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Aproximação entre teorias do currículo e cinema

Janaina Pires Garcia

Doutoranda em Educação (UFRJ) e professora de Sociologia no Ensino Médio

Considerando o cinema como linguagem artística, torna-se interessante maior aprofundamento em relação às questões referentes às teorias do currículo para pensar o cinema em contexto escolar, mais especificamente em termos curriculares.

Os estudos referentes à teoria do currículo são de grande importância, pois se percebe como ele é um importante integrante do dia a dia da escola ao exercer influência direta nos sujeitos que fazem parte do processo escolar e da sociedade em geral, determinando não só a visão de mundo dessa sociedade, mas também de nossas atitudes e ações neste meio.

Segundo Silva (1995), essas teorias relacionadas ao currículo tinham, inicialmente, como questões principais: o que os alunos devem saber? Qual saber ou conhecimento é considerado válido ou importante para fazer parte do currículo? Qual conhecimento deve ser ensinado?

Tais indagações e preocupações em torno da questão curricular surgem a partir de 1920 (Silva, 2003) nos Estados Unidos (onde se deu com mais intensidade), como uma tendência de pensar o currículo como um objeto de estudo. Esse movimento teve ligação com o processo de massificação da escolarização e com a intensa industrialização.

O conceito de currículo como uma especificação precisa de objetos, procedimentos e métodos para a obtenção de resultados que podem ser mensurados passou a ser aceito pela maioria das escolas, professores, estudantes e administradores de escolas. No entanto, pelo seu alto grau de importância, o campo do currículo passou a ser visto como um campo de estudos e pesquisas, fazendo com que surgissem outras teorias para questionar o currículo e tentar explicá-lo (Silva, 2003).

Algumas teorias sobre o currículo apresentam-se como teorias tradicionais, que pretendem ser neutras, científicas e objetivas, enquanto outras – chamadas teorias críticas e pós-críticas – argumentam que nenhuma teoria é neutra, científica ou desinteressada; todas implicam relações de poder e demonstram a preocupação com as conexões entre saber, identidade e poder (Silva, 2003).

A teoria tradicional procura ser neutra, tendo como principal foco identificar os objetivos da educação escolarizada, formar o trabalhador especializado ou proporcionar uma educação geral e acadêmica à população (Popkewitz, 1997).

Silva (2003) explica que essa teoria teve como principal representante Bobbit, que escreveu sobre currículo em um momento no qual diversas forças políticas, econômicas e culturais procuravam envolver a educação de massas para garantir que sua ideologia fosse garantida. Sua proposta era de que a escola funcionasse como uma empresa comercial ou industrial.

O modelo que Bobbit propunha era baseado na teoria da administração econômica de Taylor e tinha como palavra-chave a eficiência. O currículo era uma questão de organização e ocorria de forma mecânica e burocrática.

Além de Bobbit, outro importante representante da teoria tradicional é Ralph Tyler, que propõe em seu livro Princípios básicos de currículo e ensino (1978) quatro objetivos principais do currículo: 1) os objetivos são expressos como coisas que o professor deve fazer; 2) os objetivos são expressos sob forma de lista de tópicos; 3) os objetivos são expressos sob forma de padrões generalizados de comportamento; e 4) a melhor maneira de formular objetivos seria expressá-los sob forma de comportamento a ser desenvolvido no estudante, como conteúdo ou área de vida em que deve operar esse comportamento.

A partir dessas considerações, percebe-se que é reforçado o caráter de prescrição e controle, em que o currículo é visto como “programa” do que se deveria ensinar e se volta para a ideia de “eficiência social”, isto é, racionalização das propostas educacionais, produzindo conhecimento no campo educacional de forma a racionalizar esse processo, em que o currículo era visto como algo técnico, que previa uma descrição utilitária de educação.

Nota-se que o currículo descrito dessa maneira tem por objetivo central ajustar o aluno ao sistema escolar, construindo uma base de currículo racional e eficiente, em que as questões de poder (que serão abordadas na perspectiva crítica) não estavam ainda colocadas. E ainda vê a escola como via de adaptação aos preceitos mercadológicos com base no controle de resultados e na explicitação de objetivos na formação para a base mercantil.

