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“A educação é fundamental para a desconstrução de todos os tipos de discriminação”

Mariana Cruz

Entrevista sobre relações etnicorraciais com Ludmilla Almeida

Ludmilla Almeida é licenciada em Filosofia pela UFRJ, dá aulas de capoeira angola para crianças, é bailarina de dança afro-brasileira, afro-cubana e africana, já fotografou para a grife de roupas e acessórios Balaco – Identidade Cultural Brasileira e, de um tempo para cá, tem aprofundado seus estudos em Educação nas Relações Etnicorraciais. Durante a infância e a adolescência estudou em escola particular e era sempre uma das únicas negras do colégio. Nesta entrevista ela fala um pouco de suas vivências, experiências e de seu objeto de estudo.

Revista Educação Pública - Como você se posiciona em relação às cotas raciais?

Ludmilla Almeida - Sou totalmente a favor. O Brasil tem sua história marcada por um processo de escravização que dificultou muito a construção de uma história digna para o negro. A teoria da “democracia racial” que pretendia fazer do país o “paraíso das raças” construiu, em verdade, uma história de discriminação, opressão, desqualificação e violência para o povo negro na diáspora. Isso explica a necessidade da criação de políticas de ações afirmativas, isto é, políticas de reparação, reconhecimento e valorização da identidade, história e cultura dos afro-brasileiros, incluindo nesse processo a necessidade de reconhecimento e valorização das raízes africanas que compõem a nossa nação. As cotas raciais refletem a necessidade de permitir ao negro o acesso a lugares antes ocupados majoritariamente por brancos, como as universidades, por exemplo. Dar ao negro a possibilidade de ingressar em um curso de nível superior pode colaborar para a transformação desse quadro de desigualdade social, que reflete a desigualdade racial de nossa sociedade. Eu tive a possibilidade de estudar em uma escola particular que garantiu minha entrada em uma universidade pública, sem a necessidade do uso das cotas. Mas entendo que esse mecanismo de inclusão – e não de divisão da sociedade brasileira, como muitos que são contra as cotas pretendem considerar – é fundamental para colaborar com a transformação deste país.

Revista Educação Pública - Como foi estudar em uma escola particular de classe média em que os negros eram a minoria?

Ludmilla Almeida - Tive a sorte de estudar em uma boa escola, onde todos gostavam de mim e me respeitavam, independente da cor da minha pele. Lembro de um episódio de preconceito por volta de 8, 9 anos de idade; os meninos chamaram meu cabelo de Bombril. Precisei ir à coordenação reclamar. Os meninos foram imediatamente chamados, conversamos e o episódio nunca mais se repetiu. É claro que todos os cinco, seis negros que estudavam ali sabiam que eram minoria e que tinha alguma coisa errada com aquele número... Mas não tenho lembranças ruins da escola.

Revista Educação Pública - Você acha que, nas escolas particulares em que trabalha, a situação é diferente da sua época de estudante, isto é, há hoje mais negros dentro de sala?

Ludmilla Almeida - Não, os brancos ainda são maioria. É claro que existe o fator social que impede a muitos negros o acesso a uma escola paga. Mas se o negro ainda perdura nessa condição de desfavorecimento financeiro é por conta de um processo histórico em que a cor da pele determinava (e ainda determina) as possíveis posições sociais a serem ocupadas por esta parte da população. Isso explica por que muitas famílias negras ainda não possuem condição de financiar uma escola particular para os seus filhos. Melhor seria se todas as escolas públicas do nosso país pudessem oferecer um ensino de qualidade para crianças ricas e pobres, negras e brancas. Mas isto já é outra história.

Revista Educação Pública - Você está fazendo um estudo sobre a relação do corpo e da raça; pode explicar melhor isso?

Ludmilla Almeida - Na verdade o corpo não é o foco do estudo. Mas parto de uma análise que visa desconstruir o corpo do negro como um dos únicos espaços em que a sociedade concebe representações positivas do negro como sujeito de visibilidade e ação. Penso a capoeira, por exemplo, como um modo de vida que não se encerra em uma performance corporal. Para além do corpo existe um sujeito atravessado pela linguagem, pela história e pela cultura, que imprimem nesse corpo uma identidade. Esse sujeito é o meu objeto de estudo.

Revista Educação Pública - Você já sofreu algum tipo de preconceito devido à cor de sua pele?

Ludmilla Almeida - Já sofri. Nenhum preconceito explícito, no sentido de uma ofensa direta. Mas percebo os olhares quando entro em algumas lojas ou restaurantes que são frequentados majoritariamente por brancos. Fica um desconforto que preciso desconstruir a cada dia. Precisamos nos impor com consciência e atitude para não sermos engolidos por esta sociedade racista, machista e homofóbica.

Revista Educação Pública - A escolha pelas atividades que faz – capoeira e dança afro – tem a ver com alguma questão racial sua?

