Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

De médico e louco todo mundo tem um... pouco?!

Mariana Cruz

Se alguém anda meio esquecido ultimamente ou repetiu uma história para as mesmas pessoas em curto período de tempo, logo começam as piadinhas sobre a visita do primo alemão, mais conhecido como Herr Alzheimer. Se fulano lava toda hora as mãos, não usa roupa preta, só entra em casa com o pé direito ou tem nervoso de etiqueta para fora da blusa, está com TOC. Nem de mau humor pode-se mais ficar, sobretudo se for do sexo feminino: elas são prontamente acusadas de estar com TPM. Não que uma mulher com TPM não fique um tanto quanto nervosa e irritada nesses dias, mas, às vezes, ela está assim simplesmente porque está e nada tem a ver com o ciclo menstrual. Se a pessoa cortou doces e refrigerantes de sua dieta e deu uma bela emagrecida, está neurótica ou então anoréxica, mas se engordou de um dia para o outro, é problema na tireoide. Se um dia beltrano está meio tristonho e no outro está para lá de alegre, é bipolar, claro. Tem receio de sair à noite ou não entra no metrô abarrotado, está com síndrome do pânico. Existem também os casos em que a pessoa nem dá chance para o sintoma aparecer, como um conhecido meu que, já prevendo a dor de cabeça que terá, pois sempre quando fica muito tempo diante do computador isso acontece, ele nem hesita, já toma sua aspirina preventivamente, às vezes até duas. E o que dizer daquele cidadão que, apesar de ter dinheiro, não se segura e, vez ou outra, faz visitinhas às bolsas alheias atrás de um qualquer? Cleptomaníaco! Ladrão não pode ser, pois não precisa roubar, já que tem posses. Mas isso lá é justificativa para alguém não roubar? Se assim for, o que dizer de políticos e empresários milionários que ficam se apropriando das coisas dos outros? São todos cleptomaníacos? Não, meu caro, são apenas ladrões.

Tudo é tachado. Ao mínimo sinal, já se cola a etiqueta com o nome da doença naquele que está saindo do padrão. Como se isso eximisse a pessoa da responsabilidade e possibilidade de fazer autoanálise e sanar (ou não) tais desvios de conduta: é doente, coitado. Tal catalogação de doenças, síndromes, neuroses que se referem aos estados e ações da pessoa muitas vezes a impede de tentar resolver tais problemas por outros meios, pois o remédio faz isso em seu lugar. Mas a causa não é mexida, apenas o efeito. Assim, toda vez que ocorra reincidência basta apelar para as pílulas mágicas.

Tais casos sinalizam uma sociedade doente, que se vê doente, uma sociedade viciada em medicamentos como se fossem a cura de todos os males. Os adultos, não satisfeitos em se rotularem mutuamente com as doenças, tratam de expandir seus diagnósticos, feitos nas coxas, às crianças. Hoje em dia elas não são mais levadas, atentadas, malcriadas, pestinhas, e sim hiperativas, impedidas assim de cultivar em paz seu bicho carpinteiro.

Um amigo neurologista me disse que por mais de uma vez recebeu em seu consultório pais que já chegam com o diagnóstico pronto sobre o filho: “ele não para quieto, é hiperativo. O senhor pode receitar uma Ritalina?” Para quem não sabe, trata-se de um remédio utilizado no transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, cada vez mais consumido no mundo. Perfeito para pais sem paciência e professores desinformados que, sem saber como lidar com o excesso de energia dos pequenos, tacham-nos de hiperativos. Meu amigo médico relatou-me que, em uma dessas vezes, após examinar a criança e constatar que ela não era hiperativa, os pais saíram batendo a porta de seu consultório porque não conseguiram a receita do sossega-leão. Um exemplo de bom profissional que prefere perder o cliente a perder a ética. Mas quantos outros não prefeririam dar uma exagerada no diagnóstico para fazer a vontade do paciente?

Além disso, nos tempos de hoje muitas pessoas, independente da (desin)formação, não se inibem em colocar para fora o seu lado “médico” e indicar aquele produtinho bom para ganhar tônus muscular ensinado pela “amiga da academia” (não de medicina e sim de ginástica) e dar dicas de como usar remédios como se ensinasse a receita de um estrogonofe. Tudo isso, aliado à força da indústria farmacêutica, faz com que se tomem mais e mais remédios sem ter o diagnóstico para tal, daí o número crescente de crianças que tomam Ritalina sem necessidade, como mostra esta matéria da revista Veja (isso sem falar nas meninas que usam o medicamento para emagrecer e nos meninos que querem ficar “acesos” nas baladas).

Talvez essa ânsia de alguns pais para acalmar seus filhotes diminua na medida em que eles participem mais da vida deles, façam atividades juntos.

Para começar, que tal escutar esta música do grupo Palavra Cantada, cujo refrão é “Criança não trabalha/criança dá trabalho” e perceber que muitas vezes uma criança que dá trabalho, faz bagunça, corre, pula, se suja não é uma criança hiperativa, e sim uma criança saudável?

Qual o diagnóstico para uma sociedade como esta?

Publicado em 7 de junho de 2011

Publicado em 07 de junho de 2011

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.