Numa linha mais progressista, mas também tradicional, apresenta-se a teoria de Dewey, na qual aparecia mais a preocupação com a democracia do que com o funcionamento da economia. Seu ponto de vista estava mais direcionado à prática de princípios democráticos; a escola é um local para essas vivências.

Segundo Kliebard (1974), duas grandes tendências podem ser observadas nesses primeiros estudos e propostas: uma voltada para a elaboração de um currículo que valorizasse os interesses do aluno e outra direcionada à construção científica de um currículo que desenvolvesse os aspectos da personalidade adulta, então considerados desejáveis. A primeira contribuiu para o desenvolvimento do que no Brasil se chamou de “escolanovismo”, e a segunda constituiu a semente do que aqui se denominou “tecnicismo”.

Essas ideias influenciaram muito a educação até os anos 1980, nos EUA e em muitos países – inclusive no Brasil. Entretanto, acredito que, em meio aos muitos movimentos sociais e culturais que caracterizaram o final da década de 1950 e os anos 1960 em todo mundo, surgiram as primeiras teorizações questionando o pensamento e a estrutura educacional tradicionais. As teorias críticas preocuparam-se em desenvolver conceitos que permitissem compreender, com base em uma análise marxista, o que o currículo faz.

Em 1973, diversos especialistas em currículo participaram de uma conferência na Universidade de Rochester, dando início a uma série de tentativas de re-conceituação do campo (Moreira & Silva, 2001). A despeito das diferenças entre eles, todos rejeitavam a tendência curricular dominante, criticando seu caráter instrumental, apolítico e ateórico.

Outro movimento crítico em relação às teorias de currículo ocorreu na Inglaterra, com Michael Young, também nos anos 1970 (Silva, 2003). Essa crítica era baseada na Sociologia e passou a ser conhecida como Nova Sociologia da Educação. Diferentemente das outras teorias, que tinham como base as críticas sobre as teorias tradicionais de educação, esta tinha como referência a antiga Sociologia da Educação, que seguia uma tradição de pesquisa empírica sobre os resultados desiguais produzidos pelo sistema educacional, preocupada principalmente com o fracasso escolar de crianças das classes operárias. Porém, essas pesquisas fundamentavam-se nas variáveis de entrada, classe social, renda e situação familiar e nas variáveis de saída, resultado dos testes escolares, sucesso ou fracasso escolar, deixando de verificar o que acontecia entre esses dois pontos.

A Nova Sociologia da Educação tinha preocupação com o processamento de pessoas, e não do conhecimento. Segundo Silva, “a tarefa de uma sociologia do currículo consistiria precisamente em colocar essas categorias em questão, em desnaturalizá-las, em mostrar seu caráter histórico, social, contingente, arbitrário” (2003, p. 66). A questão básica era a conexão entre currículo e poder, entre a organização do conhecimento e a distribuição de poder. Questionava por que era atribuída mais importância a certos conhecimentos e disciplinas do que a outros.

Noto, então, que essas novas tendências não mais supervalorizavam o planejamento, a implementação e o controle dos currículos. Não mais incentivavam a adoção de procedimentos “científicos” de avaliação. Não mais enfatizavam os objetivos comportamentais. Deslocaram-se e renovaram-se, em síntese, os focos e as preocupações.

A reconceptualização foi mais um movimento que demonstrou a grande insatisfação dos teóricos envolvidos com o estudo do currículo em relação aos parâmetros estabelecidos por Bobbit e Tyler. Esses teóricos passaram a perceber que o currículo não poderia ser compreendido apenas de forma burocrática e mecânica, sem relação com as teorias sociais da época. As teorias se apresentaram, então, de um lado, críticas, baseadas nas estruturas políticas e econômicas e na reprodução cultural e social; por outro lado, surgiram as críticas inspiradas em estratégias interpretativas de investigação, como a fenomenologia e a hermenêutica (Silva, 2003).

As teorias críticas baseadas na fenomenologia e na hermenêutica vinculam-se com o social, na medida em que as categorias são criadas e mantidas pelas interações sociais e pela linguagem. Em contraste, na crítica marxista, a Pedagogia e o currículo devem submeter-se à análise científica, centrada em conceitos que rompem com as categorias de senso comum (Silva, 2003). O movimento de reconceptualização pretendia incluir as vertentes fenomenológicas e marxistas, mas seus estudiosos não as identificaram plenamente com seus ideais, pois as consideravam centradas no subjetivismo.

