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Sem fundamento - crítica acadêmica e crítica intuitiva

Alexandre Amorim

O quadro à frente do casal observador é o famoso Beijo, de Gustav Klimt. Os dois se abraçam um pouco mais, com um sorriso apaixonado de quem se identifica com o casal traçado pelo pintor. Os termos “lindo”, “sublime”, “felicidade” saem das bocas do casal. Impressões apaixonadas. Até chegar o guia oficial do museu, que explica a um grupo de japoneses (em inglês) o uso do ouro, a influência dos mosaicos bizantinos, a perspectiva e o erotismo. Ao casal, interessaria o erotismo, mas eles já haviam saído de perto daquele sujeito chato.

Essa cena não é uma defesa da ignorância.

Também não é uma apologia aos sentimentos em detrimento da razão.

Mas é, claramente, uma implicância com a crítica acadêmica.

Não porque a academia seja desprezível – longe disso, a academia é necessária e peça fundamentadora da sociedade em que vivemos, ainda que seja formada por uma parcela ínfima dessa sociedade. Mas porque a crítica acadêmica merece ser importunada de vez em quando. E, de preferência, de modo lúdico. Justamente porque grande parte da academia se esquece da boa prática da intuição e da emoção. Ou finge que se esquece.

Está claro que o casal da cena não estava interessado propriamente em criticar, mas em sorver o prazer da cena para seu próprio deleite, ou seja, a interpretação do casal não existia – justamente porque não existia a crítica. A crítica nasce na percepção de uma obra e, a partir de informações selecionadas e organização de suas impressões subjetivas, o observador chega a uma compreensão, mesmo que momentânea, dessa obra. Essa compreensão estará sempre ligada aos limites estéticos do leitor. O casal, é claro, não se esforçou muito para ir além da percepção, uma vez que se interessava em trazer apenas o prazer estético para seu campo amoroso.

Apesar de a crítica intuitiva estar geralmente ligada à impressão por aqueles que a querem denegrir, é preciso discernir os dois termos. A intuição pode não ter embasamento analítico, como se fosse uma impressão, mas nela há percepção. Mas esses limites estéticos podem ser expandidos, visto que o próprio observador promove a interpretação da obra e esta se torna representação para seu receptor.

A obra de arte precisa, então, ser compreendida e interpretada. A lógica aspira à crítica. Para que haja a crítica, é necessária a compreensão da obra, uma vez que a apreensão lógica é o passo que fundamenta o ato de interpretar. A observação lógica do texto leva inevitavelmente à observação crítica desse texto, e uma é complementar à outra. Não há lógica sem crítica, e não há crítica sem lógica. Essa complementaridade, porém, não acarreta vício, mas uma interação contínua. A compreensão contida em uma interpretação já é subjetiva, porque mesmo a lógica requer o olhar do observador. Portanto, a lógica já traz nela uma interpretação – uma crítica primeira que vai alimentar a constante relação compreensão-interpretação, que vai se dar a partir desse primeiro olhar. Lógica e crítica vão se renovar enquanto o olhar do observador estiver sobre o objeto observado: se há uma percepção a priori, a compreensão (posterior à apreensão do objeto) estará sempre acompanhada da crítica.

A renovação constante da compreensão e interpretação de uma obra é o resultado de um exercício de renovação da relação do observador com o mundo. A observação lógica da obra já pressupõe subjetividade dessa lógica no leitor, e a interpretação confirma esta subjetividade, sempre em processo de devir na relação subjetividade-obra, em que subjetividade é toda a formação (histórica, cultural, moral, emocional) do observador.

E é precisamente por essa subjetividade conter em si também a formação emocional do indivíduo que na compreensão e na interpretação deve ser considerado o afetivo. Este se aloja na compreensão e na interpretação, conjugado ao intelecto lógico e crítico necessários, funcionando como reação básica para que a obra de arte seja considerada pelo observador.

“Nenhuma obra de arte tem que temer das análises que a desmontem e a desfibrem, ou que persigam, nas entrelinhas e nas elipses de um estilo, os mais ocultos sentidos. Se ela for realmente uma estrutura significativa, um objecto estético, uma criação (e não é necessário que o seja em nível genial!), as análises apenas porão em relevo, apenas tornarão visível e sensível e descritível e compreensível a complexidade que a crítica intuitiva se deleita em ‘sentir’ sem nos dizer objectivamente de que será que ela se constrói” (Jorge de Sena, em Dialécticas Aplicadas da Literatura, p.114-115).

Nietzsche substituiu os conceitos de conhecimento e de verdade por interpretação e avaliação, fixando o “sentido, sempre parcial e fragmentário, de um fenômeno” e totalizando os “fragmentos, sem atenuar nem suprimir a sua pluralidade”, segundo Deleuze. A nobreza do homem está em perceber-se como tal e poder produzir-se a partir daí. A arte não é apenas resultado da interpretação da vida, mas o leitmotiv da própria vida. E para que não se duvide da nobreza possível do homem, a arte não está acima dele, mas com ele, nele. O homem produz arte através de si mesmo e do mundo, por isso é passível de ser além de si mesmo – e porque o homem produz arte, interpreta e avalia, pode tomar a crítica como ferramenta de autorreflexão.

A crítica que começa intuitiva não pode ser diminuída em relação à crítica acadêmica, porque se dá inicialmente pelo afeto, que é caminho indispensável à pluralidade. Se os dois caminhos nem sempre se encontram, não é importante. Importa que haja, além da percepção, a vontade de continuar a compreensão daquela obra.

O casal saiu do museu e perdeu boas palavras do guia. O guia perdeu a emoção do casal. Perdem todos quando não há afeto e lógica envolvidos na interpretação artística.

Publicado em 26 de julho de 2011

Publicado em 26 de julho de 2011

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