Ludmilla Almeida – Não. Na verdade comecei a fazer capoeira pelo encantamento que ela sempre me trouxe. Desde pequena tinha muita vontade de fazer, mas só fui começar aos 18 anos. Meu início na capoeira foi num grupo de capoeira regional. Estava feliz de estar praticando, mas sentia que ali não era o meu lugar. Foi quando conheci o Grupo de Capoeira Angola Volta ao Mundo, liderado pelo mestre Claudio Chaminé, que tudo mudou. Através da militância na capoeira angola é que fui compreender de fato a importância da militância da consciência negra. Até então discutia a questão racial em outro nível. A dança veio junto com a capoeira.

Revista Educação Pública - Você, diferente da muitas pessoas negras, parece não usar produtos químicos no cabelo, pois eles têm um aspecto bem natural. Isto é uma questão de estética ou uma bandeira que você levanta (ou ambos)?

Ludmilla Almeida - É impossível pensar a questão do cabelo do negro fora de um contexto histórico. Em uma sociedade em que o racismo sempre desqualificou o negro e todos os seus sinais diacríticos, é compreensível que mulheres e homens negros queiram alisar seus cabelos. Hoje parece que todo discurso em prol da estética e beleza negra está em maior evidência, por conta desse complexo processo de valorização do negro após tantos anos de luta. Com isso se percebe maior aceitação, por parte da sociedade e do próprio negro, para o uso do cabelo crespo ao natural. Mas não podemos julgar quem ainda opta pelo uso do cabelo alisado. O estigma do chamado “cabelo ruim“ nos acompanha desde a infância, mesmo dentro do ambiente familiar. Nossas mães muitas vezes reproduziam esse discurso social, introjetando em nossas mentes um sentimento de rejeição para esse cabelo crespo. Este é um sentimento que deve ser desconstruído aos poucos, no tempo de cada um. Sem contar que existe a opção pessoal, que permite a preferência por um cabelo alisado, mesmo tendo consciência desse processo histórico da estética negra. Eu, por exemplo, deixei de usar química principalmente por não estar mais satisfeita com meu cabelo alisado. Foi uma questão de estética e praticidade, no sentido de não querer mais ter que me deslocar até o salão com a finalidade de submeter meu cabelo aos danos da química. Claro que isso reflete também uma tomada de consciência e uma transformação interna. Mas sou a favor da liberdade e do direito de escolha de cada um, como consequência de um ato de liberdade, e não de uma estética imposta pela sociedade.

Revista Educação Pública - Você faz um trabalho com crianças, muitas delas negras e pertencentes às classes mais desfavorecidas; qual mensagem você tenta passar para elas?

Ludmilla Almeida - A educação é fundamental para a desconstrução de todos os tipos de discriminação presentes em nossa sociedade. A capoeira angola é, no meu ponto de vista, uma expressão da cultura afro-brasileira capaz de colaborar com a construção de diferentes perspectivas educacionais voltadas para a compreensão da pluralidade étnica de nosso país. Desse modo, pretendo, pelas minhas aulas, trabalhar não só a questão racial, mas também outros assuntos relativos às desigualdades presentes em nossa sociedade, seja no aspecto econômico ou nas questões de gênero. Criando um ambiente em que o sentimento de unidade do grupo é fundamental para o desenvolvimento da subjetividade e da coletividade, procuro transmitir aos alunos a importância do respeito às diferenças e a valorização do pertencimento étnico pautado num conhecimento histórico. Viso, com isso, fornecer ferramentas que contribuam para uma construção positiva da identidade por meio da capoeira como prática educativa.

Revista Educação Pública - Existem filmes, livros ou peças que você considera importantes de serem conhecidos para debater a questão racial?

Ludmilla Almeida - Com a promulgação da Lei 10.639/03, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nas escolas e universidades, há grande demanda pela produção de materiais didáticos que contribuam para a educação pautada nas relações etnicorraciais. Com isso, tanto o governo do estado, quanto o Ministério da Cultura estão disponibilizando e colaborando com a criação de alguns materiais que atendam a essa demanda, além de algumas iniciativas privadas que também estão se articulando nesse processo. O projeto A Cor da Cultura, por exemplo, possui ótimo material para contribuir com a educação de nossas crianças e a formação de professores. Vale a pena conferir. Eu recomendaria, além disso, alguns filmes e documentários que tratam de questões não só raciais como culturais, como Café com leite (água e azeite?); Orí; A flor do deserto; A onda;efilmes infantis como Kirikou e a Feiticeira e Kirikou e os animais da floresta. Além de livros como Sem perder a raiz - Corpo e Cabelo como símbolos de identidade negra; Tornar-se negro; Rediscutindo a mestiçagem no Brasil; Bantos malês e identidade negra; Tia Ciata e a pequena África; todos os volumes da coleção Sankofa; e o acervo disponibilizado pela Unesco na internet sobre História da África, entre outros.

21/06/2011

Publicado em 21 de junho de 2011

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