A concepção fenomenológica surgiu com Edmundo Husserl (Comte-Sponville, 2001). Sua investigação coloca de lado os significados ordinários do cotidiano, que são apenas “aparência” das coisas, duvidando deles para que se chegue à “essência”, ou seja, questionam-se as categorias de senso comum focalizadas na experiência individual e nas relações sociais construídas que se manifestam na e por meio da linguagem para encontrar sua expressão. A fenomenologia é a mais radical das teorias críticas. Para ela, o currículo é um meio pelo qual os docentes e aprendizes têm a oportunidade de examinar os significados da vida. Sua estratégia é selecionar temas cotidianos a serem analisados. Assim, partindo-se de uma situação real, centraria na singularidade do significado que tem para os envolvidos, buscando a “essência” dessa experiência. Além de uma introspecção, o analista pode usar os significados que outras pessoas atribuem a essa situação e aqueles descritos no conhecimento acadêmico. Finalizando a análise, reconstitui, pela linguagem, a experiência vivida pelos envolvidos na situação. Os temas submetidos à análise são retirados das vivências “banalizadas” do cotidiano, tornando-se significativas. A teorização sobre o currículo, tem sido combinada com duas outras estratégias investigativas: a hermenêutica e a autobiografia. Esta enfatiza os aspectos formativos do currículo, recorrendo à psicanálise, investigando as formas pelas quais a subjetividade é formada, permitindo conectar o individual ao social. Já aquela destaca a possibilidade de múltipla interpretação que têm os textos. Ao fazer conexões entre o conhecimento escolar, a história de vida e o desenvolvimento intelectual, contribui-se para a formação da “identidade”, que implica um agir consciente e comprometido.

Por sua vez, as teorias críticas baseadas na reprodução cultural e social tinham por principais pensadores Pierre Bourdieu e Louis Althusser. Este fez breve referência à educação em seus estudos, ao mencionar que o “aparelho ideológico do Estado dominante até o século XVIII foi a igreja e agora é a escola”(Althusser, 1992, p. 75). O autor estava querendo demonstrar que a sociedade capitalista dependia da reprodução de suas práticas econômicas para manter a sua ideologia, e que a escola é uma forma utilizada pelo capitalismo para a manutenção dessa ideologia, pois atinge toda a população por um período prolongado de tempo.

Ainda na visão de Althusser, a ideologia dominante transmite, pelo currículo, seus princípios: por meio das disciplinas e conteúdos que reproduzem seus interesses, dos mecanismos seletivos que fazem com que crianças de famílias menos favorecidas saiam da escola antes de chegar a aprender as habilidades próprias das classes dominantes e por práticas discriminatórias que levam as classes dominadas a ser submissas e obedientes à classe dominante (Althusser, 1992).

Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron propuseram em seus estudos algo que vai um pouco mais além dos estudos marxistas, como proposto por Althusser. Para esses dois pensadores, a reprodução social ocorre por meio da cultura, ou seja, ocorre na reprodução cultural; pela transmissão da cultura dominante, fica garantida a sua hegemonia; o que tem valor é a cultura dominante, os seus valores, os seus gostos, os seus costumes e os seus hábitos, que passam a ser considerados a “cultura”, desprezando os costumes e valores das classes dominadas, os quais, por sua vez, passam a não ter valor (Bourdieu, 1992).

A reprodução cultural, então, atua como educação excludente, eliminando do processo educacional as crianças de famílias menos favorecidas que não têm como compreender a linguagem e os processos culturais das classes dominantes. Nesse caso, o resultado ocorre da seguinte forma: as crianças das classes dominantes são bem-sucedidas e alcançam grau mais elevado de escolarização; as das classes dominadas são excluídas da escola ou apenas frequentam até um nível básico da educação.

