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Saramago, verbo e homem
Alexandre Amorim
Este ano começa sem José Saramago. Sua verborragia escrita e falada pode ser controversa, suas certezas podem parecer arrogância e o tamanho de seus parágrafos pode afastar muitos leitores, mas a certeza de que um romancista como ele faz falta ao mundo de hoje como um pajé faria falta a sua tribo já é razão suficiente para lhe prestar uma homenagem em letras. Ainda com a sensação de que este ano novo começou com uma grande falta, proponho um brinde a Saramago e suas palavras.
Antes de trabalhar com a escrita, o escritor português havia sido serralheiro e funcionário público, mas sempre foi afeito à leitura. Talvez por ter experimentado ofícios ligados à prática do cotidiano ao mesmo tempo que exercitava sua imaginação em romances e poemas alheios, José Saramago soube lidar com a história de modo muito pessoal em seus textos. Assim, reescreveu a vida de Cristo como se o próprio ditasse seu evangelho e se mostrasse muito mais humano do que o descrevem, tratou da separação de Espanha e Portugal da Europa como fato geográfico, descreveu Ricardo Reis como se o heterônimo de Pessoa fosse real e narrou as histórias do Velho Testamento de seu ponto de vista. São apenas alguns exemplos de como se pode ver a realidade com olhos subjetivos e descrevê-la em conjunto com a fantasia. Não é incomum que Saramago use figuras históricas em suas ficções, assim como é corriqueiro que fatos históricos sejam revistos pelo escritor. Realidade e ficção não estão separadas e, de fato, estão mais do que próximas: formam uma só entidade.
Saramago foi ateu convicto e comunista nem tanto. Pode parecer que o preocupavam mais as ações daninhas da religião do que as artimanhas capitalistas na sociedade, mas o escritor tinha consciência de que religião e sistemas sociais, quando juntos em seus objetivos de dominação, podem ser ainda mais prejudiciais e destruidores. Propunha que a inteligência fosse uma arma contra a “insolência reacionária” da fé cega. Não é à toa que seu livro de 1980, Levantado do chão, marco contra a opressão da Igreja e dos donos do poder, fosse também um marco em sua escrita: o autor escolhia uma nova maneira de pontuar suas frases e demarcar os diálogos de seus personagens – escolha que seguiu até seu último livro, Caim.
As escolhas desse autor português não se fazem pela facilidade. Se, em sua escrita, o texto é tecido em pontuação complexa e frases longas, também é notória sua opção pela polêmica no trato político e social. Não a polêmica apenas pelo gosto por ela, mas porque, sem polemizar, Saramago seria mais um a aceitar verdades oficiais, acrítico e passivo diante de uma realidade imposta. Se Saramago soube criticar o catolicismo e seu representante maior, o papa, adjetivando ambos de fascistas por lutarem contra a liberdade e o desenvolvimento intelectual da humanidade, também apontou os erros da gerência judaica em relação à questão palestina. Sofreu forte oposição de ambas as religiões, mas se manteve coerente em suas críticas.
Se o escritor se pronunciou sobre questões religiosas e políticas, foi porque fez questão de manter seu pensamento lúcido em relação ao ser humano. Quando escreveu Ensaio sobre a cegueira, afirmou que este era “um livro brutal e violento” e que “através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso”. Justamente quando atingiu o cerne da questão humanista, Saramago faz questão de exercitar sua liberdade de pensamento e fugir de dogmas religiosos ou sociológicos que nos afastam da observação crítica do ser humano. Concorde-se ou não com Saramago, aceite-se o fato de que o autor nos faz pensar.
José Saramago soube ser mais do que homem; soube se tornar verbo, e verbo escrito. O ano começa sem Saramago, que nos deixou em junho de 2010. Sua obra está aqui, entre nós, em romances, artigos, contos, poemas, entrevistas. Faz falta o homem; compensam as palavras.
Publicado em 17 de janeiro de 2011
Publicado em 18 de janeiro de 2011
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