vez disso, ingressam numa corrente móvel de comunicação verbal. Essa ideia de mobilidade faz pensar em uma linguagem inerentemente anarquizante e milita contra a sistematização rígida. A realidade da fala-linguagem é, portanto, não o sistema abstrato das formas idênticas a si mesmas, mas a emissão em diálogo, a troca constante entre interlocutores que modelam conjuntamente o evento social da interação verbal.

Logo, a crítica que Bakhtin faz da Linguística de Saussure abre a possibilidade de que se reintroduzam tanto a política como a cultura no modelo abstrato oferecido por Christian Metz, por exemplo, em suas análises das analogias e desanalogias entre cinema e linguagem.

Embora a influência de Bakhtin tenha-se feito sentir amplamente em estudos culturais, em disciplinas que vão da crítica literária à antropologia e à linguística, essa influência precisa ainda revelar sua fecundidade potencial na área de estudos do cinema. Assim, proponho explorar a relevância das categorias conceituais de Bakhtin para pensar no cinema para além da concepção de linguagem de Christian Metz (que foi uma das teorias mais difundidas), para uma possível aproximação do cinema em contexto escolar como arte e como alteridade, isto é, pensando numa outra concepção de linguagem em que se valoriza o outro, o diferente e o multicultural. Nessa proposta deve-se chamar a atenção para o uso-valor crítico dos conceitos bakhtinianos, especialmente sua visão politizada da linguagem e da arte enquanto impregnadas de “dialogismo” (ou seja, a geração transindividual do significado), “heteroglossia” (multilinguagem) e “tato” (o conjunto dos códigos que governam a interação discursiva) (Stam, 1992, p. 59).

Entende-se por dialogismoa “relação necessária entre um enunciado e outros enunciados” (Stam, 1992, p. 72). Isso quer dizer que os enunciados não são indiferentes uns aos outros nem autossuficientes; são mutuamente conscientes e refletem um ao outro. Cada enunciado é pleno de ecos e reverberações de outros enunciados, com os quais se relaciona pela comunhão da esfera da comunicação verbal. Cada enunciado refuta, confirma, complementa e depende dos outros; pressupõe que já são conhecidos e de alguma forma os leva em conta. Nesse sentido, o dialogismo bakhtiniano pode ser entendido como uma reescritura da visão saussuriana de linguagem como jogo crítico das diferenças, porém colocada como jogo da diferença entre o texto e todos os seus outros: autor, intertexto, interlocutores reais e imaginários e o contexto comunicativo.

Embora na origem o dialogismo seja interpessoal, aplica-se também por extensão à relação entre as línguas, as literaturas, os gêneros, os estilos e até mesmo as culturas. Dessa forma, o dialogismo se refere às possibilidades abertas e infinitas geradas por todas as práticas discursivas de uma cultura, toda a matriz de enunciados comunicativos em que se situa um dado enunciado.

Nota-se que Bakhtin, em contraste com os estruturalistas e marxistas, é muito mais “culturalista”, pois se interessa por todas as séries literárias e não literárias que derivam do que ele chama de “poderosas e profundas correntes da cultura”(Stam, 1992, p. 75). Há aqui valorização do discurso cotidiano e da cultura popular.

Assim, o dialogismo opera dentro de qualquer produção cultural, letrada ou analfabeta, verbal ou não verbal, elitista ou popular. Os filmes de um cineasta como Godard só fazem ampliar essa noção do artista como orquestrador das mensagens lançadas por todas as séries – literárias, pictóricas, musicais, cinematográficas, publicitárias etc. Porém os mesmos mecanismos dialógicos básicos operam dentro da chamada cultura popular. Um bom exemplo é o fenômeno do hip-hop nos Estados Unidos, que inter-relaciona os universos culturais do rap, do grafite e da dança break. Nesses dois exemplos, tanto de Godard como do hip-hop, situa-se a essência da ideia de dialogismo como algo que é centrado na performance e na interação, demonstrando a necessidade da troca entre as várias linguagens, e não seus respectivos aprisionamentos.

Para resumir melhor essa ideia de dialogismo, cito uma frase de Bakhtin:

é só através dos olhos de outra cultura que uma cultura estrangeira se revela da maneira mais completa e profunda. Mas esse encontro dialógico de duas culturas não deveria implicar uma perda de identidade de nenhuma delas; em vez disso, cada uma conserva sua unidade e sua totalidade aberta, porém ambas se enriquecem mutuamente (Stam, 1992, p. 78).