Ainda entre as teorias críticas baseadas nas análises sociais de Marx, surgiu a elaborada por Michael Apple, que teve grande influência na educação. Para ele (1989), a seleção que constitui o currículo é o resultado de um processo que reflete os interesses particulares das classes e dos grupos dominantes. A questão não é apenas qual conhecimento é verdadeiro, mas qual é considerado verdadeiro e quem o considera verdadeiro. Ele considera importante analisar tanto valores, normas e disposições como os pressupostos ideológicos das disciplinas que constituem o currículo oficial. A escola, além de transmitir conhecimento, deve ser também produtora de conhecimento.

Apple queria demonstrar que durante a maior parte do século, a educação em geral – e a área do currículo, em particular – tem dedicado boa dose de sua energia à busca de uma coisa específica: um conjunto geral de princípios que oriente o planejamento e a avaliação educacionais. Em grande parte, isto tem se reduzido a tentativas para criar o método mais eficiente de elaboração de currículos. A busca de um método eficiente (assim mostrou a história interna das tradições dominantes, desde Thorndike, Bobbit e Charters nos primeiros anos do século XX até Tyler, incluindo os behavioristas e gerenciadores de sistemas instrucionais dos dias de hoje) para a elaboração de um currículo tem sido a sua característica principal.

Dessa forma, Apple enfatizou o papel dos currículos escolares na criação e na recriação da hegemonia ideológica das classes e das frações das classes dominantes de nossa sociedade, demonstrando a capacidade que têm certos grupos para transformar a cultura numa mercadoria, para acumulá-la, para fazer dela o que Bourdieu chamou de “capital cultural”.

É com base nas formas curriculares dominantes que o controle, a resistência e o conflito se desenvolvem. Entretanto, modificações curriculares têm profundo impacto também sobre o trabalho docente. Novas formas curriculares engendram tanto novos modos de controle como possibilidades de ação política, pois os estudantes criam e recriam culturas vividas que fornecem as bases para as resistências às ideologias de racionalização, aos procedimentos técnicos e administrativos e às exigências de controle local na escola.

Os melhores exemplos da incursão dos procedimentos de controle técnico são encontrados no crescimento excepcionalmente rápido do uso de “pacotes” de material curricular no mundo inteiro, principalmente nos Estados Unidos. “É praticamente impossível entrar agora numa sala de aula americana, por exemplo, sem encontrar caixas e caixas de materiais de Ciências, Estudos Sociais, Matemática e Leitura (“sistemas”, como eles às vezes são chamados) nas prateleiras e em uso (Apple, 1989, p. 159). Nesse caso, um distrito escolar em geral compra um conjunto completo de materiais padronizados, necessários à especificação das atividades a serem realizadas pelos professores e as respostas apropriadas dos alunos, além de testes de diagnóstico e de rendimento, em coordenação com o sistema. Em geral, nesses testes, o conhecimento curricular é “reduzido” aos comportamentos e destrezas “apropriados”.

Dessa forma, o controle técnico entra na vida da escola. O planejamento é feito ao nível da produção, tanto das regras para o uso do material quanto do próprio material. À medida que os procedimentos de controle técnico entram na escola sob o disfarce de “sistemas” pré-planejados de currículo, ensino e avaliação, os professores estão sendo desqualificados. Entretanto, eles estão sendo requalificados sob uma forma que acarreta muitas consequências. Enquanto a desqualificação envolve a perda da arte de ensinar, a atrofia gradual das habilidades pedagógicas, a requalificação envolve a substituição pelas habilidades e visões ideológicas capitalistas.

À medida que os professores perdem o controle das habilidades curriculares e pedagógicas para as grandes editoras, essas habilidades são substituídas por técnicas para controlar melhor os alunos. Lógica do controle técnico da forma curricular. Com a utilização crescente de sistemas curriculares pré-empacotados, adotados como sendo a forma curricular básica, não é exigida virtualmente nenhuma interação por parte do professor. Se praticamente tudo é racionalizado e especificado antes da execução, o contato entre os professores a respeito de assuntos curriculares reais é minimizado.

Logo, a questão proposta por Michael Apple é descolonizar o currículo, pois o currículo envolve a construção do outro e da alteridade. Como construir materiais curriculares e pedagógicos contra-hegemônicos? Para isso, Apple sugere que existem estratégias possíveis de serem adotadas independentemente da construção de novos materiais e textos. Nessa perspectiva, são os materiais e significados existentes, são as próprias experiências presentes dos estudantes que podem servir de base para a discussão e a produção de um novo conhecimento. Então deve-se olhar os materiais existentes sob uma nova perspectiva.

