Este trabalho foi recuperado de uma versão anterior da revista Educação Pública. Por isso, talvez você encontre nele algum problema de formatação ou links defeituosos. Se for o caso, por favor, escreva para nosso email (educacaopublica@cecierj.edu.br) para providenciarmos o reparo.

PRÁTICA ANTIRRACISTA E APRENDIZAGEM SIGNIFICATIVA – A TECITURA DO CONHECIMENTO NO 1º CICLO DE FORMAÇÂO

Luciana Guimarães Nascimento

Professora, especialista em Relações Etnicorraciais e Educação, mestranda em Educação, tutora do curso de Pedagogia no consórcio CEDERJ

Vivemos em uma sociedade desigual quanto a condições para o pleno desenvolvimento humano. Nela encontramos evidências para a existência de discriminação dos indivíduos a partir do critério raça/cor, gerando a exclusão de considerável parcela da população brasileira do acesso irrestrito a bens sociais capazes de oportunizar condições dignas para a existência e sobrevivência (Gonçalves, 2003), dentro da dinâmica socioeconômica vigente.

A educação escolarizada, como um dos bens sociais essenciais para o desenvolvimento da cidadania, é afetada pela forma como a sociedade interpreta as diferenças humanas, hierarquizando culturas e indivíduos a partir de sua ascendência etnicorracial. Pensemos então na forma como os sistemas educativos perpetuam uma lógica social excludente voltada à população negra, por meio de ações pouco condizentes com o respeito e a valorização das diversidades, posto que, “sendo a escola a instituição que reproduz as estruturas de classe, ela também reproduz as ideologias e culturas dominantes. Desse modo, as culturas dos grupos dominados não se encontram representadas na escola” (Gonçalves, 2009, p. 94).

De acordo com Müller (2009), estudos indicam que há no Brasil uma discrepância entre níveis de escolarização alcançados por negros e brancos, independente da faixa de renda, destacando que os primeiros efetivam menos anos de escolaridade em relação aos demais grupos raça/cor, da mesma forma que apresentam trajetos escolares heterogêneos, a partir de mecanismos intraescolares discriminatórios que produzem desigualdade, gerando o fracasso escolar dos alunos negros (Müller, 2009). É importante ressaltar que designaremos como negros, neste trabalho, toda população preta e/ou parda, de acordo com a classificação organizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

De forma geral, com base na análise de pesquisas que abordam a questão podemos afirmar que a diversidade etnicocultural não é valorizada dentro da escola, sendo desconsiderada quando se pensa na relação ensino/aprendizagem. Como consequência, constatamos, no interior dos espaços educativos formais, alunos desmotivados em relação aos conteúdos que lhes são apresentados e com baixa autoestima, característica do processo de opressão cultural e identitária no qual são envolvidos.

A partir dessas afirmações, destacamos que a educação precisa encontrar caminhos favorecedores para a reversão dos dados negativos relacionados à população negra, garantindo que todos os indivíduos tenham acesso à escola e permanência nela, visto que é sua função “estimular a formação de valores, hábitos e comportamentos que respeitem as diferenças e as características próprias de grupos e minorias” (Brasil, 2004, p. 07). Logo, surge a necessidade de desenvolver práticas pedagógicas antirracistas, assim denominadas por estimularem a reversão da condição excludente na qual os negros são protagonistas no cenário socioeducacional brasileiro, pautando-se pela valorização da identidade etnicorracial desses indivíduos e promovendo destaque para sua importância na História do Brasil.

Corroborando essa nova forma de pensar/fazer a educação escolarizada, destacamos a organização escolar em ciclos de formação por favorecer a construção de um pensar antirracista, já que se destaca como a proposta na qual a escola deverá reorganizar e redefinir seus tempos e espaços, contrariando a organização escolar em séries (Freitas, 2002). A intenção é oportunizar melhores condições para o desenvolvimento da aprendizagem dos alunos, na medida em que compreende a aprendizagem como um processo global, tendo a análise das necessidades individuais dos educandos como ponto de partida para a organização da ação educativa, interessada em bem formar cidadãos reflexivos e críticos em nossa sociedade.

No interior do sistema de ciclos de formação toda ação pedagógica deve ser elaborada com o intuito de atender às diversidades, pois a motivação inicial é a compreensão de que todos são capazes de aprender. Por isso, com o propósito de suprir as diferentes necessidades educacionais dos alunos, fazem-se necessárias adaptações curriculares, inovando na estruturação do tempo escolar, a fim de garantir melhor atendimento “às características biológicas e culturais do desenvolvimento de todos os alunos” (Lima, 2000, p. 9).

Nessa perspectiva, destacamos a rede municipal de educação do Rio de Janeiro, onde a organização em ciclos de formação vigorou durante os anos 2000 e 2009, com a função de propiciar aos educandos formação escolar que considerasse seu desenvolvimento global, com objetivos curriculares a serem cumpridos em 600 dias (equivalentes aos três anos de cada ciclo) de efetivo trabalho, mediados pela ação reflexiva do professor. Opondo-se ao sistema seriado e sua lógica de avaliação, esse modelo viabilizou um trabalho baseado em ações inclusivas e respeitosas às diferenças, por meio de uma postura pedagógica respaldada pela ideia de que o grupamento de alunos é constituído por marcas sociais e culturais, tornando imprescindíveis novos sentidos para aprender e ensinar no tempo/ciclo (Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 2004).