É dessa natureza híbrida e transcultural da linguagem proposta por Bakhtin que se vai ao encontro dos outros dois conceitos que citei para pensar o cinema (o tato e a heteroglossia), pois ambos estão inseridos no próprio conceito de dialogismo.

Bakhtin dá o nome de tatoao conjunto de códigos que governam a interação verbal que rege a interação discursiva (Stam, 1992). O tatotem a ver com a relação entre interlocutores e é determinado pelo conjunto de relações sociais dos sujeitos falantes por seus horizontes ideológicos e pelas situações concretas da conversa. No sentido literal de tato, o cinema pode ser considerado, em parte, a mise-en-scène de situações discursivas reais, como contextualização visual e auditiva do discurso. Essa dramaturgia possui o seu tatoespecífico, suas maneiras de sugerir, pela colocação da câmera, pelo enquadramento e a interpretação, fenômenos como intimidade ou distância, companheirismo e dominação; em suma, a dinâmica social e pessoal que se realiza entre interlocutores.

Assim, pensando nesse contexto de interação verbal, pode-se problematizar tal questão refletindo sobre o tratamento dado à palavra alheia e ao discurso do outro. Esse discurso do outro é ignorado, respeitado, distorcido, caricaturado? Daí é possível entender o conceito de heteroglossia.

A heteroglossia ou “multilinguagem” traz a ideia de que cada língua é um conjunto de linguagens, e cada sujeito falante abre-se para uma multiplicidade de linguagens (Stam, 1992). Toda comunicação impõe um aprendizado da linguagem do outro, uma espécie de tradução, ou de acordo, com o significado situado nos limites do nosso conjunto pessoal de linguagens e do de outra pessoa. Todos nós somos multilíngues: falamos uma linguagem com os amigos e outra com os inimigos; falamos linguagem infantil com as crianças e a linguagem do amor com os amantes. Assim, a tradução interlinguística tem como contrapartida a tradução intralinguística, exigida no diálogo entre pessoas, classes e comunidades diversas.

Dessa forma, tal conceito bakhtiniano tem profunda identificação com a diferença e a alteridade, demonstrando afinidade intrínseca com tudo que é marginal e excluído, em que os marginalizados teriam a possibilidade de apropriarem-se do centro simbólico, numa espécie de explosão de alteridade. Segundo Stam, “mais do que simplesmente ‘tolerar’ a diferença, a abordagem bakhtiniana respeita-a e até a aplaude(Stam, 1992, p. 14).

Bakhtin argumenta que cada um de nós ocupa um lugar e um tempo específicos no mundo; que cada um de nós é responsável por nossas próprias atividades; e que tais atividades ocorrem nas fronteiras entre o eu e o outro. O eu, para ele, existe somente em diálogo com outros eus. O eu precisa da colaboração de outros para poder definir-se e ser autor de si mesmo. Conforme Stam (1992), Bakhtin acha uma analogia para essa necessidade vital do outro no domínio da biologia, em que a vida é definida como a capacidade de reagir a estímulos ambientais. Nesse sentido, pressupõe-se que o eu humano, por analogia, não tem existência independente, pois depende do meio ambiente social, que estimula sua capacidade de mudança e de resposta. É dessa forma que Bakhtin formula uma noção da relação entre o eu e o outro que se situa no âmago de seu projeto.

Em se tratando de um diálogo humano, observa Bakhtin, “posso ver o que você não pode ver e você vê o que não posso ver”(Stam, 1992, p. 17). Essa necessária e produtiva complementaridade de visões, compreensões e sensibilidades forma o cerne da noção bakhtiniana de diálogo. Esse processo de diálogo, de autocompreensão pela alteridade, pelos valores do outro começa cedo, quando as crianças veem-se a si próprias através dos olhos da mãe e prossegue durante toda a vida.

Logo, as noções de Bakhtin giram em torno desse eixo do eu e do outro e da concepção de que a vida é vivida nas fronteiras entre a particularidade da nossa experiência individual e a autoexperiência dos outros. O que ele quer dizer com isso é que o eu não está lacrado, pois ele é capaz de atravessar a fronteira e de imaginar o outro como sujeito e ver a si mesmo como objeto.