Convergindo com o pensamento de Michael Apple, encontramos Henry Giroux, também na linha das teorias críticas do currículo. De acordo com Silva (2003), Giroux acreditava que as teorias tradicionais, ao se concentrarem em critérios de eficiência e racionalidade burocrática, deixavam de levar em consideração o caráter histórico, ético e político das ações humanas e sociais e do conhecimento, contribuindo, assim, para a reprodução das desigualdades e das injustiças sociais. É por meio do currículo e na escola que as crianças devem exercer práticas democráticas. No processo educacional, elas deverão participar, discutir e colocar em questão as práticas sociais, políticas e econômicas, analisando seu contexto e percebendo seu caráter de controle. Assim, poderão ter atitudes de emancipação e libertação. Os professores possuem responsabilidade por serem pessoas atuantes neste processo, permitindo e instigando o aluno a participar e questionar, bem como propondo questões para que reflitam. Os estudantes devem ter seu espaço para serem ouvidos e suas ideias serem consideradas. Dessa forma, Giroux vê o currículo como lugar de controle, de poder, mas também de resistência, oposição e rebeldia. Pensa o educador como “intelectual transformador” (Giroux, 1992), em oposição à concepção hegemônica do professor pautada na racionalidade técnica.

De forma bastante resumida, pode-se dizer que o referencial da teoria crítica segue os princípios da dialética do materialismo histórico, em que o currículo é visto como “conhecimento”. Essa perspectiva crítica traz consigo duas consequências metodológicas (Popkewitz, 1997):

  1. o aluno torna-se um sujeito no ato de aprender, ele é ativo, assume uma posição ativa permanente no processo de aprendizagem;
  2. as temáticas sociais impõem o tratamento articulado entre as diferentes áreas do saber com a perspectiva de atribuir significados mais amplos. Nos anos 1970, quando essa perspectiva começou a surtir maior impacto, o currículo era visto como algo construído sócio-historicamente (assim como é o conhecimento), prevalecendo a seleção, a organização e a distribuição de conhecimento. As teorias críticas desconfiam daquilo que era ensinado na escola.

Nesse sentido, percebe-se que a ênfase das teorias críticas estava no significado subjetivo dado às experiências pedagógicas e curriculares de cada indivíduo. Isso significava observar as experiências cotidianas sob uma perspectiva profundamente pessoal e subjetiva, levar em consideração as formas pelas quais estudantes e docentes desenvolviam, por meio de processos de negociação, seus próprios significados sobre o conhecimento.

Nesse contexto, observou-se que, após um período de longa produção intelectual criativa, inovadora e vigorosa sobre o contexto educacional e curricular, no final dos anos 1960, com os franceses traçando perspectivas educacionais de análise mais gerais e com os anglo-saxões propriamente envolvidos de maneira mais direta na área da teorização curricular (em que fazer teoria do currículo era sinônimo de fazer sociologia marxista do currículo), emerge no final dos anos 1980 e começo dos anos 1990 a “revolução” combinada com a influência dos Estudos Culturais, do pós-estruturalismo e do pós-modernismo: nascem as teorias pós-críticas, que, como o próprio o nome sugere, são oriundas das posições críticas, mas que inserem no debate questões como raça, etnia e gênero: o foco é a questão cultural.

Podemos começar a falar sobre as teorias pós-críticas analisando o currículo multiculturalista, que destaca a diversidade das formas culturais do mundo contemporâneo. O multiculturalismo, mesmo sendo considerado estudo da Antropologia, mostra que nenhuma cultura pode ser julgada superior a outra. Em relação ao currículo, o multiculturalismo aparece como movimento contra o currículo tradicional que privilegiava a cultura branca, masculina, europeia e heterossexual, ou seja, a cultura do grupo social dominante. A partir dessa análise, houve a proposição de que o currículo também incluísse aspectos de formas mais representativas das diversas culturas dominadas.

Assim, segundo Silva (2003, p. 90), surgiram duas perspectivas: a liberal ou humanista e a mais crítica. A linha liberal defende ideias de tolerância, respeito e convivência harmoniosa entre as culturas; a visão crítica pontua que, dessa forma, permaneceriam intactas as relações de poder, em que a cultura dominante faria o papel de permitir que outras formas culturais tivessem seu “espaço”.