Sendo assim, neste artigo pretendemos apresentar uma prática pedagógica antirracista desenvolvida durante as fases intermediária e final do 1º ciclo de formação em uma escola municipal do Rio de Janeiro localizada em comunidade da Zona Oeste durante os anos de 2008 e 2009 em turma formada por 90% de alunos negros, não alfabetizados, com dificuldades na aprendizagem, problemas comportamentais e baixa autoestima. Nossa intenção foi oportunizar o melhor desenvolvimento da aprendizagem desses alunos a partir da não homogeneização das diferenças identitárias e culturais, buscando, ao contrário, sua exaltação e valorização.

Como metodologia, dialogamos com a teoria crítica que posiciona o currículo como narrativa étnica e racial (Silva, 2007), deixando de lado uma abordagem simplista sobre o racismo, tratando-o a partir de sua perspectiva histórica e política. Dessa maneira, promovemos um pensar positivo sobre a identidade negra, com a valorização da diversidade etnicorracial que enriquece o país, por meio de instigações para o respeito e exaltação das características que a configuram e para a ascensão da autoestima desses estudantes, de forma a contribuir para o êxito no processo educativo. Para o centro dos debates, trouxemos questões relacionadas ao preconceito e à discriminação racial, por entendermos que “a questão da raça e da etnia não é simplesmente um “tema transversal”: ela é uma questão central de conhecimento, poder e identidade” (Silva, 2007, p. 102). Além disso, oportunizamos a valorização ao meio sociocultural de origem e vivência dos alunos, criando relação entre os conteúdos apresentados e o espaço cultural no qual estavam inseridos. As práticas foram organizadas de forma interdisciplinar durante dois anos de trabalho com a turma, aproveitando a flexibilidade curricular oportunizada pelo sistema de ciclos, com a apresentação de conteúdos a partir do diálogo entre diferentes áreas do conhecimento com apoio da temática etnicorracial.

Todo trabalho foi permeado pela preocupação em destacar a diversidade como fator positivo, instigando a exaltação das diferenças para o desenvolvimento da aprendizagem dos alunos. Para isso, durante o primeiro ano, selecionamos livros de literatura infantil nos quais os negros eram protagonistas positivos, ou seja, despidos de estereótipos ou estigmas. Com isso promovemos a identificação dos alunos com os personagens, fazendo com que se sentissem representados e motivados à aprendizagem. No segundo ano, além do uso de livros infantis, contribuiu com esse processo o material A cor da Cultura (filmes e documentários sobre tradições e cultura afro-brasileira). Os materiais eram apresentados, seguidos por debates, instigando a construção de consciência crítica nos educandos, paralelamente ao processo de alfabetização.

Ao final desses dois anos de trabalho, observamos que os alunos se identificaram com as práticas desenvolvidas, pois demonstravam apreço aos momentos de estudo no espaço escolar, além de maior envolvimento e sentimento de contemplação diante das atividades propostas. Vale ressaltar que, ao final desse 1º ciclo de formação, 98% dos estudantes conseguiram alcançar os objetivos propostos para esta etapa do ensino, estando aptos a prosseguir seu desenvolvimento no 4º ano de escolarização. Além disso, houve mudança de postura deles em relação à temática racial, pois, diferentemente do início do processo, os educandos passaram a valorizar seu espaço de convívio social, da mesma forma que as características que marcam a sua identidade. Passaram a demonstrar orgulho por sua matriz africana, reprimindo comentários preconceituosos em relação à sua cor da pele, religião ou cabelo.

Com base em tudo que foi apresentado, acreditamos que a efetivação de práticas antirracistas se faz necessária e possível. Da mesma forma, é essencial o repensar a organização curricular das etapas de ensino, desfazendo a hierarquia sobre conhecimentos, que ainda pauta a dinâmica escolar em prol do respeito e valorização das diferenças que interferem no processo ensino/aprendizagem.

Referências:

BRASIL. MEC. Diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, Ministério da Educação, 2004.

FREITAS, Luiz Carlos de. Ciclos, seriação e avaliação: confronto de lógicas. São Paulo: Moderna, 2004.

GONÇALVES, Luiz A. O. De preto a afrodescendente: da cor da pele à categoria científica. In: BARBOSA, Lúcia M. de A. De preto a afrodescendente: trajetos de pesquisa sobre o negro, cultura negra e relações etnicorraciais no Brasil. São Carlos: Ed. UFScar, 2003, p. 15-24.

GONÇALVES. Maria Alice R. Diversidade: a cultura afro-brasileira e a lei 10.639/03. In: SOUZA, Maria Elena V. Relações raciais no cotidiano escolar. Rio de Janeiro: Rovelle, 2009, p. 91-106.

LIMA, Elvira de Souza. Ciclo de formação: uma reorganização do tempo e do espaço escolar. São Paulo: Sobradinho 107, 2000.

MÜLLER, Maria L. R. Formação de professores e perspectivas para a implantação da Lei 10.639/03. In: SOUZA, Maria Elena V. Relações raciais no cotidiano escolar. Rio de Janeiro: Rovelle, 2009, p. 31-46.

PREFEITURA MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO. Secretaria Municipal de Educação. A Multieducação na sala de aula: refletindo sobre o trabalho no 1º ciclo de formação. Rio de Janeiro: MultiRio, 2005.

SILVA, Tomas Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

Publicado em 14 de junho de 2011

Publicado em 14 de junho de 2011

Novidades por e-mail

Para receber nossas atualizações semanais, basta você se inscrever em nosso mailing

Este artigo ainda não recebeu nenhum comentário

Deixe seu comentário

Este artigo e os seus comentários não refletem necessariamente a opinião da revista Educação Pública ou da Fundação Cecierj.