Nesse sentido, acredito que a contribuição mais importante de Bakhtin seja de caráter político, pois a sua noção de heteroglossia pressupõe uma cultura fundamentalmente não unitária, na qual diferentes discursos existem em relações cambiantes e multivalentes de oposição, enfatizando a coexistência, em qualquer situação textual ou protextual, de uma pluralidade de vozes que não se fundem em uma consciência única, mas que, em vez disso, existem em registros diferentes, gerando dinamismo dialógico entre elas próprias. Assim, entendo por heteroglossiauma diversidade social de tipos de linguagem que é produzida por forças sociais (gêneros discursivos, tendências particulares, profissões etc.). Entendo ainda a heteroglossia como um processo de incorporação de múltiplas vozes, pois o próprio conceito de voz em Bakhtin (1983, p. 293) propõe interação de múltiplas perspectivas sociais e individuais.

Entretanto, heteroglossia não aponta meramente para a heterogeneidade enquanto tal, mas sim para o ângulo dialógico no qual essas vozes se justapõem e se contrapõem, gerando algo além delas próprias, o que favorece a abertura à especificidade e à diferença, sugerindo a possibilidade de uma crítica cultural radical aplicável ao cinema e aos meios de comunicação de massa. Tudo isso remete ao pensamento de Jean-Luc Godard, o qual considera a voz como uma maneira de se apropriar do texto, pois o cineasta francês acredita que podemos nos apropriar de tudo. Por exemplo, se Godard diz uma frase de Mozart, ela passa a ser dele, pois, ao se apropriar da voz do outro, a sua própria voz a transforma em outra coisa.

A concepção de dialogismo permite ver todo texto artístico como estando em diálogo não apenas com outros textos artísticos mas também com seu público. Esse conceito multidimensional e interdisciplinar, se aplicado a um fenômeno cultural como um filme, por exemplo, referir-se-ia não apenas ao diálogo dos personagens no interior do filme, mas também ao diálogo do filme com filmes anteriores, assim como ao diálogo de gêneros ou de vozes de classes no interior do filme, ou ao diálogo entre as várias trilhas (entre a música e a imagem). Além disso, poderia referir-se também ao diálogo que conforma o processo de produção específico (entre produtor e diretor, diretor e ator), assim como às maneiras como o discurso fílmico é conformado pelo público, cujas reações potenciais são levadas em conta.

Assim, acredito que para pensar numa aproximação do cinema no contexto escolar, e, quem sabe, como disciplina, o ideal seria não se prender somente à estrutura proposta por Christian Metz, a qual foi a mais difundida das teorias, a de uma “cine-semiologia”, como proposta de ensino do cinema na escola. Como se sabe, para esse autor, dever-se-ia desvendar os códigos do cinema, pois teriam algo a revelar. É evidente que o cinema é uma linguagem, mas é uma linguagem artística; logo, deve-se ultrapassar essa ideia de que ela é um sistema pronto e acabado. As propostas de Bergala, aliadas às ideias de Bakhtin, seriam uma possibilidade de ultrapassar os limites dessa visão de linguagem, a partir do momento que refletem sobre aspectos culturais, propondo uma abertura do próprio conceito como algo que não é pronto, mas que está em constante processo de construção.

Outra contribuição importante que Bakhtin traz são suas reflexões sobre a própria arte, que não é um simples servo, um simples transmissor de ideologias. Em vez disso, ela tem seus próprios processos independentes e seu papel ideológico, pois o significante artístico “não é um mero acessório técnico para transmitir realidade ou grandes pensamentos, mas uma parte da realidade que é importante em si” (Stam, 1992, p. 24). Dessa maneira, entende-se que a arte tem relativa independência do contexto imediato. Segundo Stam, na visão de Bakhtin a única contribuição da arte é a ruptura, pois acreditava que a arte era um espaço aberto, de liberdade, com alternativas utópicas para a cultura oficial.

Logo, em termos metodológicos tal concepção de linguagem permite uma reconsideração, depois da descoberta da especificidade cinematográfica pelos formalistas russos e da semiologia metziana, dos elos existentes entre o cinema e outros sistemas semióticos e das afinidades entre estudos sobre cinema e outras disciplinas, assim como na relação da história do cinema e do trajeto histórico mais amplo das formas narrativas e discursivas. Em termos de teoria cinematográfica, Bakhtin aponta a maneira de transcender algumas das insuficiências percebidas em outros enquadramentos teóricos. Seu conceito de “dialogismo intertextual”, de linguagem e discurso como “território compartilhado” deixa-nos imune às noções românticas monovocais que reforçam a teoria do autor (embora não nos impeça de continuar percebendo as tonalidades e os acentos específicos das vozes artísticas individuais). A ênfase que ele atribui a um contexto sem fronteiras, sempre cambiante, que interage com o texto, contribui para que se evite a fetichização formalista do texto autônomo. A ênfase na palavra e na geração interpessoal da significação propicia, ao mesmo tempo, uma crítica dos aspectos estáticos a-históricos da semiótica da primeira fase, através de uma translinguística compatível com o modelo linguístico, mas sem a ilusão positivista típica de um determinado estruturalismo (Stam, 1992).