Entretanto, o currículo não pode se tornar multicultural apenas incluindo informações sobre as outras culturas. Precisa considerar as diferenças étnicas e raciais como uma questão histórica e política. É essencial, por meio do currículo, desconstruir o texto racial, questionar por que e como valores de certos grupos étnicos e raciais foram desconsiderados ou menosprezados no desenvolvimento cultural e histórico da humanidade e, pela organização do currículo, proporcionar os mesmos significados e valores a todos os grupos, sem supervalorização de um ou de outro. Nesse sentido, a teoria pós-colonial, juntamente com o feminismo e com o movimento negro, procurou incluir as formas culturais e experiências de grupos sociais discriminados pela identidade europeia entre nações que compõem a herança econômica, política e cultural de seus países colonizadores. Questionou as relações de poder e as formas de conhecimento pelas quais a posição europeia se mantém privilegiada. Existe preocupação com as formas culturais que estão no centro da sociedade de consumo que definem novas ideias de imperialismo cultural, mantendo sempre a hegemonia das culturas colonizadoras.

Ainda dentro da visão pós-crítica, encontra-se a perspectiva pós-estruturalista (Silva, 2003). Nesta visão, que analisa as questões de significado do que é considerado verdadeiro em termos de conhecimento, os significados são o que são porque foram socialmente assim definidos. Os campos de significação, portanto, são caracterizados por sua indeterminação e por sua conexão com o poder. Assim, tanto a noção de verdade é questionada como o motivo pelo qual algo é considerado verdadeiro. A questão não é, pois, saber se algo é verdadeiro, mas saber por que esse algo se tornou verdadeiro. A perspectiva pós-estruturalista coloca em dúvida as atuais e rígidas separações curriculares, além de todo o conhecimento.

Logo, o referencial pós-crítico se fundamenta no pós-estruturalismo, em que o conhecimento provém da ativação das estruturas cognitivas dos sujeitos educacionais. O processo cultural e o multiculturalismo são, aqui, o cerne da questão, sendo este último um movimento ambíguo de adaptação e resistência. Numa perspectiva pós-moderna em educação, observa-se a consequência da virada linguística, isto é, a emergência da linguagem como produtora de realidades, e não mais como representação, em que o entendimento do real depende da cultura. Nesse contexto, a ideia de mudança de paradigmas vem à tona criticando os padrões considerados rígidos da modernidade (rompimento com a lógica positivista, tecnocrática e racionalista), declarando o fim das metanarrativas, na tentativa de dar voz aos subalternos excluídos de um sistema totalizante e padronizado.

Considerando as teorias apresentadas (tradicional, crítica e pós-crítica), observo a necessidade de superação de um modelo cartesiano de currículo que se aproxime mais das formas interdisciplinares e transdisciplinares, em que o processo formativo deva estar conectado com o real e que o currículo deva ser encarado como um “processo”, algo que está sempre em construção, que aproveita a experiência prévia de vida dos alunos, utilizando-a como recurso para a para produção de conhecimento.

O currículo, numa perspectiva contemporânea, deve-se afastar das perspectivas tradicionais e tecnicistas, representadas por autores como Tyler e Bobbit, cuja ênfase recai no currículo como “programa escolar”, ou seja, como uma questão eminentemente técnica, dissociada da conjuntura social e centralizada nos conteúdos formais e no como fazer.

Assim, o currículo poderia ser pensado como uma arte do encontro e da composição, na qual o que importa não é a forma e a substância, o sujeito ou o objeto, mas o que se passa entre os diferentes corpos que habitam um currículo. Pensar o currículo da mesma forma que Deleuze e Guattari (1999) concebem o inconsciente, ou seja, como máquina que não para de produzir, que é produzida por sua produção, cuja essência não se pode determinar a priori e que não para de efetuar novas ligações.

Dessa forma, acredito que o cinema, como uma possível proposta curricular, tenha muito a contribuir para uma nova proposta de educação, aproximando-se das teorias críticas e pós-críticas do currículo, pois discussões sobre currículo só ganham o centro das atenções quando surge alguma proposta de introdução de uma nova disciplina ou a volta de uma disciplina antiga e abandonada. De resto, o currículo é tomado como algo dado e indiscutível, raramente sendo alvo de problematização.

Mas como pensar o cinema dentro dessa nova proposta curricular? É sabido que o cinema não é algo novo na escola; o que é novo é repensar sua aproximação nesse contexto, é pensar a sua não instrumentalização, a sua possível emergência como disciplina; logo, isso equivale a dizer pensar o cinema dentro de uma proposta pós-moderna de educação e de currículo.

O professor Ismail Xavier diz que “se deve compreender o cinema não só como arte, mas como linguagem mobilizadora e desestabilizadora de nossas certezas” (2008, p. 14). E vai além, dizendo que, para ele, “um cinema que educa é o cinema que faz pensar, não só o cinema, mas as mais variadas experiências e questões que coloca em foco” (2008, p. 15). Nesse sentido, observo aqui a aproximação de uma perspectiva pós-moderna em educação, porque o cinema dessa forma estaria trabalhando princípios pedagógicos da transdisciplinaridade, da diversidade e da autonomia. Ou seja, a questão não é “passar conteúdos”, mas provocar a reflexão, questionar algo que é dado como inquestionável.

Outra contribuição importante para pensar uma possível proposta curricular em cinema é do professor Robson Loureiro (2008). Para ele, o cinema promoveria uma reeducação do olhar, mas para isso seria necessário desafiar a hegemonia do cinema hollywoodiano, com sua estética hegemônica. Embora a expressão “re-educar o olhar” ou até “educar o olhar” pressuponham uma discussão interessante, não entrarei nesse assunto, cuja complexidade permitiria ser abordada numa dissertação completa. Basta aqui posicionar um critério diante dessa polêmica frase e afirmar que prefiro, nesse sentido, a expressão “endereçamento do olhar” (Ellsworth, 2001).

Por meio do conceito de hegemonia, Gramsci procura demonstrar como a classe dominante consegue se impor e ser aceita como guia legítimo, constituindo-se na classe dirigente que obtém o consenso e a aceitação frente às metas e propostas.

Retornando a Michael Apple (1982), em que a questão da hegemonia é muito bem trabalhada em suas análises sobre currículo –, que toma de empréstimo o conceito de Gramsci, o qual o utilizou para designar uma relação de força e dominação, podemos observar que o currículo sempre foi apresentado como verdade única do que se deve ser ensinado, que as escolas produzem e distribuem como capital cultural. Consequentemente, na visão do autor, o currículo possui três funções: a seleção, a transmissão e a distribuição. Mas o que se observa é que, mesmo a escola estando a serviço da manutenção da hegemonia, ela, por produzir conhecimentos distintos, estaria também produzindo a contra-hegemonia. Logo, quando o professor Loureiro fala em “reeducação do olhar”, está falando de uma possível contra-hegemonia; nesse sentido, concordo plenamente.

Dessa forma, para pensar numa proposta curricular em cinema, dentro de uma perspectiva pós-moderna em educação, é fundamental pensar em outro endereçamento do olhar, isto é, em ver as coisas com outros olhos, de maneira menos padronizada, mais aberta e plural, refletir sobre o papel que os estúdios de Hollywood têm tido na produção de determinadas estéticas hegemônicas ao longo das últimas décadas, entre outras possibilidades.

Tal estética possui algumas características claras: grande modo de produção de filmes, com grandes estúdios; modelo centrado no star system (mitificação de atores e atrizes); estética naturalista, ou melhor, da transparência, em que se monta um sistema em que tudo deve parecer verdadeiro, anulando sua presença como trabalho de representação; linearidade da narrativa, com começo, meio e fim; e um código regulador de mensagens, com base essencialmente voltada para os bons costumes e a boa conduta. Além dessas características estéticas existe uma característica mais política: divulgar hábitos e valores da cultura norte-americana.

Mas, felizmente, a História tem demonstrado que a conquista do mercado pelos estúdios de Hollywood não vem se dando sem oposição. Ao longo da história do cinema, pode-se observar vários movimentos de contestação (e por que não contra-hegemônicos?) como o Neorealismo, na Itália do pós-guerra, a Nouvelle vague, na França, o Free cinema, na Inglaterra, o Novo Cinema, na Alemanha e o Cinema Novo, no Brasil.