Nesse sentido, na proposta de linguagem de Bakhtin encontram-se interseções com a proposta de Alain Bergala para o cinema dentro do contexto escolar, pois os dois trabalham com a questão da alteridade, do “outro”, da cultura e da arte. Para um possível currículo em cinema, haveria viabilidade em aliar as duas propostas, pois para Bergala “importa antes de tudo o cinema como arte, depois como linguagem, em seguida como cultura” (Bergala, 2002, p. 46). É bem verdade que para Bergala, desde sempre, o cinema é tratado na escola como linguagem (Bergala, 2002), linguagem essa aprisionadora, a qual ele critica. Bergala vê a necessidade de superar essa forma reducionista de abordar o cinema na escola, que é predominantemente linguística; ele a justifica por dois motivos: um de tipo histórico, que coincide com o momento hegemônico das ciências da linguagem com o auge da ideia do cinema na escola; e outro de tipo ideológico, que visa formar o espírito crítico das crianças a partir de um circuito de análises do cinema para abordar criticamente a mídia em geral (Bergala, 2002). Bergala não vê com bons olhos a aproximação do cinema como linguagem; não chega a desprezá-la, mas dessa forma ele não estaria sendo tratado como arte. Bergala acredita que, tratando o cinema como arte, não o estaria trabalhando somente dentro dos pressupostos da linguagem, pois pensa a arte como um sistema autônomo.

Concordo com Bergala, pois pensar o cinema na escola, diferentemente do curso localizado como é a matemática ou o português, por exemplo, abre a possibilidade de pensar outras metodologias de aula e de repensar os currículos escolares. O movimento consiste em desacreditar o cinema como linguagem, pois a ênfase recai numa experiência de criação. Discordo somente dessa polarização tão radical entre arte e linguagem proposta por ele, pois, como se pôde observar brevemente, o cinema é uma linguagem artística; logo, ele é linguagem e é arte. Ele não é uma coisa ou outra, ele é as duas coisas. Por isso, acredito ser interessante aproximar as ideias de Bakhtin, propostas por Stam, e as de Bergala para pensar numa aproximação do cinema em contexto escolar de uma maneira que ele possa ser tratado como alteridade e como arte, problematizando as questões da linguagem de forma que esta não seja aprisionadora dos sentidos, mas que seja flexível, aberta e plural.

Aproximar a teoria do cinema como“substituto do olhar”com a teoria do “cinema como arte”, proposta por Jacques Aumont e Michel Marie, traz contribuições significativas para pensar o cinema em contexto escolar e fundamentalmente para pensar outra forma de alteridade (Fresquet, 2007), o cinema como um outro que reflete a nós mesmos na tela. Para isso, no próximo capítulo, traçarei um breve histórico das teorias do currículo aliado às ideias do cineasta francês Jean-Luc Godard, que pensa o cinema antes de tudo como arte e não como linguagem.

Referências bibliográficas

AUMONT, Jacques; BERGALA, Alain; MARIE, Michel; VERNET, Marc. Esthétique du film. Paris: Nathan, 2001.

AUMONT, Jacques. As teorias dos cineastas. São Paulo: Papirus, 2002.

AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico do cinema. São Paulo:Texto & Grafia, 2009.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BAKHTIN, Mikhail. Dialogic imagination. Austin: University of Texas Press, 1983.

BERGALA, Alain. L’hiphòthèse cinéma. Paris: Cahiers du Cinéma, 2002.

FRESQUET, Adriana (org.). Imagens do desaprender. Rio de Janeiro: Booklink-CINEAD/LISE/UFRJ, 2007.

METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 1972.

STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Campinas: Papirus, 2006.

STAM, Robert. Bakhtin – da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ática, 1992.

Publicado em 07/05/2011

Publicado em 07 de junho de 2011

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.