Entende-se assim, que o professor Loureiro pretende que professores e alunos, ao estudar ou ver cinema na escola, não se limitem à oferta dominante norte-americana, mas que rompam com essa estética dominante e hegemônica, assistindo a filmes de outras nacionalidades e culturas. Assistir filmes que tenham compromisso com um cinema autônomo, que vão à contrapelo da História, que sejam fundados numa “estética radical”(Adorno, 1982), que apresentem uma potência desformatadora de aprendizagens que emoldura e anestesia os sentidos. Filmes que apresentem o próprio dispositivo de representação e que o critiquem (A noite americana, O desprezo, Persona... são alguns exemplos de filmes que trabalham essas questões).

Nessa perspectiva, o cinema, como possível disciplina, estaria trabalhando a diversidade, a autonomia, a transdisciplinaridade, a identidade e a contextualização, temas transversais propostos pelo atual PCN de artes. Estaria ainda contribuindo para o debate do pós-moderno e de uma nova proposta curricular, visto que trabalha com a questão do diferente numa proposta de cinema contra-hegemônica.

Logo, ensinar cinema trata, para começar, de novo endereçamento do olhar, de dar espaço a uma outra percepção, de aceitar ver as coisas com a sua parte de enigma, antes de sobrepor-lhes palavras e sentidos. O verdadeiro acesso à arte não pode ser confortável ou passivo. Já dizia Bergala: “não se arrasta as crianças para a arte como os bois para o arado” (Bergala, 2002, p. 98). Trata-se de expô-las à arte, mesmo que isso às vezes seja explosivo. Não é a arte que deve ser exposta sem riscos aos jovens espectadores, eles é que devem ser expostos à arte e poder ser abalados por ela. A única experiência real do encontro com a obra de arte provoca o sentimento de ser expulso do conforto dos hábitos de consumidor e de nossas ideias preconcebidas, porque o cinema é uma arte de abertura para todas as alteridades. A partir da experiência de assistir a um filme podemos fazer a experiência de ser um outro, de viver num outro lugar, de pertencer a uma outra cultura. O cinema é um meio para se abrir ao outro, por uma experiência íntima e de identificação, de maneira profunda de encontro com o outro.

Nessa perspectiva, podemos arriscar a pensar se o cinema se enquadraria numa proposta pós-crítica de currículo, isto é, num movimento multiculturalista, com base numa visão antropológica, em que se deve tolerar e respeitar a diferença mas ao mesmo tempo ir para além disso, ou seja, não apenas tolerar o outro, mas interagir com esse outro. Isso permitiria abordar a proposta de alteridade encarnada pelo cinema, em que a tolerância em si é colocada em questão. Michael Apple (1989), contudo, critica essa perspectiva multiculturalista: a perspectiva multicultural reconhece a diversidade, mas não vai além disso; para nesse ponto, o que pode reafirmar hierarquias, como, por exemplo, da superioridade branca. Na sua crítica, observa-se que não há interculturalidade. Entretanto, acredito que o cinema, como possível disciplina, pode acrescentar muito a esse debate.

O cinema dentro da escola propõe um exercício de alteridade, pois ele é mais do que reconhecer o direito à diferença do outro; ele deseja encontros com o outro que nos arranquem da condição de permanecermos os mesmos, uma paixão por territórios desconhecidos que constitui um convite para a experimentação de diferentes formas de estar no mundo.

O outro não é apenas um outro eu (o estrangeiro, a mulher, o negro, o homossexual, a criança...) com o qual devo criar um exercício de vizinhança baseado na filosofia do politicamente correto. O outro é tudo aquilo (humano, não humano, visível, não visível) que me arranca da pretensa estabilidade de uma identidade fixa (um modo padronizado de pensar, sentir, agir), provocando-me com um incessante convite para diferentes formas de estar no mundo. Logo, o cinema, além de estar inserido numa perspectiva multiculturalista, ultrapassaria a crítica de Apple, pois estaria promovendo a interculturalidade por meio da alteridade.

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Publicado em 19 de julho de 2011

Publicado em 19 de julho de 2011

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